Personagens mulheres estão cada vez mais presentes nos videogames. Na última década, à luz do movimento feminista e com um maior questionamento sobre gênero no mundo, temos visto uma maior presença de mulheres no time de desenvolvimento de jogos e a ascensão de personagens femininas. Nomes como Ellie, Abby e Aloy, de The Last Of Us e Horizon Zero Dawn, respectivamente, são exemplos de personagens que provam que estúdios estão desenvolvendo protagonistas opostas à feminilidade passiva, hétero e padrão que até então era marca da indústria dos games.
Por mais que tenham estado sempre presentes nos jogos, historicamente, essas personagens tiveram representações marcadas pelo pouco desenvolvimento nos enredos, exercendo papéis de apoio para protagonistas homens. Mesmo quando ganharam destaque, elas ainda sofreram por caírem em estereótipos misóginos e com a sexualização de seus corpos. Hoje, felizmente, esse panorama começar a mudar. Pensando nisso, o TechTudo fez uma lista de cinco personagens mulheres que são exemplos em termos de representatividade e que precisam ser exaltadas.
A representação das personagens na história
As personagens femininas já assumem papéis nos games há muito tempo. Historicamente falando, as primeiras aparições surgiram ainda na década de 1980, como uma tentativa de atrair mais mulheres para trabalhar nessa indústria. A pioneira foi a Ms. Pac Mac, uma “versão feminina” do icônico personagem que contava com batom e lacinho na cabeça.
Entre as humanas, Samus Aran, protagonista da série Metroid, foi o grande destaque do período. Vale ressaltar, no entanto, que escondida debaixo de uma armadura, houve muito mistério até que sua identidade fosse revelada – o que tinha relação com o fato da protagonista do game ser uma mulher.
Mesmo com esse primeiro movimento, a presença das personagens continuou restrita com o passar das décadas. Quando elas apareciam, na maioria das vezes, era a partir de estereótipos de gênero, principalmente o de “donzela em perigo”. Esses eram os casos das princesas Peach, de Super Mario Bros. (1985) e Zelda, em The Legend of Zelda (1996), por exemplo.
O panorama mudou de figura com o surgimento de uma figura marcante dos games: a arqueóloga britânica Lara Croft. A exemplo de Samus Aran, a personagem também teve um título para chamar de seu – a franquia Tomb Raider, que estreou em 1996. Diferentemente do que era comum na época, Croft não era mais uma donzela em perigo, e sim uma personagem fria que não hesitava na hora de passar por cima dos inimigos.
Entretanto, o que poderia ser uma vitória para a representação, na verdade, se tornou um “momento transitório”. Isso porque, se antes as personagens femininas em games eram usadas para atrair mais profissionais mulheres para a área como uma “estratégia de marketing”, com a chegada de Lara, elas se tornaram sex symbols.
A arqueóloga marcou o início de uma nova fase da representação feminina nos jogos – uma em que seus corpos passaram a ser extremamente sexualizados. Não à toa, todo o design da personagem foi feito para passar a ideia de ser uma assassina perigosa, mas “sexy”. E esse modelo de representação passou a ser bem visto pela mídia da época, uma vez que ele gerava audiência e dialogava diretamente com o público masculino, maioria entre os consumidores de jogos até então.
A consequência disso são décadas de representações onde os corpos têm grande destaque e o desenvolvimento das personagens quase não acontece – isso é, quando elas aparecem. Até mesmo em franquias renomadas, como God of War, a presença das mulheres estava comumente atrelada à nudez, ao suporte para os personagens masculinos ou mesmo à necessidade constante de salvamento, como aconteceu com Ashley em Resident Evil 4. Raras eram as que fugiam desses arquétipos. Contudo, recentemente, esse panorama vem mudando.
Por que essas representações importam?
Precisamos considerar que, assim como outros produtos de entretenimento, os jogos estabelecem relações de projeção e identificação com seus consumidores. Afinal, tudo o que vemos nas telas como enredo, trazemos para a nossa vida de alguma forma – seja como aprendizado, inspiração ou lição.
Por isso, a representatividade de mulheres em games, feitas de forma realista, são essenciais. Ao evocarem a experiência feminina no contexto de cada título de maneira consciente, proporcionam conforto para que meninas se insiram no universo dos jogos, tanto como players quanto como desenvolvedoras, por exemplo. Nesse sentido, vale destacar que, segundo dados da Pesquisa Game Brasil, as mulheres já são maioria no mundo gamer (53%). No entanto, 59% delas ainda sente necessidade de esconder seu gênero durante partidas online para evitar assédio, de acordo com a Reach3 Insights.
Esse movimento também faz com que os jogadores vejam a gameplay, e, então, o mundo à sua volta, por uma nova perspectiva: gradualmente, mais distantes das amarras da objetificação, da sexualização e de ideais sexistas. Isto é especialmente importante ao considerar que o ambiente gamer, ainda “dominado” pelo público masculino, é conhecido pelo comportamento tóxico em relação às mulheres e minorias, como pessoas LGBTQIA+.
Quando os assuntos são os estúdios de games e a forma com que eles vêm representando as mulheres, felizmente, as mudanças são notáveis. Isso porque, nos games mais atuais, há personagens como:
Sadie Adler, de Red Dead Redemption 2
Introduzida no segundo jogo da franquia de faroeste da Rockstar, Sadie é uma das principais personagens femininas da indústria. Na trama do game, ela é apresentada como a viúva de Jake Adler, e busca a todo custo conseguir vingança contra os assassinos do marido. Assim, após cruzar com a gangue de Van Der Linde, ela decide se juntar a eles, transformando-se em uma das principais figuras do grupo. Aqui, vale dizer que mesmo com sua aproximação aos membros, como o protagonista Arthur Morgan, em nenhum momento ela é desrespeitada ou sexualizada por eles.
