O relacionamento entre a farmacêutica Mariana, de 44 anos, e a pedagoga Adriana, de 51, começou como uma amizade de igreja. Juntas, elas rezavam pela salvação do casamento de Mariana e pela “cura” da filha dela, uma adolescente que havia começado a namorar uma menina.
O que elas não poderiam imaginar é que acabariam apaixonadas uma pela outra. Mariana Brizeno e Adriana Brizeno tiveram de superar os próprios preconceitos e contrariar todas as regras que a igreja impunha para ficarem juntas. Hoje, comemoram oito anos de relacionamento —seis de casadas.
Mariana conta que se casou com um homem por quem era apaixonada quando tinha 17 anos, mas a relação nunca foi fácil. Eles tinham várias brigas e o marido, segundo ela, era muito ciumento.
Quando completaram 10 anos de casados, passaram a frequentar uma igreja batista em Fortaleza. Ali, Mariana se viu ainda mais pressionada a seguir o padrão esperado da mulher.
Na igreja, entendia que eu tinha de mudar, aceitar, porque ele era o homem. E assim foi se configurando essa segunda metade do casamento, com machismo e relacionamento abusivo. Fui deixando de gostar para me proteger, mas sofria porque não era tratada da forma como esperava por uma pessoa que amava
Mariana
Com o tempo, ela foi preenchendo o vazio do relacionamento com amizades na igreja. A filha de Mariana, então adolescente, passou a frequentar uma aula bíblica — e quem comandava as classes era uma antiga frequentadora da igreja.
“Um dia essa moça me ligou para falar sobre a minha filha”, lembra Mariana. A moça era Adriana. A menina passava por algumas dificuldades emocionais — e mãe e professora acabaram estreitando o relacionamento para ajudar a jovem. Adriana e Mariana acabaram se tornando melhores amigas.
“No desenrolar das coisas, descobrimos que minha filha era lésbica. Ela estava namorando uma menina da igreja. Foi terrível, eu não admitia de jeito nenhum. Para mim, era totalmente absurdo”, lembra Mariana.
A Adriana também tinha irmãos homoafetivos e o sonho dela era que os irmãos se curassem. A gente achava, nos nossos devaneios, que Deus queria alguma coisa com a gente em relação a isso, que ele nos juntou para que a gente desenvolvesse um ministério [segmento na igreja] para essas pessoas se curarem. Pensávamos que iriam para o inferno
Juntas, elas oravam contra os “desvios” do mundo. Segundo Adriana, foram 3 anos seguidos lendo a Bíblia toda — de Gênesis ao Apocalipse.
“A gente se colocava em um pedestal, numa bolha, como se estivéssemos certas porque orávamos, fazíamos jejum. Interpretávamos a homossexualidade como uma doença”, lembra a professora.
A filha de Mariana foi alvo de homofobia pelos pais — ela teve a porta do quarto arrancada e o celular confiscado. “Não confiava de ela levar as amigas para casa porque, na nossa cabeça, todas as amigas eram potenciais namoradas. Eu a fiz sofrer”, lembra Mariana.
Separação
Com o tempo, o marido de Mariana passou a controlar também as idas da esposa à igreja. Ele não queria que ela frequentasse o templo quando ele não pudesse ir e não gostava da amizade de Mariana com amigas solteiras.
Depois de muitas sessões de terapia, Mariana começou a desejar, por conta própria, sair do relacionamento. E, assim, após uma grande briga, terminou o casamento e rompeu também com a igreja, definitivamente.
Ela passou a namorar outros homens e a sair com vários rapazes. “Baixei o Tinder, comecei a paquerar”, lembra. A amiga, Adriana, se afastou. Na época, Mariana pensou que havia perdido não só o casamento, como também sua melhor confidente.
“Ela se afastou de mim quando me separei, achei que ela não ficaria próxima porque eu tinha saído da igreja, estava saindo com homens e ela era tão da igreja… Sabia que nossa amizade tinha acabado.”
Adriana, por sua vez, diz que teve medo da nova mulher que a amiga havia se tornado.
