A ativista socioambiental Angela Mendes recebeu com exclusividade a InfoAmazonia em sua casa, em Rio Branco, para uma conversa sobre a 33ª edição da Semana Chico Mendes, que celebra as ideias e os ideais de seu pai. Durante a entrevista, ela falou sobre as ameaças contra uma das reservas extrativistas mais importantes para a Amazônia e a tentativa de políticos locais, ligados ao agronegócio, de apagarem a memória do líder seringueiro morto há 34 anos.
Não demorou para que o tiro de escopeta disparado na pequena Xapuri, no interior do Acre, em 22 de dezembro de 1988, fosse ouvido em todo o mundo. A vítima, o líder seringueiro e ambientalista Chico Mendes, já havia denunciado à polícia e avisado sobre seu próprio assassinato, meses antes de morrer, mas o alerta foi em vão. Foi-se o homem e ficou o legado da luta pela preservação da Amazônia.
Passados 34 anos, sua memória segue viva, levada adiante por quem viu de perto os conflitos pela posse da terra que culminaram na morte do extrativista. Angela Mendes, filha mais velha do Chico, atua incansavelmente para não deixar morrer o que seu pai trouxe de mais valioso ao mundo: a ideia de que a verdadeira riqueza está na floresta em pé.
Motivação é o que não falta para a ativista socioambiental, nascida no Seringal Cachoeira, em Xapuri, para seguir firme na luta. Nos últimos quatro anos, a floresta amazônica foi testada no seu limite e passou a viver um cenário tão complexo quanto o que Chico presenciou nos anos 70 e 80. Daí a necessidade de manter sempre vivo seu nome, e também sua memória e seu legado, como explica Angela. Ela também atua como coordenadora do Comitê Chico Mendes, uma rede de articulação de ativistas e amigos do ex-seringueiro.
Nesse sentido, de sempre manter Chico “vivo”, que o Acre recebeu, entre os dias 15 e 22, mais uma edição da Semana Chico Mendes. O evento, realizado anualmente entre os aniversários de nascimento e morte do ambientalista, tem a missão de resgatar e propagar os ideais do patrono do meio ambiente brasileiro. Tudo sob a liderança de Angela, que por onde vai leva consigo a memória do pai.
Em 2020, durante a rearticulação da Aliança dos Povos da Floresta, idealizada por Chico Mendes e que uniu pela primeira vez indígenas e seringueiros contra os inimigos em comum, Angela foi convidada pelo lendário Raoni para representar o pai em um encontro de lideranças tradicionais na aldeia do cacique, onde foi recebida com pompa.
Se nas florestas Chico Mendes é visto como herói, o mesmo não se pode dizer no ambiente político do estado onde o seringueiro nasceu, cresceu e morreu. Em entrevista exclusiva à InfoAmazonia, Angela revela que os atuais governantes do Acre, ligados ao agronegócio, deram início a uma cruzada para apagar a memória do seu pai do imaginário da população local.
Na conversa, ela fala ainda sobre as ameaças à reserva extrativista que leva o nome de seu pai – território que é o símbolo máximo da luta do ambientalista – e alerta para a emergência climática que o mundo vive, tema que pauta a 33ª edição da Semana Chico Mendes.
InfoAmazonia – Trinta e quatro anos se passaram desde que seu pai foi assassinado, e o nome dele segue sendo evocado na Amazônia. Por que falar de Chico Mendes em 2022?
Angela Mendes – É porque as pessoas ainda não tomaram plena consciência de que o que ele falava já está acontecendo. A crise climática é um exemplo. Frente ao atual cenário político no Brasil, com ameaças ao meio ambiente e violência contra populações tradicionais, se faz cada vez mais necessário não só falar de Chico Mendes, mas agir de acordo com seus ideais. Os inimigos de hoje são os mesmos daquela época: grileiros e madeireiros ilegais, com o governo Bolsonaro fazendo o papel que a ditadura militar fazia. Então, mais do que nunca, a gente precisa manter vivos a memória e o legado do meu pai. A Semana Chico Mendes é para que as pessoas de hoje ouçam o que o meu pai teria a dizer se estivesse vivo, porque sua luta não acabou.
Quais legados de Chico Mendes a Amazônia precisa hoje?
