Nas últimas semanas, o influenza H5N1, vírus causador da gripe aviária, voltou a figurar nas manchetes de todo o mundo.
Das cidades litorâneas do Daguestão, na Rússia, à costa do Peru, passando por fazendas de visons na Espanha e granjas nos Estados Unidos, foram vários os episódios registrados de milhões de animais que morreram (ou foram sacrificados) após terem contato com esse agente infeccioso.
Embora o risco ainda seja considerado pequeno, agências de saúde e pesquisadores do mundo inteiro aumentaram o nível de alerta sobre esse tipo de influenza e o potencial que ele possui de causar a próxima pandemia.
“Se o H5N1 ganhar a capacidade de ser transmitido de uma pessoa para outra, esse pode ser um dos problemas mais graves que a humanidade já enfrentou”, diz o virologista Edison Luiz Durigon, professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).
A boa notícia é que, ao contrário do que ocorreu na covid-19, os governos e serviços de saúde já têm planos definidos sobre o que fazer caso um avanço do H5N1 se torne realidade — algumas vacinas, inclusive, já estão prontas ou em desenvolvimento agora.
Mas, afinal, o que faz esse vírus ser tão preocupante assim? E por que ele voltou a ser assunto recentemente?
Um surto de grandes proporções
A Organização Mundial para Saúde Animal estima que, desde outubro de 2021, foram registrados mais de 42 milhões de casos de infecção por H5N1 em aves.
Nesse período, cerca de 15 milhões de aves domésticas morreram em decorrência dessa gripe — e outras 193 milhões precisaram ser sacrificadas.
Trata-se, portanto, do pior surto de gripe aviária já registrado desde que esse vírus foi identificado pela primeira vez.
O H5N1 é conhecido desde 1996, quando foi detectado por cientistas na China e em Hong Kong.
Mas ele ganhou destaque internacional a partir de 2005, ano em que a mortalidade de frangos criados em granjas na Ásia subiu drasticamente. À época, também foram registrados episódios de infecção em seres humanos — todos os afetados tiveram contato direto com aves doentes.
Os surtos também estão se espalhando mundo afora: antes, eles se concentravam na Ásia e na Europa; mais recentemente, começaram a afetar as Américas — por ora, apenas Brasil e Paraguai não tiveram casos confirmados da infecção na América do Sul.
O aumento da circulação está relacionado às aves migratórias, que vão de um continente para o outro de acordo com a estação do ano. Muitas delas viajam infectadas e, quando chegam a um novo lugar, têm contato com as espécies locais.
A partir dessa proximidade, o vírus começa a circular numa nova região — e pode chegar às granjas, que concentram grandes quantidades de aves em armazéns fechados.
A médica veterinária Helena Lage Ferreira, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, explica que o influenza H5N1 passou por uma “diversificação genética”.
“O subtipo que está causando o problema atual pertence ao clado 2.3.4.4b. Ele apresenta algumas mutações genéticas que tornaram o vírus mais transmissível entre as aves”, aponta.
O “clado” citado pela especialista é um termo que se aproxima do significado de grupos ou variantes, que ficaram muito conhecidas por causa do coronavírus e suas linhagens, como a ômicron, a gama e a delta.
“O H5N1 é diferente de todos os outros. Nas aves, causa uma infecção grave, com sintomas respiratórios, como pneumonia, e até sinais neurológicos”, descreve Ferreira, que também é professora da USP.
O ‘pulo’ para outras espécies
Além do altíssimo número de aves afetadas nos últimos dois anos, o que tem chamado a atenção dos cientistas mais recentemente é a quantidade de mamíferos que também estão se infectando com o H5N1.
Até o momento, casos de gripe relacionados a esse tipo de influenza foram confirmados em ursos, raposas, gambás, guaxinins, visons, focas, golfinhos e leões marinhos.
Na maioria desses casos, a infecção acontece pelo contato próximo das aves com esses mamíferos.
Muitos deles compartilham o mesmo habitat — o contato próximo facilita a transmissão do vírus entre espécies dessas duas classes de animais.
