Em debate realizado pela CNN Brasil na última quarta-feira (12), o deputado federal eleito Nikolas Ferreira (PL-MG) afirmou, em discussão com o também deputado federal eleito Guilherme Boulos (PSOL-SP), que Jesus Cristo mandou que seus discípulos vendessem suas capas para comprar espadas, conforme está no Evangelho de Lucas, na Bíblia.
Esse trecho justificaria a compra de armas por parte de cristãos, hoje em dia, e provaria que Jesus não concordaria com o desarmamento.
Mas, será mesmo que o chamado Príncipe da Paz, como está na Bíblia, defenderia o uso de armas?
Bem, Ferreira acertou a leitura da passagem bíblica, mas, segundo especialistas, errou na interpretação.
De fato, em Lucas, capítulo 22, dos versículos 35 até o 38, Jesus manda que seus seguidores vendam suas capas para comprar espadas, mas a ordem de Cristo seria apenas para o cumprimento de uma profecia que também está na Bíblia, no livro do profeta Isaías, no Antigo Testamento.
“Esse texto é muito usado, especialmente por grupos bolsonaristas que tentam legitimar a compra de armamento através da figura de Jesus, mas essa é uma interpretação completamente equivocada”, afirmou o teólogo e jornalista Ranieri Costa, que pesquisa o discurso da chamada teologia coach.
O que dizem os versículos?
Então Jesus lhes perguntou: “Quando eu os enviei sem bolsa, saco de viagem ou sandálias, faltou-lhes alguma coisa?”. “Nada”, responderam eles.
Ele lhes disse: “Mas agora, se vocês têm bolsa, levem-na, e também o saco de viagem; e se não têm espada, vendam a sua capa e comprem uma.
Está escrito: “E ele foi contado com os transgressores; e eu lhes digo que isto precisa cumprir-se em mim. Sim, o que está escrito a meu respeito está para se cumprir”.
Os discípulos disseram: “Vê, Senhor, aqui estão duas espadas”. “É o suficiente! “, respondeu ele.
Lucas 22:35-38 (Nova Versão Internacional)
E qual é a interpretação?
Segundo Gerson Leite de Moraes, doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP e professor do Mackenzie, Jesus pede a compra das espadas para que se cumpra uma profecia que está no livro de Isaías, no Antigo Testamento, e, então, as pessoas entendem que Jesus, de fato, era o Cristo que seria morto.
O contexto em que isso foi dito era o da tensão vivida por Jesus e seus discípulos, em Jerusalém, pouco antes da crucificação e morte de Cristo.
“O que acontece com pessoa como o Nikolas é que eles fazem uma leitura literal da Bíblia, eles são fundamentalistas”, disse Moraes.
“Mas a posição de Jesus é exatamente contrária à leitura que o Nikolas faz. Então, para sermos muito didáticos, Jesus pede sim para comprar espadas para que se cumpra uma profecia. Esta aquisição das espadas, portanto, cumpre um papel simbólico. O grupo de Jesus não poderia se defender com duas espadas, afinal de contas duas espadas eram insignificantes diante de um poder como o poder instituído que prende Jesus. É mesma coisa de você querer enfrentar um exército formal com dois revólveres 38. Não vai fazer nenhum efeito”, completou.
Para Costa, Jesus é muito claro ao dizer que a espada não deveria ser usada para a proteção, mas para o cumprimento de uma profecia que determinava algumas coisas que deveriam acontecer para que Jesus fosse morto e reconhecido como Cristo, como o beijo de Judas, as vestes que não seriam rasgadas, o fato de ser morto entre ladrões, de não ter nenhum osso quebrado e, no caso da compra das espadas, que ele seria contado entre os rebeldes.
“O próprio Cristo explica que havia chegado a hora de se cumprir a profecia e parte da profecia era que Jesus seria contado entre os rebeldes, entre os transgressores e a ideia de transgressor e de rebelde na época é daqueles que andavam armados. É necessário que seja feita a leitura do texto bíblico observando todo o contexto. Não só da cena que é descrita ali”, explicou.
Jesus repreende o uso da espada
Ainda no capítulo 22 do Evangelho de Lucas, Jesus repreende quando um de seus seguidores saca uma das espadas e corta a orelha de um servo dos sumo-sacerdotes. E, mais do que isso, cura a orelha ferida.
“Jesus cura aquele que foi vítima da violência e ainda joga pra religiosidade judaica e a sua representação armada, a sua representação de polícia, a responsabilidade de serem eles os representantes do poder das trevas. Então, a lógica armamentista do Nikolas não faz o menor sentido, porque Jesus diz que os representantes armados são os representantes das trevas, eles representam a violência que Jesus quer evitar”, explicou Moraes.