Aos 81 anos de idade, a aposentada Raimunda de Souza Vieira, nascida no baixo Amazonas e criada na localidade de Cajazeiras, às margens do Rioziho do Rola, nos arredores de Rio Branco (AC), carrega em si, a um só tempo, uma história de tragédias e de superação. De tragédia porque esta senhora é viúva há 30 anos, quando o marido, José de Souza Almeida, morreu, durante uma caçada, num acidente com a própria arma.
“Ele deu um tiro num bicho e a casca da bala, que era de metal, saiu da arma, e acertou a testa dele e se alojou em sua cabeça. Ele morreu na hora”, conta dona Raimunda, mãe de 12 filhos, dos quais 11 estão vivos, morando em Rio Branco, e ela própria mora sozinha – “eu e Deus”, numa casinha numa área de 21 hectares onde ela cria atualmente 15 cabeças de gado, galinhas e alguns porcos. Vive de uma aposentadoria do INSS e da ajuda dos filhos, que costumam visita-la com frequência. Alguns querem levá-la para a cidade mas ela se recusa. “Não nassci para ser mandada ou viver às custas de filhos”, diz, resoluta.
Dona Raimunda estava se acostumando com a vidinha pacata e com a solidão da viuvez, eis que o destino resolve lhe pregar uma nova peça: em 2014, durante um temporal, quando ela desligava o telefone fixo após falar com um dos filhos, um raio atingiu a propriedade e a corrente elétrica a atingiu ao ponto de derrubá-la e deixá-la desmaiada por alguns minutos. “Ainda bem que eu não estava com o telefone no ouvido. Estava colocando no gancho. Se tivesse no ouvido, o choque tinha arrancado minha cabeça”, conta.
Como sequela, ela passou a ter insônias e desde então só consegue dormir com remédios controlados, como o clonazepan. “Mas meu problema é não dormir. Passo a noite bolando na cama, mesmo quando tomo os remédios, algumas vezes”, disse. “Mas, fora isso, sou uma mulher feliz, de bem com a vida…”, acrescentou.
Dona Raimunda de Souza Vieira teve chance de relatar um pouco de sua história e de seus problemas de saúde à médica generalista Maria Auxiliadora, da equipe da Secretaria Municipal de Saúde (Semsa), lá mesmo na comunidade em que vive. A médica disse que dona Raimunda, apesar da idade, não apresenta outros problemas de saúde além da insônia. “É comum pessoas que sofrem descargas elétricas desenvolverem problemas de insônia”, disse a médica, que não recomenda mais o uso contínuo do clonazepan por dona Raimunda por conta de sua idade avançada. “Ela pode ter problemas de esquecimento e tonturas, cair e se machucar. Para quem mora sozinha como ela, isso pode ser perigoso”, disse Auxiliadora.
Equipe de 62 pessoas viajarão por 30 dias em sete barcos levando socorro a quem não tem acesso à saúde
A médica faz parte da equipe da Semsa, composta de 62 profissionais, que desde o último dia 15 de março está singrando os rios e igarapés do entorno de Rio Branco, em sete barcos barcos (cinco grandes e dois pequenos) que servem de apoio no atendimento do Programa Saúde Itinerante Fluvial, desenvolvido pela Prefeitura de Rio Branco. No sábado (18), ocorreu em Cajazeiras, uma localidade há cerca de 30 quilômetros de Rio Branco, às margens do Riozinho do Rola, o segundo atendimento de uma série que vão se estender até o dia 30 de abril e cujos barcos devem chegar até os limites dos municípios de Xapuri e Sena Madureira, sempre atendendo a ribeirinhos como dona Raimunda, aquela da solidão opcional apesar de ter 11 filhos, da viuvez e que sobreviveu a um disparo de raios.
Serão mais de 50 comunidades atendidas em 11 paradas previstas em portos como o de Cajazeiras, no sábado. Cada atendimento deve perdurar nesses portos de um a dois dias, a depender do tamanho da comunidade.