A própria concepção de que a floresta em pé tem valor, algo que na década de 70 era pouco falado. Quando ele foi vereador em Xapuri, nessa mesma década, esse já era um discurso muito forte dele. Tem também a criação de áreas de uso sustentável, como as reservas extrativistas, que eu entendo ser o legado mais palpável, porque deixa uma somatória grande de patrimônios ambiental, social e cultural protegidos. A educação libertadora para a construção de uma sociedade mais crítica também é um legado importante. O Projeto Seringueiro, idealizado por ele, foi uma ação educativa ousada para a época porque foi pensada para que os trabalhadores dos seringais, que viviam em regime de semiescravidão, pudessem se libertar. Pelo menos 18 mil pessoas foram alcançadas.
A Resex Chico Mendes, no Acre, foi pioneira no conceito de unidade de conservação e é um dos símbolos mais importantes da luta do seu pai, como você afirmou. No entanto, o território tem sofrido ameaças que põem em xeque seu modelo, como desmatamento, invasões e venda de terras pelos moradores. Como você vê essa situação?
Dia desses, eu conversava com um jovem que mora lá. Ele está em uma briga com a família, que quer vender a propriedade. Ele não aceita porque diz que ali é a vida dele. Ele chegou ao ponto de fazer uma denúncia no ICMBioAutarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente responsável por ações ligadas ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação.. Então, essa é a realidade, infelizmente. E não há, no momento, nenhum sinal de mudança. As invasões e a grilagem continuam, e o pessoal segue parcelando suas áreas. A questão das facções no território também permanece e tudo isso é muito grave. Acontece que foram tantos desmontes, que a resposta positiva não vem como a gente gostaria. E aí, o que fazer?
O que é mais urgente para a Resex Chico Mendes superar esse cenário?
Primeiro de tudo, ouvir quem está no território, porque com certeza quem vive essa realidade sabe as saídas. Além disso, reorganizar e fortalecer as associações comunitárias com um trabalho de base forte. Precisamos também reavaliar o modelo de gestão do ICMBio. A gente chegou até aqui porque o ICMBio nunca foi um órgão que tivesse, de fato, competência para gestar a Resex Chico Mendes. Acha que fazer gestão é só aplicar multa. Precisa multar sim, porque quem está errado deve pagar, mas o fazer gestão é também possibilitar que as pessoas tenham acesso a políticas públicas que farão com que melhorem de vida. Uma agenda positiva. Até então o ICMBio só tem agenda negativa para lá. Mudar isso é crucial.
Ouvir quem está no território, porque com certeza quem vive essa realidade sabe as saídas. Além disso, reorganizar e fortalecer as associações comunitárias com um trabalho de base forte. Precisamos também reavaliar o modelo de gestão do ICMBio. A gente chegou até aqui porque o ICMBio nunca foi um órgão que tivesse, de fato, competência para gestar a Resex Chico Mendes.
Como a Semana Chico Mendes abordou essas pressões contra a Resex?
Tivemos uma atividade que reuniu os moradores da reserva, aqueles que estão sendo mais impactados pelas invasões e pelo desmatamento, para pensar soluções. A gente está na expectativa de que o futuro governo faça uma reavaliação das Resex. Não do conceito do território, mas sim da forma de gestão, porque se 30 anos depois a gente ainda fala de desmatamento em reserva é porque algo está errado e tenho certeza que não é o modelo, porque se fosse isso não existiria mais Resex no Brasil. O que a gente precisa atacar são os gargalos para que de fato possamos dizer que a reserva cumpre seu real papel.
Em 2022, a Semana Chico Mendes escolheu como tema as mudanças climáticas. Qual a importância de trazer esse assunto para discussão?
Debater justiça climática é importante porque passa por um conjunto de outros fatores, como o desmatamento, queimadas e emissões de gases do efeito estufa. A gente precisa que as pessoas entendam que as suas ações têm influência sobre isso. Na Amazônia já é possível sentir como o clima está mudando, principalmente quando olhamos para o regime de chuvas. Então a gente decidiu falar sobre isso, especialmente após a COP27, que não trouxe resultados tão bons assim. Me parece que os efeitos dessas convenções nunca chegam na base. Então, entender porque isso acontece é importante de se discutir também.
E qual a saída para a Amazônia, diante desse cenário de mudanças climáticas?