Ou seja: na maioria das vezes, o H5N1 é transmitido diretamente das aves para os mamíferos por meio de fluidos corporais (como gotículas de saliva ou fezes) ou pela predação, em que uma espécie caça e se alimenta da outra.
Recentemente, porém, dois episódios sinalizaram que o H5N1 pode estar adquirindo aos poucos a capacidade de se transmitir de um mamífero para o outro.
O primeiro deles aconteceu na Galícia, no noroeste da Espanha. Em outubro de 2022, os responsáveis por uma fazenda notificaram as autoridades sobre a transmissão desse influenza entre os visons (ou minks), um tipo de animal criado para a fabricação de casacos.
Essa foi a primeira ocasião em que a transmissão do H5N1 entre mamíferos (sem a intermediação de aves) foi confirmada oficialmente. Nenhum ser humano que teve contato com os visons ficou doente.
O segundo episódio ocorreu na costa do Peru, em que mais de 3,4 mil leões-marinhos morreram por causa da gripe aviária.
Esses óbitos na costa peruana ainda estão sob investigação para definir se a cadeia de transmissão envolveu diretamente as aves — ou o H5N1 também começou a ser transmitido entre os leões-marinhos.
Para a microbiologista Marilda Mendonça de Siqueira, chefe do Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC-FioCruz), todas essas observações são “preocupantes”.
“Para infectar, os vírus precisam se adaptar às condições do hospedeiro”, ensina.
“Além de conseguir se encaixar nos receptores das células das novas espécies, o influenza precisa se adequar às condições de temperatura e pH de cada organismo, que são diferentes em aves e mamíferos.”
Em outras palavras, esse patógeno passou — e está passando — por uma série de transformações em seu material genético que podem facilitar o “pulo”, ou a transmissão entre outras espécies, além daquelas em que ele já era frequentemente observado.
“E isso causa preocupação, pois as condições do organismo de seres humanos são bem mais próximas a de outros mamíferos do que das aves”, complementa Siqueira.
O tamanho do perigo
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 2003 e março de 2022 foram registrados 864 casos e 456 mortes causadas pelo H5N1 em seres humanos.
Já o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos estima que, entre janeiro de 2022 e março de 2023, dez pessoas foram diagnosticadas com a gripe aviária. Duas delas morreram.
Esses últimos casos aconteceram em Camboja, China, Espanha, Equador, Reino Unido, Estados Unidos e Vietnã.
Embora os números sejam pequenos, eles permitem calcular uma mortalidade bem alta: no cômputo geral, 52% das pessoas que foram infectadas pelo H5N1 morreram.
“Quando vemos esses casos mais recentes, ligados principalmente ao clado 2.3.4.4b, a mortalidade observada é menor, de 20%. Mesmo assim, é algo que preocupa”, pondera Ferreira.
Para comparar, a atual taxa de mortalidade do Sars-CoV-2, o coronavírus que causa a covid-19, fica ao redor de 1%.
“Os vírus influenza costumam se replicar nas vias aéreas superiores e nos pulmões. Já o H5N1 parece ir além e atinge outros órgãos vitais, como o cérebro, o coração, o fígado, o baço e os rins”, detalha Durigon.
“Os atestados de óbito para gripe comum costumam dizer que o indivíduo morreu de infecção pulmonar ou pneumonia. Já no H5N1, a causa de morte geralmente é descrita como ‘falência múltipla de órgãos'”, complementa o virologista.
Que fique claro: os casos de gripe aviária em seres humanos são esporádicos e estão todos relacionados ao contato próximo com animais infectados em granjas ou na natureza. Até o momento, não foi registrado nenhuma cadeia de transmissão direta desse influenza de uma pessoa para outra.
Para isso ocorrer, seria necessário que o H5N1 sofresse mutações — ou se recombinasse com outros tipos de influenza que afetam as pessoas ou as demais espécies (como aves e suínos).
Mas será que isso pode acontecer um dia?