O primeiro atendimento ocorreu no Projeto de Assentamento do Barro Alto, na última quarta-feira (16). Os atendimentos na localidade produziram os seguintes números, segundo a Semsa:
. 207 pessoas acolhidas;
. 134 consultas médicas;
. 73 consultas de enfermagem;
. 53 consultas odontológicas;
. 369 procedimentos odontológicos;
. 02 consultas de pré-natal;
. 14 coletas de PCCU;
. 05 planejamento familiar;
. 80 imunizações;
. 28 medicações injetáveis;
. 58 testes de glicemia capilar;
. 111 aferições de pressão arterial;
. 76 testes rápidos realizados;
. 450 preservativos distribuídos;
. 18 acompanhamentos do auxílio Brasil;
. 240 receituários de uso comum dispensados;
. 14 receituários de uso controlado;
. 450 frascos de hipoclorito dispensados;
. 450 sachês de sais de hidratação oral dispensados;
. 49 animais vacinados;
. 328 mosquiteiros impregnados entregues, totalizando.
Animais também são imunizados com vacinas antirrábicas e humanos têm pequenas cirurgias e consultas oftalmológicas e dentárias
O total de procedimentos realizados no primeiro atendimento: 3.209. Os números do atendimento em Cajazeiras, lá onde mora dona Raimunda, não devem ser diferentes – ou até mais (os números ainda não foram tabulados), graças à adesão maciça da população local ao chamado da equipe da Prefeitura. Até os animais, cães e gatos, atraídos pela movimentação da multidão, compareceram ao local e foram vacinados contra a raiva, outra ação do programa. Os que tentavam escapar eram pegos literalmente a laço pelos servidores. “Os que aparentemente não têm dono a gente vacina e solta. Se o dono aparecer a gente dar a carteirinha. Se não tiver dono, ficamos certos de que teremos menos um animal sem vacina e com risco de transmissão da raiva”, disse o servidor da Sema encarregado de pegar os animais no laço.
Além da vacinação antirábica nos animais, o Programa Saúde Itinerante Fluvial leva às comunidades ribeirinhas atendimentos com pequenas cirurgias, oftalmológico e odotológico. O oftalmológico dentro do Saúde Itinerante Municipal é um atendimento proporcionado por uma parceria entre a Prefeitura de Rio Branco e o Projeto Veja Mais Brasil, concebido pela clínica do médico e deputado federal Eduardo Veloso (União Brasil). Trata-se de um programa que utiliza-se da inovadora tecnologia da telemedicina.
Do local do atendimento, com aparelhos sofisticados, são feitos exames detalhados dos olhos dos pacientes que são transmitidos para que os médicos possam, com o uso dos equipamentos, checar a necessidade de uso de óculos e aprofundar exames para a detecção de doenças como Glaucoma, Catarata e Ptergio, entre outras.
“O programa possibilita atendimento à população de baixa renda, a qual não precisa se deslocar até à cidade em busca de clínicas médicas”, disse a coordenadora Katielle Souza.
A mesma preocupação com os olhos, a Semsa está tendo com os dentes da população ribeirinha, de jovens e adultos. Os dentistas que fazem parte do programa são orientados a tentarem recuperar o máximo possível de dentes dos pacientes. “Eles não estão aqui apenas para fazer extrações. Fazem também recuperação e limpeza nos dentes de quem precisa”, disse a secretária municipal de saúde, Sheyla Andrade.
Dona Raimunda Vieira, aquela viúva que sobreviveu a descarga do raio, aproveitou a consulta para também ir ao dentista, dar um trato nos dentes. “Limpei tudo”, disse ela, fazendo questão de exibir o novo sorriso, um sorriso de pessoa feliz, apesar das dificuldades e outras vicissitudes.
Quem também aproveitou a oportunidade de médicos na vizinhança de sua casa em Cajazeiras para fazer pequenas cirurgias de retirada de sinais que há anos a incomodava foi Janete Alves de Andrade, de 44 anos, mãe de cinco filhos. Ela é casada com José Maria Ferreira de Souza, de 54 anos, o presidente do Projeto de Assentamento do Barro Alto, uma localidade com cerca de 160 famílias assentadas, uma população estimada em 800 pessoas.
José Maria mora na localidade desde 1996 e preside a Associação quase ao mesmo tempo. No último sábado, durante o atendimento do programa Saúde Itinerante em sua comunidade, era só elogios à Prefeitura Municipal e à gestão de Tião Bocalom. “Com isso aqui a gente ver que a Prefeitura não se preocupa apenas com as coisas da cidade. Está voltada também para a zona rural e para pessoas como nós. Tratar a saúde de quem vive no campo deveria ser a prioridade de todos os governos porque quem mora fora da cidade sempre sofre muito mais que as pessoas da cidade, quando o assunto é a saúde”, disse.
