“Votei contra o Lula e agora vou ficar recebendo ordem de outro bandido?”, questiona um integrante do grupo de WhatsApp “Resistência Civil #15” na noite de 1º de novembro, um dia antes das manifestações pró-golpe convocadas pelos bolsonaristas para o feriado de Finados.
Era a resposta para um áudio que circula pelas redes desde segunda-feira com orientações supostamente atribuídas ao senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) —a voz, no entanto, parece mais a de outro filho, Eduardo— logo após a fala do pai, Jair, em Brasília, a primeira depois da eleição de domingo: “O recado foi claro, as manifestações são bem-vindas desde que não seja como do lado de lá. Que as ruas estejam um oceano de gente”.
“Até gosto do capitão, mas o Flávio é bandido demais”, reforça o participante. A resposta vem de outros integrantes. “Meu amigo, aqui não é questão agora. Até agora ele não responde por nenhum crime.” “Gente, o intuito aqui de nós todos é não deixar o PT assumir nosso Brasil.” “Remove ele. Administração.” O usuário é removido no segundo posterior.
A ordem nos sete grupos que a reportagem esteve presente desde a terça-feira era a mesma: divergir, só se for para continuar apoiando os atos pró-golpe. Nenhuma dessas ordens, no entanto, vinha de alguma liderança, e sim de anônimos que formam o grupo. Na mesma noite, surge a orientação de como todos deveriam se comportar no dia de Finados, nos atos convocados para a frente dos quartéis pelo Brasil:
Os cartazes deveriam pedir:
– Intervenção federal
– Resistência Civil
– Marcha das Famílias
– O poder emana do povo
– Censura não!
– Fora STF
Os apoiadores deveriam:
– Tocar o Hino Nacional
– Estar sem camisa do presidente
– Não usar o número 22
– Não usar músicas da campanha
Orientação prévia. Mesmo antes de o presidente falar, às 16h35 de terça-feira, o grupo já reinterpretava um possível recuo do presidente -seja no reconhecimento da derrota ou sobre o fechamento das estradas pelos caminhoneiros pelo país.
“Neste instante o PR Jair Messias Bolsonaro está se preparando para realizar um pronunciamento à nação. Estamos acompanhando e lembrem-se: ELE NÃO PODE PEDIR NADA. PORTANTO, VAMOS INTERPRETAR COM CAUTELA AS FALAS DO PRESIDENTE. VAMOS ACOMPANHAR OS APOIADORES PARA DECIDIR A MENSAGEM”, escreve um usuário uma hora antes.
Pouco antes das 16h, uma outra mensagem é transmitida em todos os grupos pelo mesmo usuário: “Urgente, povo! Presidente vai se pronunciar! E vai pedir para o povo desistir! Mas não é para ninguém desistir! Ele não pode pedir para o povo ficar na rua. Repassem essa notícia para todos! Fiquem fortes nossa última chance”.
Bolsonaro pediu de fato para que os bloqueios recuassem. “As manifestações pacíficas sempre serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir.” Dez minutos depois, os grupos recebem nova mensagem:
Patriotas, é chegado o momento de afrontarmos a corrupção do sistema e reconquistarmos nossos direitos. Que seja de maneira pacífica e ordeira, mas firme e convicta, porque Querida Pátria, teus filhos não fugirão à luta. Vamos fazer reverberar nossa voz em uníssono. Cada um de nós e ao mesmo tempo um só. Um só povo, uma única Nação. A Nação Brasileira. É hora de combatermos o bom combate! Que sejamos revestidos pela sabedoria e nobreza dos espíritos que antes nós já lutavam por uma Pátria Livre. RESISTÊNCIA CIVIL agora ou talvez nem tenhamos um novo amanhã.
Logo após a fala de Bolsonaro, quando o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, anuncia o início da transição para o novo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), uma apoiadora entra em pânico “#gente #ACABOU NÃO TEREMOS MAIS APOIO”. Ela é removida instantaneamente do grupo.
#contrafakenews. Às 17h20 do mesmo dia alguém publica: “URGENTE, ACABOU DE SAIR. O PRESIDENTE FALOU APÓS A COMITIVA (sic) DE IMPRENSA QUE ELE VAI DECLARA RESTADO DE SÍTIO. FOI DECLARADO ESTADO DE SÍTIO. O QUE FAREMOS AGORA PATRIOTAS?”
