Amanda*, 56, não pode nem ouvir falar em Black Friday. Enquanto milhões de brasileiros estão esfregando as mãos e fazendo as contas para aproveitar as ofertas do comércio nesta época do ano, a médica evita olhar anúncios na internet e passa longe de shopping centers para não cair em tentação.
Se fosse outro tempo, eu compraria tudo e dividiria em dez vezes no cartão. Agora não fico procurando ofertas para não brincar com o azar.
Amanda
Por que Amanda teme o que é tão desejado pela maioria? Sua relação com o dinheiro sofre de um desequilíbrio. Ela já chegou a ter uma dívida acumulada de cerca de R$ 250 mil e quase perdeu sua casa, que estava hipotecada. Tudo porque não conseguia controlar o impulso por gastar.
Não é um caso isolado. A funcionária pública aposentada Júlia*, 57, também evita as promoções da data. A vontade é aproveitar os descontos para comprar presentes de Natal.
Mas já faz algum tempo que decidiu não presentear mais ninguém. “Minha preocupação é comprar para um e não parar mais.”
Ela sempre agiu de forma impulsiva na hora de fazer compras.
Eu tinha 10 cartões e usava todos ao mesmo tempo. Uma vez entrei no mercado para comprar pão e saí com uma TV. Foi um impulso, como sempre fiz na minha vida toda.
Júlia
Amanda e Julia começaram a colocar as contas em ordem com a ajuda das reuniões dos Devedores Anônimos, grupo de apoio semelhante aos Alcoólicos Anônimos. Lá descobriram que têm uma doença sem cura: a compulsão por compras.
Júlia conheceu os Devedores Anônimos há 18 anos, quando tinha uma dívida de cerca de R$ 30 mil na época.
Amanda tomou contato com o grupo em 2020, em busca de ajuda. Na ocasião, ela devia cerca de R$ 250 mil.
Elas têm um descontrole químico: Mas como uma pessoa pode perder tanto o controle assim? Não é só fazer as contas e ver o que dá para comprar ou não? É muito mais complicado para alguns.
Os compradores compulsivos sofrem de onimania, um transtorno que se caracteriza pelo descontrole do impulso em atividades normais do dia a dia, como fazer compras ou contrair uma dívida.
O transtorno tem origem em uma predisposição química do organismo do paciente, muitas vezes associado a questões psicológicas, afirma Renata Fernandes Maransaldi, psicóloga do Pro-Amiti (Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso), do Hospital das Clínicas da USP.
É muito parecido com a dependência química, e não tem cura. Mas tem tratamento.
Renata Fernandes Maransaldi
Urgência e prazer em gastar: O UOL conversou com pessoas que sofrem com o impulso por gastar. Elas descrevem um sentimento de urgência e uma sensação de prazer no momento da compra, que se dissipa logo depois.
Todas elas contraíram dívidas que geraram transtornos e angústia. Mas todas também conseguiram, com ajuda, se desvencilhar de uma situação mais crítica, pagaram ou estão pagando suas dívidas e hoje vivem com mais tranquilidade.
Endividada mesmo com renda de R$ 25 mil: Ainda que a situação para quem tem renda baixa seja mais difícil, a compulsão por compras acomete pessoas de todas as classes sociais.
Amanda tem uma renda de cerca de R$ 25 mil mensais, mas o dinheiro nunca era suficiente para pagar suas despesas.
O fundo do poço para ela foi o início da pandemia da covid-19.
Fiquei três meses sem trabalhar, estava com 17 empréstimos e ainda devia para a Receita Federal. Meu maior perigo eram coisas caras. Mesmo cheia de dívidas, eu cheguei a viajar e voltar com um computador de última geração.
Amanda
Nas reuniões dos Devedores Anônimos, ela teve ajuda para organizar suas contas e parou de fazer empréstimos. Hoje já pagou a maior parte do que devia.
Gastar é ideia que não sai da cabeça: Júlia também conseguiu colocar suas contas em ordem, mas continua frequentando os encontros.
Continuo [a ir às reuniões dos Devedores Anônimos] porque a todo momento vivo pensando em gastar.
Júlia
As reuniões ocorrem tanto de forma presencial quanto online. Nelas, os relatos são anônimos, e os participantes são orientados a priorizar sua sobrevivência, não contrair novas dívidas e, aos poucos, negociar os débitos existentes.
Negociando com os credores: A negociação é uma das estratégias mais importantes para quem está devendo e pode reduzir a dívida de forma drástica.
Com uma renda mensal de R$ 2.200, o profissional de tecnologia Rafael*, 49, chegou a ter uma dívida de mais de R$ 170 mil com um banco. Após negociação, o débito foi quitado com R$ 5.000, divididos em quatro parcelas.
Muitas vezes você deve R$ 10 mil, e eles te oferecem um novo empréstimo, de R$ 30 mil, para quitar aqueles R$ 10 mil. Mas se estava difícil pagar 10, imagine 30.
Rafael
Rafael costumava gastar mais do que poderia principalmente em passeios com a família, ou para ajudar outras pessoas em dificuldades financeiras.
“Já paguei contas elevadíssimas de outras pessoas com dinheiro que eu não tinha. Hoje, quando alguém me pede algo, eu me pergunto sempre se posso fazer e se é algo realmente necessário”, diz.
Salário todo gasto em empréstimo: A professora aposentada Maria*, 58, viveu na pele a experiência de comprometer com empréstimos quase toda a sua renda.
Fiquei sem dinheiro para comer. Meu salário dava uns R$ 4.000, e vinham só R$ 995.