Precisamos olhar a Amazônia com outros olhos. Se a gente quer protegê-la, temos que mudar esse olhar de que a região é apenas fonte de matéria-prima para atender os commodities da carne, soja e minério. A Amazônia não vai ser responsável pelo PIB do Brasil disparar, mas vai ser responsável pelo Brasil cumprir o compromisso no qual ele sempre foi referência, que é manter suas florestas e populações protegidas. As boas experiências na floresta mostram que é possível aliar isso à economia, só que elas precisam ganhar mais escala. Na Resex Chico Mendes tem coisa boa acontecendo. A gente tinha que ter esse olhar de fortalecer esses negócios para apagar da imagem das pessoas que o gado é a única solução, porque ele não é. Mas, às vezes, pra quem não tem nada em vista, o gado acaba sendo mesmo a solução.
Essa é uma responsabilidade também dos governos locais, certo?
Correto, mas, infelizmente, não investem. Nem os governos de esquerda conseguiram enxergar isso. Em Xapuri, por exemplo, ninguém soube capitalizar essa história de resistência que nasce ali, do potencial que o município tem. Ao contrário, o povo da cidade tem raiva da gente. Há também uma tentativa de apagar a história do meu pai. Temos exemplos disso.
Poderia citar alguns?
Tudo o que tem acontecido com a Resex Chico Mendes está dentro desse contexto de apagamento histórico da luta do meu pai, porque o território tem todo um simbolismo ao levar o nome dele e ser a maior reserva do Acre. O PL 6024, que reduz os limites da reserva, entra nessa conta, assim como o não atendimento das demandas da comunidade e a fragilização do ICMBio. A Casa do Chico Mendes, em Xapuri, continua fechada, a ponto de cair. O apagamento dos grafites com o rosto do meu pai eu encarei como o sinal mais forte de que os atuais governos estavam com essa intenção. A derrubada da estátua do Chico, a falta de manutenção na Praça Povos da Floresta, o fechamento da Biblioteca da Floresta, que guarda a memória do meu pai, e a possibilidade de a Avenida Chico Mendes mudar de nome completam a lista. O atual governo local não tem compromisso com essa história.
Como você avalia os quatro anos de Bolsonaro para a Amazônia?
Foram os piores anos que eu me lembro. Nunca vi tantos retrocessos e tanta violência, com o Brasil voltando ao mapa da fome. Incrível também como não se liga para as vidas humanas: temos hoje gerações inteiras de crianças indígenas com a vida comprometida pelo garimpo, que atua de forma violenta. A gente viu a situação no Tapajós. Essa permissividade foi criada neste governo, de que tudo pode, de que quem tem dinheiro pode violentar e matar. A cada fala e discurso do presidente se entendia que havia ali intrínseco uma violência subjetiva, um código para se agir de forma violenta. Isso foi um projeto político que deu certo nesses quatro anos, mas graças a Deus parte da população acordou.
O Brasil liderou o ranking mundial de assassinatos de ambientalistas na última década. Só em 2021, foram 26 mortes desse tipo no país. Como lidar com essa realidade 34 anos após a morte do Chico?
Eu vejo com tristeza, porque avalio que em algum lugar a gente ainda não conseguiu acertar o passo. Apesar de que neste governo esse cenário se potencializou, os assassinatos de lideranças socioambientais nunca pararam. Isso porque parte do agronegócio é violento e quer cada vez mais o lucro. Então, a Amazônia acaba sendo uma terra que desperta cobiça e ambição, seja das mineradoras, seja da indústria da pecuária e da soja. Essa violência contra as populações e territórios é resultado desse sistema que tomou conta do Brasil. Lutar contra isso é muito difícil, porque já está arraigado.
E daqui para frente, após a mudança de governo, quais as suas expectativas para a Amazônia?
Acho que o próximo governo vai ter muito trabalho para refazer, e vai ter que refazer melhor do que estava, porque a gente sofreu muito nesses últimos quatro anos. As expectativas são grandes. Lula fez um bom pronunciamento na COP27, falou da criação do Ministério dos Povos Originários, do controle e do combate ao desmatamento na Amazônia, da destinação das terras públicas, que eu acho importantíssimo. Gostaria muito de ver fortalecidos os órgãos gestores, como a Funai e o ICMBio, principalmente para a escuta das populações que moram nos territórios, para, juntos, entenderem onde estão os gargalos. O melhor é sempre ter em mente que cada passo precisa ser dialogado com as pessoas. Elas precisam se sentir parte do processo. É criar e fazer com elas, e não para elas. Vai ser preciso um grande pacto nacional pela Amazônia.