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Conheça José Ribamar, acreano que já foi padeiro e vive em situação de rua

Por Tião Maia, ContilNet

Quem o ver cotidianamente nas ruas de Rio Branco sempre carregando um saco às costas, não tem dúvida: ali vai mais uma pessoa em situação de rua numa cidade em que este fenômeno cresce a olhos vistos. A diferença entre este caso e os demais é que, embora seja de fato pessoa em situação de rua, nosso personagem, um acreano de 68 anos, que atende pelo nome de João Batista da Silva, foge aos estereótipos ou o padrão de quem vive nas ruas.

João Batista da Silva. Foto: ContilNet

Embora muito pobre, já que tudo o que possui se resume aos pertences atulhados naquele saco que ele carrega nas costas, João Batista não pede dinheiro, não usa droga nem bebe, e, coisa raríssima em que vive assim, não comete pequenos furtos. Pelo contrário: embora viva nas ruas, João procura se afastar ao máximo de viciados e ladrões que agem nas ruas com pequenos furtos para garantir a sobrevivência e a compra de drogas e bebidas. “Eu não gosto dele nem eles gostam de mim”, diz João, sobre seus companheiros de infortúnio.

Comunicativo e alegre, João Batista é um personagem comum e presente no dia a dia do centro de Rio Branco. Era visto com frequência nas assessorias de comunicação do Governo do Estado e da Assembleia Legislativa. “Eu ia lá para ler os jornais. Continuo indo mas não há mais jornal. Mas o pessoal ainda me deixa entrar, me oferece cafezinho”, conta, aparentemente sem entender que não há mais jornais impressos, graças ao fenômeno do jornalismo digital e das redes sociais na internet.

João Batista da Silva nas ruas de Rio Branco. Foto: ContilNet

Outro ponto da cidade muito frequentado por João Batista é a rua Marechal Deodoro, nas mediações do Comercial Patrick até o trecho do Parque da Maternidade, coincidência ou não, passando, com frequência na frente de uma agência do Banco do Brasil.

Aliás, é na porta dos bancos que, embora não peça nenhum valor, que João Batista recebe doações das pessoas que o conhecem. “É tudo naturalmente. Eu não peço, mas as pessoas que me veem me dão o dinheiro. É pouco mas eu garanto o que comer”, conta.

João Batista diz que não mente nem conta histórias ou dramas para conseguir doações, com fazem outras pessoas em situação de rua. “Quem conta muito drama, muitas vezes está mentindo. Diz que está doente, que tem filho, pai ou mãe doente e, na verdade, o dinheiro que conseguem com essas mentiras é para comprar droga. Comigo isso não vale. As pessoas me dão naturalmente sem eu pedir”, conta João.

João Batista da Silva. Foto: ContilNet

“Outro dia, eu ia na calçada, uma mulher dirigindo um carro, buzinou. Quando eu olhei, ela diminuiu a velocidade e me deu uma coisa na mão e foi embora. Quando olhei era uma nota de R$ 50,00. Pensei: eu preciso mentir para pedir dinheiro?”, questiona.

A seguir, os principais trechos de uma entrevista com João Batista sobre como é viver nas ruas e por qual motivo ele chegou a esta condição:

Você nasceu onde?

Em Rio Branco, mas meus pais são nordestinos. Minha mãe era do Maranhão e meu pai, cearense.

E antes de ir morar nas ruas você chegou a trabalhar?

E muito! O primeiro trabalho que fiz na vida foi como padeiro. Pegava uma cesta de pão na padaria de manhã e saia pelas ruas gritando “Olha o Pão”. As pessoas abriam as janelas e pegavam o pão, naquele modo de pagar depois, numa época em que a cidade era pequena e todo mundo se conhecia.

Depois, a partir de 1974, eu trabalhei na construção da rodovia Transamazônica, na construção da estrada de Porto Velho para Manaus, nessa firma mineira Andrade Gutierrez. Também trabalhei na Estrada Rio Branco para Porto Velho, na Mendes Júnior, tudo firma de terraplanagem.

