“Vocês não percam a fé, é só o que eu posso falar para vocês agora”, disse o general da reserva do Exército Braga Netto, ex-candidato a vice-presidente na chapa derrotada de Jair Bolsonaro, na sexta-feira (19), numa conversa com apoiadores do ainda presidente no chamado cercadinho do Palácio da Alvorada, em Brasília.
A declaração, gravada e transmitida por emissoras de TV e outros órgãos de imprensa do país, foram suficientes para reacender o ímpeto golpista que vinha perdendo fôlego nas manifestações nas rodovias e na frente dos quartéis militares do país por aqueles que desejam a ruptura democrática no país, com uma intervenção do Exército no Governo.
Coincidência ou não, desde a declaração do general aumentaram o número de bloqueios nas rodovias e os chamamentos dos empresários do setor de transporte e carga para que parem o país já a partir de segunda-feira (21). É o que revelam gravações de vários empresários do setor, incluindo os maiores do país, conclamando para a paralisação e o fechamento de rodovias “para fazer do Brasil a Venezuela que eles querem”.
A justificativa para os chamamentos com nítidas características de golpes em busca da ruptura democrática do país, cujo Estado Democrático de Direito é uma das cláusulas pétreas da Constituição Federal, vem sendo dada em função das últimas decisões do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que mandou bloquear as contas dos empresários apontados como financiadores das manifestações.
A outra justificativa é a aplicação de multas, pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), com valores considerados pelos manifestantes como absurdos, já que variam de R$ 100 mil a R$ 1 milhão, nas placas de caminhões, carretas e outros veículos utilizados pelos manifestantes.
Mas o maior combustível que deve alimentar as manifestações por todo o final de semana veio mesmo das declarações de Braga Neto, dadas após o general visitar Jair Bolsonaro no Palácio da Alvorada, no início da noite de sexta-feira (19). Braga Neto conversou com os manifestantes e pediu aos bolsonaristas para que “não perdessem a fé”, sem elaborar. Foi uma espécie de senha para que nas redes pró-Bolsonaro na Internet a entendessem como um recado implícito aos apelos por uma virada de mesa eleitoral ecoados em protestos golpistas na porta de quarteis Brasil afora.
“Vocês não percam a fé, é só o que eu posso falar para vocês agora”, disse Braga Netto aos militantes que permaneciam na entrada da Alvorada com adereços alusivos à bandeira do Brasil. “A gente está na chuva, no sufoco”, interpelou uma bolsonarista com a voz embargada, tentando segurar o choro. “Eu sei, senhora. Tem que dar um tempo, tá bom?”, completou o ex-vice de Bolsonaro. As declarações foram reproduzidas pelo noticiário do jornal O Globo.
A declaração, logo em seguida, fez com que Braga Netto figurasse entre os tópicos mais discutidos no Twitter na sexta-feira e que continua neste sábado, mesmo que as instabilidades na rede social em função de demissões em massa nos Estados Unidos dominaram a rede.
No canal mantido pelo site bolsonarista Jornal da Cidade Online no Telegram, que conta com 34 mil seguidores, o padrão se repete. “A mensagem foi dada”, afirma a mensagem acompanhada do link para o vídeo da fala de Braga Netto.
“General faz sua declaração mais impactante e estremece as bases de Brasília. O clima de tensão domina Brasília”, diz uma mensagem disparada na noite desta sexta-feira em referência a uma publicação do deputado federal General Girão (PL-RN) nas redes atacando o Supremo Tribunal Federal.
Pela manhã, o destaque foi uma reunião interna do Exército que, na verdade, ocorreu nos dias 8 e 9 discutiu assuntos burocráticos da instituição, segundo o site da corporação. “Exército realiza nova reunião em Brasília, desta vez com os adjuntos de comando. Forças se organizam e se preparam”, diz o trecho destacado no Telegram.
A fala do general é mais uma da longa lista de demonstrações de atores importantes do bolsonarismo feitas desde o segundo turno que, embora pareçam despretensiosas, funcionam como “dog whistle” (apito de cachorro) – expressão popularizada nos Estados Unidos que define mensagens cifradas e interpretadas devidamente apenas pelo seu grupo alvo. A estratégia é manter pairando no ar a ideia de que uma reviravolta iminente no resultado eleitoral está no horizonte – em outras palavras, que algo imponderável ainda vai impedir Luiz Inácio Lula da Silva de tomar posse em janeiro.
As teses para sustentar esses boatos sem qualquer fundamento vão desde a anulação das eleições até a possibilidade de uma intervenção inconstitucional das Forças Armadas, como têm clamado bolsonaristas nas ruas.