Maria
Ela também frequenta as reuniões dos Devedores Anônimos. Quando chegou ao grupo, tinha sete empréstimos e uma dívida de R$ 60 mil.
A bola de neve começou com um empréstimo de R$ 15 mil, que se tornou uma dívida de mais de R$ 40 mil. Com orientação, parou de fazer novas dívidas, reduziu suas despesas e está pagando seus débitos aos poucos.
Não sabem nem para quem devem: Um traço em comum entre as pessoas ouvidas pela reportagem foi a dificuldade em visualizar a dimensão real de suas dívidas nos momentos mais críticos.
“Muitas vezes a pessoa não sabe nem para quem deve, e temos dificuldade em identificar todos os credores”, diz Guilherme Farid, diretor-executivo do Procon-SP.
Falta de educação financeira piora situação: A falta de educação financeira ajuda a agravar o problema de quem tem impulso em gastar. Sem conhecer os mecanismos de crédito, a pessoa acaba recorrendo a produtos com juros altíssimos, como o cheque especial ou o rotativo do cartão de crédito, ou contraindo dívidas sem saber quanto vai pagar no total.
Há dois fatores principais que contribuem para o superendividamento, diz a economista Cristina Helena Pinto Mello, professora da ESPM e especializada em comportamento do consumidor.
“O primeiro é a ausência de educação financeira. A pessoa não entende direito o que está fazendo e se fixa só na parcela mensal. O segundo é o consumismo, que faz com que as pessoas não queiram adiar o consumo, elas querem agora e não pensam se podem ou devem comprar”, explica.
Nova lei tenta proteger quem não entende de finanças: O problema levou à aprovação, em julho de 2021, da Lei do Superendividamento, cujo objetivo é impedir ofertas abusivas de crédito a pessoas que não são capazes de arcar com a dívida sem comprometer sua sobrevivência.
A ideia é incentivar uma oferta de crédito transparente, em que o consumidor é informado sobre todos os fatores envolvidos no empréstimo ou na venda a prazo.
Crédito muito fácil nem sempre é bom: Ainda assim, modalidades controversas de crédito continuam existindo. Um exemplo é o crédito consignado do Auxílio Brasil, autorizado pelo governo federal em outubro, às vésperas da eleição.
“Um auxílio emergencial é para despesas emergenciais. Se for usado para consumo, vai faltar dinheiro para comida”, diz Myrian Lund, educadora financeira.
Aprender a gastar: Uma das características da compulsão por compras é que ela se baseia em comportamento incentivado na sociedade, que é o consumo. Por isso, o compulsivo precisa reaprender a comprar, diz Renata Maransaldi, do Pro-Amiti.
“Não vamos conseguir mudar o padrão da sociedade, então ele precisa aprender a identificar seus pensamentos e sentimentos relacionados à compra”, diz. O instituto atende gratuitamente a pessoas com diversos transtornos do impulso e viu a procura aumentar com a pandemia da covid-19.
Veja se você tem perfil de comprador compulsivo
As principais características de alguém com compulsão por compras são:
- Perda de controle sobre o ato de comprar
- Aumento progressivo do volume de compras
- Tentativas frustradas de reduzir ou controlar as compras
- Comprar para lidar com a angústia, ou outra emoção negativa
- Mentiras para encobrir o descontrole com compras
- Prejuízos nos âmbitos social, profissional e familiar
- Problemas financeiros causados por compras
Como lidar com o problema?
- Buscar acompanhamento psiquiátrico e psicológico
- Entrar em contato com grupos de apoio, como o Devedores Anônimos
- Ter auxílio para organizar as finanças pessoais e as dívidas
- Priorizar as contas básicas para a sobrevivência
- Não contrair novas dívidas
- Adequar o padrão de vida à própria renda
- Negociar com os credores, se possível com a ajuda de especialistas
Como ter uma relação saudável com o crédito?
A educadora financeira Myrian Lund dá dicas para ter uma relação mais saudável com o crédito:
- Evite fazer compras parceladas
- Tenha apenas um ou no máximo dois cartões de crédito
- Se entrar no cheque especial, que tem juros altíssimos, busque rapidamente um empréstimo com juros menores para quitar a dívida
- Se precisar de empréstimo, não pegue a oferta feita no caixa eletrônico ou no aplicativo do banco. O melhor é negociar com o gerente uma taxa de juros melhor
Onde encontrar ajuda?
Quem precisar de ajuda para negociar com credores pode buscar a Defensoria Pública da sua região, que atende de forma gratuita.
O Procon de São Paulo também tem um projeto de ajuda a superendividados desde 2008. Ele inclui a identificação das dívidas, a negociação com os credores e um programa de educação financeira.
Veja contatos para ajudar nesse processo:
– Procon e outras entidades de defesa do consumidor
– Grupos de Devedores Anônimos
– Defensoria Pública
– Pro-Amiti, programa do Hospital das Clínicas da USP
Endividamento recorde no Brasil: A realidade dos devedores compulsivos é um recorte extremo da situação preocupante em que vive a maior parte das famílias brasileiras. Os índices de endividamento e inadimplência das famílias bateram recordes em 2022.
Dados de outubro mostram que 79,2% das famílias estão endividadas, e que 30,3% têm contas atrasadas, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, elaborada pela Confederação Nacional do Comércio.
Isso em um contexto de juros elevados, o que agrava o problema. A mesma pesquisa destaca que os juros anuais nas linhas de crédito à pessoa física atingiram 53,7% em média em setembro, tornando mais difícil quitar os compromissos financeiros, principalmente para as famílias de menor renda.