O que você fazia nessas empresas, nesses trabalhos?

Nessas empresas eu entrei fazendo trabalho de “oreia seca”, como peão. Eu catava raiz no meio do barro. Quando a caçamba descarregava o barro, os catadores de raiz tinham que deixar o barro limpo, tirando aqueles entulhos. É que, neste trabalho, tem uma fiscalização, acho que do DNER, para que não haja raízes nem pau junto desse barro.

É que, com o passar do tempo, a raiz e os paus apodrecem e o barro sobre acaba cedendo e baixando e causando infiltração no pavimento. Trabalhei de “oreia seca”, mas sai dessas empresas promovido.

De cata raiz você foi promovido ao quê?

Fui promovido para motorista. Passava o dia levando mecânicos para consertar máquinas que quebravam ao longo da estrada. Trabalhei também na estrada entre Rio Branco e Sena Madureira. Trabalhei seis anos como fui operador de máquinas pesadas.

E parou de trabalhar por quê?

Parei por causa da idade, que foi chegando e acho que por isso me demitiram. Ninguém quer velho trabalhando no pesado. Tem medo que a gente não dê conta.

E há quanto tempo você vive na rua?

Faz tempo… mais de 20 anos, eu acho…

Então você tem muitas histórias para contar não é?

Tenho mesmo. Vou te contar um caso: eu dormia por ali por perto do Pronto Socorro… Numa noite eu cheguei, e estava muito frio, e quando estava procurando um papelão ou um jornal para forrar e me deitar por ali, não achei e protestei pensando: meu Deus, que vida é essa, ter que me deitar no chão frio, sem nem um papelão… olhei para o lado e havia um homem, um rapaz novo, só de calção, descalço e sem camisa.

Olhei para mim e eu estava vestido, com calça e camisa e calçado. Andei mais um pouco, achei uns jornais e cobri ele e sai dali agradecendo a Deus: minhas situação não era tão ruim como a daquele rapaz. Pelo menos eu estou vestido, pensei. Eu estava chorando de barriga cheia, me achando um coitadinho e, quando olhei para o lado, havia alguém pior do que eu…

Como é viver na rua? Muito difícil?

Sim, muito difícil. É uma situação em que só sobrevivem os mais fortes.

Mas este que você citou como em siuação pior que a sua, sem calça e sem camisa, por certo estava assim por ser um drogado. Você usa droga?

Não uso e tenho raiva de quem usa. Estou abstêmio de álcool, de droga e de prostituição.

Há quanto tempo você está abstêmio? Você já bebeu?

Bebi e muito, quando eu era novo. Mas faz muitos anos que eu não tenho problemas com droga nem com álcool. Às vezes, para matar o tempo, eu fumo um cigarrinho aqui e outro acolá, mas também, se não tiver, não sou de sair pedindo nem juntando bituca pelo meio da rua, como fazem muitas pessoas.

Não saio de noite atrás de cigarro. Depois que eu me recolho, só me levanto no dia seguinte, com o dia clareando. Tenho um relógio biológico dentro de mim, mas, para me acordar, ouço os passarinhos cantando. Quando eles começam a cantar, sei que o dia vai clarear e que é hora de eu levantar e sair…

Você se recolhe onde atualmente? Lembro-me de você dormindo no pátio de um posto de gasolina, ali entre as ruas Rio de Janeiro e Minas Gerais. Agora, passo por lá, nos horários em que te via e não o vejo mais. Você deixou de dormir lá por quê?

Sai de lá porque ficou um local muito movimentado. Tem uma turma que, mais cedo, chega para beber e faz muita farra. Aí vem outra turma, por volta das dez horas e meia noite, que só sair no amanhecer. De madrugada aparece outra turma, que eu chamo do pessoal das trevas, que só serve para roubar e destruir. 