São vários os exemplos nas redes sociais, de deputados aliados a ministros, além do próprio presidente. Um exemplo: no último dia 8, véspera da divulgação do relatório das Forças Armadas sobre a segurança das urnas eletrônicas, Jair Bolsonaro publicou sem qualquer legenda uma foto em que aparece diante de apoiadores na convenção que o consagrou candidato à reeleição no Rio, em julho. O ângulo do registro mostra o presidente em postura obediente diante de militantes com os braços erguidos e punhos cerrados. Mais de 400 mil usuários curtiram a publicação, a mais recente em seu perfil.
No mesmo dia, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) reproduziu parte do controverso relatório técnico sobre as urnas contratado pelo PL e já desmentido pela Justiça Eleitoral. Na sequência, sem citar o Brasil, publicou uma notícia sobre o cancelamento de um pleito municipal na Alemanha.
“Eleição de 2021 anulada na Alemanha. Nova eleição com os mesmos candidatos deve ocorrer em 90 dias”, escreveu o filho do presidente. O tweet teve mais de 35 mil curtidas.
Também no dia 8, o candidato derrotado ao governo do Rio Grande do Sul, Onyx Lorenzoni (PL), publicou um versículo bíblico que também foi encarado como um aceno tácito aos protestos, que evocam a tese de fraude eleitoral sem qualquer prova.
“Porque não há nada oculto que não venha a ser revelado, e nada em segredo que não seja trazido à luz do dia”, escreveu o ex-ministro de Bolsonaro.
Uma nota divulgada pelo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas no feriado da Proclamação da República, na última terça-feira, também veio carregada de “dog whistles”. “A História ensina que pessoas que lutam pela liberdade jamais serão vencidas”, escreveu o general da reserva em referência aos protestos bolsonaristas na porta de quarteis. O trecho também foi reproduzido por Braga Netto.
A mensagem, curtida mais de 150 mil vezes no Twitter, foi festejada. “Traduzindo: sinal verde liberado”, escreveu um apoiador de Bolsonaro na rede social em resposta a Villas Bôas. Outros reproduziram a hashtag #BrazilianSpring, ou primavera brasileira, em referência aos movimentos da Primavera Árabe no início da década passada.
Na mesma data, a deputada federal Bia Kicis (PL-DF) publicou nas suas redes sociais que o PL pediria a anulação das eleições presidenciais, o que não se concretizou. “Não acabou!”, sentenciou a parlamentar bolsonarista.
No dia seguinte, Kicis admitiu que seu partido não entrou com qualquer pedido de cancelamento da disputa eleitoral, mas não deu o braço a torcer. “O prazo vai até dezembro e a versão do relatório ainda não é definitiva. Vamos aguardar um pouco mais. Um relatório que aponte inconsistências graves não poderá fugir a seu destino”, escreveu.
O mecanismo lembra o roteiro adotado por Donald Trump, então presidente dos Estados Unidos e próximo da família Bolsonaro, após ser derrotado por Joe Biden. Para criar o ambiente necessário para uma contestação e reversão dos resultados, o que levou à invasão do Capitólio, Trump passou a fomentar uma teoria conspiratória conhecida como QAnon, surgida em fóruns no submundo da internet.
Com isso, mesmo após a certificação da vitória de Biden pelo Congresso, trumpistas radicais se mantiveram mobilizados aguardando pela “tempestade”, um episódio pivotal no qual Trump insurgiria contra o sistema, mandaria os oponentes para a cadeia e tomaria a presidência de volta – o que, claro, não ocorreu.
Embora o QAnon não tenha sido um produto trumpista, a estratégia do ex-presidente seguiu as diretrizes planejadas por seu ex-estrategista Steve Bannon, com quem Eduardo Bolsonaro mantém vínculos fortes desde a eleição de seu pai, em 2018.
Se por um lado os “dog whistles” não garantiram sucesso à empreitada de Trump nos Estados Unidos, a estratégia elaborada conseguiu macular a confiança no sistema eleitoral entre os apoiadores do republicano e manter a base radical pujante.
Dois anos após o processo, 65% dos eleitores do partido de Trump ainda acreditam que Biden é um presidente ilegítimo, segundo uma pesquisa encomendada pela NBC News e divulgada há menos de um mês.
Em meio a este contexto, Trump se lançou nesta semana candidato à presidência nas eleições de 2024. Em terras brasileiras, Valdemar Costa Neto, o chefão do PL, já lançou Bolsonaro como candidato em 2026.