Nos últimos dias do ano passado, um curioso barco, que mais parecia uma grande balsa de madeira apoiada sobre dois cascos, chegou à Ilhabela, no Litoral Norte de São Paulo.
E, de cara, chamou a atenção pelo seu formato e rusticidade.
Mas, ainda mais peculiar era quem o comandava: uma jovem e bonita americana, chamada Kiana Weltzien, de apenas 26 anos de idade, também sua única tripulante.
E ela vinha de longe, muito longe, com aquele estranho barco.
Americana, mas brasileira
Kiana partira de Cabo Verde, na costa da África, um mês e meio antes, e cruzara todo o Atlântico, até chegar à costa brasileira, 43 dias depois.
E aqui se sentiu duplamente em casa. Por dois motivos.
Primeiro, porque aquele peculiar barco é mesmo a sua “casa”, desde que, sete anos atrás, decidiu trocar um conservador emprego de corretora de imóveis em Miami pela vida no mar.
E segundo porque, a despeito de ter nascido nos Estados Unidos, Kiana foi criada no Brasil (onde ainda mora o seu pai) e fala português — sem nenhum sotaque — melhor do que nós.
“Morei em um sítio em Atibaia dos quatro aos doze anos, e já estava com saudades do Brasil. Daí, peguei o meu barco e vim, passar um tempo aqui”.
Até quando?
“Não sei ainda. Até quando der vontade de voltar a navegar pelo mundo, levando a minha casinha junto”, diverte-se Kiana, que ainda está perambulando pelo Litoral Norte de São Paulo, sem muitos planos para o futuro.
Mudou de vida e de valores
“Tenho hoje a vida que sempre quis ter quando me aposentasse, mas não precisei esperar isso acontecer”, explica. “Bastou mudar de vida e de valores”, diz Kiana, feliz da vida com a vida que hoje leva no mar.
Uma vida extremamente simples — a começar pelo próprio barco que lhe serve de casa.
Como é o barco casa dela?
O barco de Kiana, batizado “Mara Noka” (algo como “Pequena Ilha em Mar Calmo”, no idioma polinésio), foi construído meio século atrás, e mais parece duas canoas unidas por grande tablado de madeira.
Tudo nele é rústico ao extremo.
Os dois cascos, dentro dos quais fica a “cabine” onde Kiana mora (nada além de um par de camas e uma cozinha improvisada — o banheiro é um balde do lado de fora) são atados com cordas, para o barco ter flexibilidade e não oferecer resistência ao mar — “É mais seguro assim”, garante Kiana.
Já o leme, que dá direção ao barco, usa um primitivo (mas eficiente) sistema feito também com cordas, enroladas no eixo, feito um carretel – quando um lado puxa, o outro solta, e vice-versa, movimentando assim o leme, debaixo do barco.
As velas são simples panos de algodão, que frequentemente rasgam e precisam ser costuradas — quando não jogadas fora, após uma longa jornada, como a que ela acabou de fazer no Atlântico. E o mastro não passa de um poste de rua de madeira, fincado no meio do tablado.
Ela mesma o reformou
Kiana comprou o barco no Panamá, com o pouco dinheiro que tinha, e ela mesma o reformou, cortou, lixou, pintou, aperfeiçoou, porque não podia pagar um estaleiro para fazer o serviço.
“Muitos diziam para eu desistir, que aquilo não era serviço para uma mulher, que não iria conseguir, mas olha o barco aqui!”, sorri a americana-brasileira, que aplicou no seu peculiar catamarã os mesmos conceitos de simplicidade que pratica no dia a dia da sua vida no mar.
Chuveiro e banheiro são baldes
O chuveiro de Kiana é um balde, que despeja sobre a cabeça, e a comida (geralmente peixe, que ela mesmo pesca) é feita em um fogareiro a base de carvão e gravetos, ao ar-livre, no convés feito de tábuas do barco.
Também ao ar-livre, ela deita sobre colchões e almofadas para ler livros, se exercita, ouve música e passa horas apenas contemplando a paisagem.