“Eu diria que há uma incerteza, mas nunca estivemos tão próximos de um cenário desses. E uma pandemia de H5N1 seria uma tragédia”, alerta Durigon.
“O H5N1 é um candidato a causador de uma futura pandemia. A pergunta aqui não é ‘se’ isso vai acontecer, mas, sim, ‘quando'”, afirma Siqueira.
O que fazer?
O médico britânico Jeremy Farrar, cientista-chefe da OMS, parece concordar com a visão dos especialistas brasileiros.
Numa entrevista recente, ele classificou o H5N1 como “uma grande preocupação” e sugeriu que mais atitudes devem ser tomadas para preparar o mundo para a próxima pandemia.
“Se um surto de H5N1 em humanos começar na Europa, no Oriente Médio, nos Estados Unidos ou no México amanhã, não seríamos capazes de vacinar todo mundo ainda em 2023”, estimou.
Os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil ponderam que, ao contrário do que aconteceu com a covid-19, as instituições internacionais e os governos estão mais preparados para lidar com eventual crise provocada pelo vírus influenza.
“A OMS tem planos de contingência para uma pandemia de influenza desde os anos 1950”, lembra Siqueira.
Essa organização envolve redes de vigilância e análise laboratorial espalhados pelo mundo. O propósito aqui é detectar os vírus com rapidez, antes que ele se espalhe.
Um exemplo desses sistemas de monitoramento vem do próprio Brasil: o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação mantém a Rede Previr, que avalia a presença de patógenos em várias reservas naturais do país.
“A partir do ano passado, começamos a monitorar aves silvestres migratórias. Como o H5N1 chegou a outras partes da América do Sul, existe um risco muito grande de encontrá-lo também no Brasil”, conta Durigon, que faz parte do projeto.
Vale destacar que essa versão do influenza ainda não foi detectada no país até o momento.
O Ministério da Agricultura e Pecuária também realiza análises constantes nas granjas.
“E isso é estratégico, uma vez que nosso país é um dos maiores exportadores de frango no mundo. Se o H5N1 chega aqui e afeta os produtores locais, com a necessidade de abater os animais, isso representaria um grande problema à economia”, complementa o virologista do ICB-USP.
Além da vigilância constante, outra ação primordial nesse contexto é criar e testar formas de prevenção e tratamento da gripe aviária.
Nessa seara, as notícias são positivas. “Os remédios antivirais que temos à disposição são eficazes contra o H5N1 em circulação”, pontua Ferreira.
As vacinas contra este influenza também já estão em desenvolvimento. No Brasil, o Instituto Butantan anunciou no início de março que já trabalha num imunizante contra esse patógeno.
“A expectativa é finalizar os testes pré-clínicos ainda neste ano e avançar para o estudo clínico [que envolve voluntários humanos] em 2024”, afirma a instituição em nota publicada no site.
Siqueira estima que, diante dos planos de contingência elaborados nas últimas décadas, seria possível ter doses de vacina contra o H5N1 prontas para campanhas de larga escala em cinco ou seis meses.
“Não sabemos se esse vírus vai causar uma pandemia em um, cinco ou 100 anos. Mas precisamos estar preparados para isso”, diz a especialista.
Do ponto de vista individual, existem algumas medidas básicas que já podem ser colocadas em prática para proteger a si mesmo — e diminuir o risco de uma pandemia futura.
“O cuidado mais importante nesse momento é não tocar ou chegar perto de uma ave morta que você vir na praia, na mata ou em qualquer lugar”, orienta Siqueira.
Nesses casos, a recomendação é notificar as autoridades locais, que podem enviar funcionários com equipamentos de proteção para fazer a remoção e mandar o corpo para análise em laboratório.
E, naturalmente, os protocolos básicos de fazer a higiene das mãos e ficar afastado das atividades se estiver com sintomas de infecção respiratória continuam a valer.
“Isso é algo que foi reforçado na pandemia de covid-19 e que precisaremos manter pelo resto das nossas vidas”, conclui a microbiologista da FioCruz.
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c28jn1n40r2o