A história da personagem é muito bem desenvolvida durante o game, de forma que é possível acompanhar ativamente a sua evolução. Assim, ela se distancia da representação estigmatizada de mulheres em jogos, sendo alguém implacável, destemida, leal e, principalmente, independente. Para além da personalidade, também cabe destacar a aparência de Sadie, que não é vista com roupas que a enquadram em estereótipos de “donzela” ou “femme fatale” (em tradução, mulher fatal).
Aloy, de Horizon Zero Dawn e Forbidden West
A franquia Horizon, ambientada em um futuro distópico, é encabeçada pela heroína Aloy, que busca respostas sobre seu passado. Quando ela descobre quem realmente é, percebe ser a única capaz de salvar a humanidade e o planeta, dominado por máquinas hostis em forma de animais, da extinção. Ao longo de toda a gameplay, acompanhamos uma protagonista curiosa, carismática e que aprende mais sobre si e o mundo junto do jogador.
O que mais chama a atenção em Aloy, de forma geral, é o seu senso de justiça e responsabilidade, traços que são comumente vistos em personagens homens (especialmente os que também precisam salvar o mundo). Além disso, mesmo recebendo a ajuda de muitos amigos pelo caminho, ela é alguém com extrema autonomia, capaz de salvar a si e a outros em diversas ocasiões e sem grande dificuldade.
Chloe Price e Max Caulfield, de Life is Strange
Amigas de personalidades completamente opostas, Chloe e Max são as duas principais personagens do jogo indie da Square Enix. Enquanto a primeira é uma jovem autêntica e durona, a segunda é mais introvertida e observadora, embora ambas sejam muito valentes. Juntas, elas lidam com a descoberta e as consequências dos poderes de viagem no tempo de Max, de forma que tentam resolver mistérios do passado e impedir tragédias do futuro.
O desenvolvimento das personagens ao longo da trama chama especial atenção por exemplificar, de forma profunda, a descoberta da identidade pessoal, principalmente enquanto mulher. O game ainda deixa esse processo mais complexo ao fazê-las lidar, ao mesmo tempo, com questões de saúde mental, assédio, bullying e o cumprimento dos papéis de gênero na interiorana cidade de Arcadia Bay.
Assim, Life is Strange traz, por meio de suas protagonistas, um vislumbre poderoso do universo feminino, suas problemáticas e desdobramentos – algo que pouquíssimos jogos conseguiram fazer em mais de 80 anos de indústria.
Senua, de Hellblade: Senua’s Sacrifice
A protagonista de Hellblade: Senua’s Sacrifice é uma jovem guerreira celta em uma jornada contra os seus próprios demônios. Após presenciar um evento traumático, Senua desenvolve psicose, uma doença reproduzida com muito cuidado e responsabilidade pela equipe da desenvolvedora Ninja Theory. Senua ouve vozes, enxerga coisas que não estão lá e acredita precisar ir até Hell, reino nórdico dos mortos, para resgatar seu falecido marido Dillion e trazê-lo de volta à vida.
A construção de Senua como personagem oferece diversas inversões em relação aos arquétipos das personagens femininas. Em primeiro lugar, ela subverte a ideia da donzela em perigo por ter que ir ela mesma atrás de seu marido. Mas, o fato de ser uma guerreira nessa posição não a transforma em uma matadora fria e sem sentimentos. Por conta de seu transtorno, Senua é uma personagem profundamente conectada aos seus medos e que precisa, urgentemente, aprender a acreditar em si. Toda a jornada até Hell é, na verdade, uma alegoria para o seu desenvolvimento pessoal, o que envolve aceitar a psicose como parte dela, e não mais enxergá-la como uma fraqueza.
Ellie e Abby, de The Last of Us
The Last of Us é uma franquia de games cuja representação de personagens femininas é muito positiva. A começar pelo fato de que existe uma equivalência entre os papéis dos homens e das mulheres na série. Joel, por exemplo, é um contrabandista tão perigoso quanto Tess. Tommy lidera o grupo de Jackson ao lado de sua esposa, Maria. Já Marlene é a líder dos Vagalumes, a milícia mais importante do game. Vale ressaltar, inclusive, que ela é uma mulher preta, algo ainda mais raro de se encontrar nos jogos eletrônicos, ainda mais assumindo um papel de tamanha importância.
Além disso, em The Last of Us, essas personagens não são pontos de partida e nem de chegada para o desenvolvimento dos personagens masculinos – todas elas têm a sua própria história. No segundo game, The Last of Us Parte II, é a ação de Abby que faz com que Ellie embarque em uma jornada de vingança. Da mesma forma, a morte de um personagem masculino ao final do primeiro jogo traz Abby a uma posição de protagonismo na sequência.
Outro ponto que vale destacar em relação à Ellie é que a personagem é a primeira a protagonizar um romance LGBTQIA+ em um AAA de forma explícita. Como o público dos jogos eletrônicos ainda é muito resistente a esse tipo de representação, o relacionamento entre Dina e Ellie é um passo muito importante. Quanto a Abby, destaca-se a sua fisionomia: em vez de sexualizada, a personagem é musculosa como uma fisiculturista, além de usar roupas masculinas durante a campanha e se opor à ideia de feminilidade.