Na última semana, uma interação entre participantes do Big Brother Brasil 23 ganhou as redes sociais com um debate há muito conhecido. O tema surgiu quando o modelo Gabriel Tavares entrou no quarto para pegar uma toalha que estava em cima do móvel.
O brother pediu uma ajuda para outra participante e indicou que estava em cima do “criado-mudo”. Foi quando a cantora Marvvila interveio e o corrigiu.
“Só pra te dar um visu, porque eu acho que você não deve saber. Mas você falou ‘criado-mudo’, né? Então, esse termo não pode se usar mais, porque é racista, entendeu?”, disse a sambista.
Dentro do BBB, o assunto pareceu ter sido encerrado ali mesmo. Já fora da casa, o tema deu o que falar. Afinal, “criado-mudo” é ou não é uma expressão racista?
Mano eu NÃO AGUENTO MAIS. a história de que “criado-mudo” é um termo racista, queria saber quem foi o publicitário imbecil que inventou isso pra ir lá dar um pescotapa nele.
— Gabi Bianco (@gabibianco) January 19, 2023
Relação com negros escravizados?
Segundo o entendimento que se popularizou, o pequeno móvel que fica junto à cabeceira das camas, normalmente com abajur ou copo d’água, se chamaria “criado-mudo” porque, no passado, seria função dos escravos segurar a jarra de água para seus senhores enquanto estes dormiam. Eles teriam as línguas cortadas para não atrapalhar o sono de seus senhores. Com o tempo, um móvel os substituíram, mas o nome teria sido mantido.
Ao menos essa foi a história contada pela rede de móveis Etna, em uma campanha de marketing que viralizou em 2019.
Veja abaixo o vídeo da campanha:
Móvel inglês
Outra teoria para o termo é que ele teria vindo, na verdade, do inglês britânico “dumbwaiter”, algo como “garçom burro” em tradução livre, que foi um móvel inventado na Inglaterra. Na época, as famílias ricas usavam esse tipo de móvel para colocar os materiais para o chá, dispensando a necessidade de criados que poderiam ouvir conversas sigilosas durante o lanche.
Antes de ter o aspecto de mesa de cabeceira que conhecemos, “dumbwaiters” eram mini-elevadores usados para levar e trazer utensílios de um andar ao outro nas mansões. Por ser limitado e ter como única função servir as pessoas, o apelido de “garçom burro” pegou.
Não consta nos dicionários
No entanto, um furo na justificativa é que não há nenhum indício do uso de “criado” como sinônimo de “escravo” no Brasil escravagista. No Diccionario da Lingua Brasileira,de 1832, não existe o verbete “criado-mudo” e no Diccionario da Lingua Portugueza, de 1980, diz que o nome do móvel era “donzella”. As informações são de Thiago André, graduando em história e criador do História Preta, podcast documental sobre a história da população negra.
Atualmente, “criado-mudo” é descrito nos dicionários como “pequeno móvel, junto à cabeceira da cama, onde se colocam e guardam os objetos de que se pode precisar principalmente durante a noite” (Michaelis).
Ao Terra, o comunicador reitera que não há indícios dessa suposta origem, mas prefere não entrar no mérito se, de fato, “criado-mudo” é uma expressão racista ou não.
“Não é essa a questão. Dentro do meu campo de conhecimento, a origem que é dada para esse termo é muito pouco provável, bem remota que essa palavra tenha surgido como está sendo contada”, completa.
Enfraquece a luta antiracista, diz linguista
Para Maurício José de Souza Neto, mestre em Língua e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor de livros sobre língua, raça, racismo e justiça social, é mais coerente a segunda versão da origem do termo. Segundo ele, não há indícios nos registros brasileiros que, em algum momento da época escravagista, pessoas escravizadas tenham sido usadas como móveis.
Há, no entanto, uma passagem no livro ‘Viva o Povo Brasileiro‘, do autor João Ubaldo Ribeiro, que trata escravos como móveis pertencentes ao personagem principal, um homem escravagista. “Fora isso, não tem na literatura histórica uma fonte fidedigna que dê conta de pessoas que ficavam segurando copos de água ao lado da cama para seus senhores”, diz o linguista.
“Isso é uma forma de artificialmente enfraquecer os movimentos de luta, porque as pessoas de fora olham e dizem: ‘ah, isso aí é lacração”, diz linguista.
Souza Neto, inclusive, critica a ação de marketing que popularizou o boato sobre a relação entre o móvel e uma suposta função de escravos. Em sua avaliação, isso pode desviar a atenção de pautas sérias.
“Há uma necessidade de monetização em relação às demandas reais que acabam sendo esvaziadas por campanhas de marketing, que enfraquecem o movimento antirracista”, critica.
O linguista chama a atenção ainda para o fato de que, ainda que fosse um termo racista, a luta contra a desigualdade racial e contra as heranças do Brasil escravocrata deve ser conduzida com ações, não só mudando o vocabulário.
“Eu acho legal você se preocupar com a palavra, mas não podemos encerrar por aí e resumir a situação do racismo a isso. Precisamos de ações também”, acrescenta.