“A Mari ficava paquerando, saindo com outros, queria viver, beijar na boca. E eu pensava ‘quem é essa mulher?’ Voltei a outro julgamento: ‘ela separou e ficou louca, perdeu o seu valor'”, conta Adriana.
Até que eu percebi que aquilo estava gerando em mim um ciúme. Pensei: ‘estou é com ciúme, e isso não é saudável porque não tenho ciúme das minhas amigas. Acho que sou apaixonada pela Mari’. Aquilo foi assustador, chorei dias e dias e dias. Eu condenava algo que eu mesma sentia, que estava dentro de mim e era maior do que eu
Adriana
Do outro lado, Mariana também percebeu que o que sentia por Adriana ia além da amizade — mas jamais teria coragem de expor isso porque ela nunca imaginaria que Adriana pudesse corresponder ao que ela sentia.
Não passava pela minha cabeça ter um relacionamento com uma mulher. A distância me fez entender que nosso sentimento não era só de amiga, mas pensava que era uma coisa que ela nunca assumiria, se fosse o que ela sentia
Mariana
Foi Adriana quem tomou coragem de falar. Um dia, foi à casa de Mariana e despejou todos os sentimentos.
“Não tenho mais condições de guardar isso para mim. Disse tudo o que estava guardado, que era apaixonada por ela, que tinha certeza de que não queria viver com isso só para mim.”
Mariana recebeu a declaração com um sentimento misto. “Passei por dois extremos: a felicidade de poder viver isso que só existia na minha cabeça, mas também senti medo, entrei em pânico. E agora como vai ser?”
Elas resolveram contar aos poucos para amigos e parentes — incluindo a filha de Mariana, que hoje se relaciona com um homem.
Quando contei para ela, tive medo de não me perdoar porque foi muito cruel com ela. Não passei 10% do que ela passou. Ela era uma adolescente que dependia dos pais e só encontrou preconceito. Mas, desde a primeira conversa, ela se mostrou aberta. Depois, descobrimos que o processo de perdão era bem mais profundo
Mariana
Foram anos de terapia e conversas para que a nova família encontrasse o seu equilíbrio. Hoje, Mariana e Adriana conseguem revisitar os sentimentos que tinham quando se consideravam apenas amigas da igreja.
A gente queria ter um lugar na vida da outra maior do que uma amiga tem, queria estar junto toda hora, dividir tudo. Existia uma tensão sexual, que a gente não entendia na época. Conhecíamos tanto a alma uma da outra que o físico foi só complemento
Mariana
“Acho que todo mundo sabia que eu era apaixonada por ela e só nós não enxergávamos. Não tínhamos a maturidade de enxergar, até pelo nosso próprio preconceito. Ele acabava nos traindo”, diz Adriana.
Ambas pararam de frequentar a igreja. Mariana hoje se considera sem religião, mas acredita em Deus. O filho dela frequenta uma religião de matriz africana — o que é encarado com naturalidade. “Antes, tinha muito preconceito com outras religiões.”
“Sou cristã porque acredito em Jesus como modelo de uma pessoa que quero ser, mas Jesus não era preconceito, era a pessoa mais inclusiva que existia”, diz Mariana.
Casamento
Para a farmacêutica, embora jamais imaginasse um relacionamento com mulher, o casamento com Adriana a completa, de várias formas.
“Somos muito felizes e nunca pensei em um casamento do jeito que é, totalmente diferente do que antes. Foi surreal o que aconteceu com a gente: Deus nos pregou uma peça e nos ensinou o que é o amor, que o amor não tinha nada a ver com o que a gente achava”, diz Mariana.
Mariana e Adriana vivem juntas com os filhos da farmacêutica — a jovem tem 26 anos e o rapaz, 21. O lar em nada se parece com um comercial de margarina — ainda bem. “A gente se desentende, se decepciona e se ama”, diz Adriana.
Queria me casar com alguém que aceitasse meus defeitos. E ela me conhece na minha pior versão. Eu também conheço os piores defeitos dela e não quero tirar nenhum deles. Os defeitos dela me lapidam diariamente
Adriana