Que o diga, então, sua esposa, dona Janete Alves de Andrade. Apesar de elogiar a iniciativa da Prefeitura de levar o Saúde Itinerante às localidades isoladas como a sua, ela reclama da falta de um posto de saúde permanente com equipe que possa cuidar, por exemplo, da gravidez e de nascimento de crianças na localidade. “Eu, sem maior experiência, já tive que fazer pelo menos quatro partos na comunidade”, conta ela.
O motivo disso é que as mães muitas vezes erram a data estimada de nascimento dos filhos e têm que voltar dos hospitais da cidade, sem parir. No retorno, acabam sendo obrigadas a ter os filhos na comunidade, sem ajuda ou acompanhamento médico. “É difícil viver sem médicos ou serviços de saúde permanente”, disse, enquanto exibia os curativos de pequenas cirurgias que fez. “Eram sinais que diziam ser de beleza. Para mim, não eram. Tirei tudinho”, disse, mostrando o rosto e os braços.
Cortinados impregnados ajudam no combate à ataque de insetos como os da malária e da lechimaniose
Mas o serviço de saúde de municipal também demonstrou preocupações com o futuro. Durante os atendimentos, foram entregues cortinados impregnados à população ribeirinha. A ideia é fazer com que as pessoas possam dormir, em camas ou em redes, com a proteção para impedir o aceso de mosquitos transmissores da malária. Mas há preocupações também com o inseto transmissor da lechimaniose, doença conhecida como “ferida braba” e que também é capaz de atacar moradores da zona rural durante à noite. “É um inseto típico das florestas que ataca membros inferiores. É um inseto sem grande autonomia de voo e por isso atinge o rosto das crianças ou de pessoas sentadas ou deitadas ”, disse a coordenadora do Saúde Itinerante Rejane Almeida.
O inseto transmissor da doença pode ter infectado o peão de fazenda Marcelo Rodrigues de Souza, de 25 anos, que esteve no local para examinar um ferimento no pé dirieto. “Foi um ferimentozinho que apareceu do nada e a suspeita é de ferida braba, medisse o médico”, disse Marcelo.
Por isso, ao receber os cortinados, ele ficou agradecido e certo de que, a partir de agora, pelo menos na hora do sono ou do repouso, terá proteção contra mosquitos transmissores de doenças. “Lá onde trabalho, na Fazenda Maloca, dentro da reserva, tem mosquitos de todo jeito”, disse.
Bocalom encontra servidores e ouve reclamações sobre intrafegabilidade: “vamos arrumar o ramal”
O prefeito Tião Boclaom e a secretária Sheyla Andrade foram ao encontro da equipe do Saúde Itineterante em Cajazeiras, depois de uma manhã viajando pelo rio Acre e depois pelo Riozinho do Rola, em embarcações conhecidas por voadeiras. A distância entre a cidade a localidade, via terrestre, é de pouco mais de 30 quilômetros, que só só podem ser percorridos no verão, sem atoleiros. Por via fluvial, ida e volta na mesma distância, leva praticamente um dia inteiro.
Por isso, as reclamações da comunidade, apesar das manifestações favoráveis pelo atendimento em saúde, foi mais uma vez por ramais e melhoria de acesso à comunidade a partir de Rio Branco. Já prevendo isso, o prefeito Tião Bocalom também se fez acompanhar do secretário municipal de agricultura, Eracildes Caetano.
“As pessoas têm razões em reclamar da falta de ramais. Sem ramal, ninguém pode produzir ou viver à vontade, por falta do deslocamento. O deslocamento por via fluvial, além de ser muito difícil, com várias horas, é muito caro, por causa do preço do combustível dos motores das embarcações”, admitiu Bocalom. “Mas vamos recuperar os ramais e melhorar acesso até aqui. Isso só não foi feito porque a Prefeitura não tinha máquinas e só agora conseguimos adquirir o maquinário necessário para trabalhar. Essa comunidade aqui será uma de nossas prioridades para este ano, assim que o verão chegar nós começaremos a trabalhar aqui”, garantiu.
Fotos: Tião Maia ContilNet/Ascom PMRB