Às vezes, quando está em alto-mar, sem viva alma por perto, Kiana tira a roupa e toma banhos de sol.
Mas sempre sozinha, como gosta de estar — embora, recentemente, tenha atravessado o Atlântico (já fez isso quatro vezes) na companhia de duas amigas, como parte de um projeto que criou, o Women and the wind (“Mulheres e o vento”, em português), que busca incentivar mulheres a realizar seus sonhos.
“Não quero influenciar ninguém a fazer o que eu faço, mas sim a superar os receios de mudar radicalmente de vida, em busca da felicidade”, explica.
Em defesa da natureza
Ultimamente, Kiana também passou a se dedicar com afinco a questão do lixo no mar, coletando plásticos (“Sacolinhas de supermercado deveriam ser banidas no mundo inteiro”, indigna-se) e denunciando abusos que testemunha em suas travessias.
Como na chegada ao Brasil, quando navegou três dias inteiros sobre uma espessa camada de óleo na superfície do mar, possivelmente oriunda das plataformas de petróleo da Bacia de Campos.
“Fiquei chocada. Era muito óleo na água”.
Vive com R$ 1.000
No seu pra lá de modesto dia a dia, Kiana vive com cerca de 200 dólares por mês (pouco mais de R$ 1 000), dinheiro que usa apenas para comprar comida e que ganha escrevendo artigos para revistas.
Desde que decidiu trocar a terra firme pelo mar, e Miami por um barco primitivo, Kiana se acostumou a viver com pouco, inclusive no conforto. Mas garante que vive feliz, bem feliz, como contou no canal de Youtube #Sal, dedicado a pessoas que transformaram o mar em moradia.
“Acho que, de certa forma, sou um pouco hippie, porque me identifico com a simplicidade da vida que era pregada por aqueles grupos”, analisa Kiana, com clareza — como, aliás, em tudo o que faz na vida.
Medo, não. Cuidados, sim
Medo no mar, Kiana garante que não sente — “Não dá tempo, porque eu fico o tempo todo atenta apenas aos movimentos do barco. E isso ocupa toda a mente”.
Mas, em nome da sua segurança pessoal, sempre que cruza com outro barco em locais mais isolados, se abriga na cabine do barco ou esconde os longos cabelos loiros debaixo de um chapéu. “Mulheres sempre aparentam ser mais vulneráveis, daí a necessidade de tomar certos cuidados. Mas me sinto muito segura na minha casinha que navega, e não sinto falta nem de companhia a bordo”, diz.
“Vivo muito bem do jeito simples que vivo”, resume a jovem capitã de um barco que pouco teriam coragem de usar.
Preferência pela simplicidade
Kiana, contudo, não é a única pessoa do mundo do mar que pensa assim.
Ao contrário, muitas outras pessoas que vivem da mesma forma, embora pouquíssimas sejam mulheres, muito menos tão jovens — e solitárias — quanto ela.
A história, no entanto, registra muitos outros casos de navegadores que sempre preferiram barcos extremamente básicos.
Uma família criada no mar
Um deles, talvez o mais famoso do gênero, foi o norueguês Per Tangvald, cuja paixão por barcos rústicos só não era mais do que pelas mulheres, o que levou a colecionar casamentos (teve sete) e, infelizmente, também tragédias no mar, a começar pela sua própria morte, em 1991.
Mas Per, que todos chamavam de “Peter”, deixou um herdeiro ainda mais radical na arte de navegar com barcos simplórios: seu filho Thomas, que adorava navegar com veleiros sem nenhum recurso moderno.
E foi a bordo de um deles que Thomas aumentou ainda mais a trágica história da família, ao desaparecer no mar, quando navegava a caminho da ilha brasileira de Fernando de Noronha, nove anos atrás.
Nunca nada foi achado. Nem mesmo um simples pedaço do seu rústico barco — clique aqui para conhecer a peculiar história da família Tangvald.
Já a jovem capitã Kiana não teme que nada de mal lhe aconteça.
“Confio no meu barco e sei que nele estou segura”, garante a intrépida americana-brasileira.