É gente doida por álcool, doida por droga e outros doidos por sexo e às vezes as três coisas juntas. Tem outra turma que sai só para roubar. Se encosta onde está a gente só com o intuito de roubar. Te olham já observando se você está de sandália, de sapato, se a camisa é boa, se tem alguma coisa que preste para eles roubar. É gente que parece não ter sossego algum.

Não têm paz e tiram de quem tem. Me afastei lá do posto e também de uma calçada ali perto do Bazar Chefe, no centro da cidade, por acusa de um rapaz que vivia lá me perturbando, roubando o pouco que eu tinha. Tive que ameaçar dar umas terçadadas nele.

Mas você anda armado?

Não costumo. Mas, nesse dia, tive que arranjar um terçado com um amigo meu para dar uma lição nesse cabra safado que levava tudo da gente, coberta, boné, sandália e até documentos. Uma vez ele meteu a mão no meu bolso e levou tudo o que eu tinha de dinheiro. Aí me revoltei e arranjei um terçado para dar um jeito nele. Mas depois preferi me afastar de lá do canto em que eu dormia, perto do Bazar Chefe.

Agora, sabe onde estou dormindo ultimamente? Ali dentro do Banco Itau, na Rua Marechal Deodoro, que tem um jeito de eu entrar e fechar a porta. Dia desses, quando eu já estava quase dormindo lá, apareceu um cara para fumar droga lá dentro.

Eu disse que ali não podia, que era uma agência bancária, que ia ficar fedendo, e o cara não gostou. Ganhei mais um despeitado comigo. Eles são assim comigo, e não gostam de mim, porque eu tenho harmonia, tenho controle e não sou zumbi como eles. Ninguém me ver fazendo o que eles fazem.

Eu não quero roubar nada de ninguém. Eu recebo dinheiro das pessoas de forma natural, sem contar drama, histórias cabeludas e sem pedir nada. Às vezes eu me deito ali no Banco do Brasil, no prédio da Secretaria de Saúde onde era o antigo Banacre, e as pessoas que vão lá sacar dinheiro, me dão, naturalmente, os seus miúdos sem eu precisar pedir. Quando você alguém pedindo dinheiro e contando histórias de tragédias, dizendo que está doente ou que tem casos de doenças na família, a droga está por trás.

O que você faz com o dinheiro que ganha?

Eu compro comida. As pessoas que me dão, já vão dizendo: tá aqui para você fazer uma refeição.

Uma coisa que é possível observar é que você está sempre com roupas limpas. Aliás, está sempre limpo também. Onde você toma banho?

Eu alvo roupa na casa de um amigo meu ali perto do canal. Ele me deixa tomar banho lá também, num banheiro no quintal. Lavo minha roupa, enxugo e ponho de novo no saco. Quando suja, vou lá. Tenho um amigo que me ajuda e, se Deus quiser, se eu conseguir me aposentar pelo INSS, pegar uma pensão, vou dar uma ajudazinha a ele também.

Você está requerendo uma pensão?

Sim, por velhice e por ter trabalhado e recolhido contribuição ao INSS. Uma advogada me disse que tenho direito e estou indo atrás, recolhendo meus documentos.

Você não tem família?

Tenho um casal de filhos, mas eles deixaram de falar comigo. Tinha até uma adotiva, que me considerava e sempre falava comigo, mas ela parece que casou, passou num concurso do Iapen, mudou-se e não me deu nem o endereço.

Também não fui mais atrás. Na rua, sinto falta de parentes e amigos, mas a saudade logo passa porque compreendo que a vida não é feita do que e como a gente quer.

Quer Deus que eu seja sozinho, eu sou – só quero que Deus não me abandone porque, mesmo morando na rua, sei que Deus me proteje. Eu tenho saúde e vivo em completa liberdade. Viver na rua é ser uma pessoa livre, de tudo.

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