“Notícia de onde?”, pergunta o administrador. “Recebi de outro grupo”, responde o emissor. “Temos que ter cautela porque pode ser fake e desanimar ou assustar as pessoas”, diz o administrador.
Trollagem. “Me chamo Bruno Inácio. Dou tudo pelo meu país”, diz um novo integrante. “Seja bem-vindo, Bruno”, responde o administrador. Em seguida, o grupo é bombardeado de stickers atacando Bolsonaro e exaltando Lula. São mais de 50 figurinhas distribuídas em dois minutos. O usuário é removido. “Agora só quem posta é administrador”, define um integrante.
Apoio da PRF, discussão e corintianos. “Fizemos acordo com a PRF, estão nos apoiando, porém é preciso manter distância dos veículos. Só isso que pediram”, diz um integrante.
Era noite de terça-feira. Na manhã do feriado, começam as divergências. Um grupo pede apoio aos caminhoneiros que bloqueiam a Dutra, em São José dos Campos (SP). Diz que “as Forças Armadas já têm nosso apoio” e convoca os manifestantes para as estradas.
“Pessoal que está em frente ao CTA (Centro Técnico Aeroespacial): não tem absolutamente nenhum oficial aí dentro, hoje é feriado, só tem recruta, temos que travar a Dutra.” A ordem é ignorada por parte dos integrantes, que prossegue para o ato em frente ao CTA. “A esquerda vai ser mais estratégica que nós?”, reclama um deles.
Há também uma preocupação com a torcida Gaviões da Fiel, do Corinthians, que seguiu em comboio rumo ao Rio de Janeiro, quando enfrentou na noite de quarta-feira o Flamengo.
Pessoal, a Gaviões tá indo até os pontos de manifestações na Dutra e querendo desobstruir a passagem dos veículos. Alguém tá sabendo disso? A polícia não pode deixar com q esses atos aconteça e impeça o povo de se manifestar!!”
Pessoal que estiver indo pela manifestação pela Dutra. Muita atenção, torcida organizada do Corinthians está indo para o Rio de Janeiro. Já avisaram que vai ter confronto!”
“Para ajudar ou atrapalhar? A torcida do Corinthians?”, pergunta um integrante.
A resposta veio na rodovia. A torcida consegue passar, e algumas faixas dos manifestantes são arrancadas pelos corintianos.
Pix pode, consórcio não. Ao longo do dia, um dos administradores pede que os integrantes dos grupos (a reportagem participou de sete, com cerca de 250 integrantes cada) doem R$ 100 para uma conta do banco C6 por meio de um Pix identificado por número de CPF. O objetivo é comprar, entre outras coisas, pão e mortadela.
Pessoal, parte da liderança falando aqui. Preciso de apoio para comprar algumas coisas que estão faltando pro pessoal que está aqui no CTA e vai permanecer por tempo indeterminado. No momento temos bastante mantimentos (tais como pão, mortadela, água, café, manteiga, bolacha e etc) porém não tem nada de comida. Quem puder auxiliar nisso eu agradeço, é só me chamar aqui no privado”
Algumas pessoas mandam o comprovante de depósito. O administrador, no entanto, não presta contas no grupo e nem manda notas fiscais de compra de mantimentos para os bolsonaristas que bloqueiam as estradas.
Ele, no entanto, reage quando uma das integrantes passa a disparar uma mensagem vendendo créditos em consórcio -a reportagem recebeu uma dessas propostas. A mulher é expulsa.
Boicote ao Telegram no WhatsApp. “Vocês deveriam estar usando o Telegram porque diferentemente do WhatsApp ele não é monitorado”, diz uma bolsonarista. “Muitos petistas infiltrados nos grupos do Telegram”, justifica um deles.
“Não duvido que pelo WhatsApp também. Fomos alertados de não abrir links e preencher nada, muito menos abaixo-assinados pq estariam utilizando isso para virar o jogo contra os patriotas e sua luta”, diz outro. “Recebi bastante petição e não assinei nada.”
“Vdd estão compartilhando um link pra assinar impitimam do chadao kkk sei como escreve isso n kkk”, diz uma usuária —a grafia original foi mantida pela reportagem.
Até a publicação desta reportagem, a ordem nos grupos era articular novos atos, desta vez para o fim de semana. Uma exibição da Esquadrilha da Fumaça era um dos pontos. Uma outra manifestação era prevista para domingo no Rio de Janeiro. O foco, no entanto, havia mudado: o objetivo era expulsar os forasteiros. “Tem muito infiltrado neste grupo”, diz um deles.