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Em 20 anos, mais de cem padres católicos foram acusados de abuso sexual de menores no Brasil

Por O GLOBO

Paróquia Imaculado Coração de Maria, em Alexânia, Goiás: o padre Edson Alves dos Santos abusou de sua vítima na casa paroquial Brenno Carvalho / Agência O Globo.

Nos últimos 20 anos, a Igreja Católica tem passado por seguidos escândalos de abusos sexuais de crianças e adolescentes cometidos por integrantes do clero. Desde o terremoto causado na Arquidiocese de Boston, nos Estados Unidos, pela série de reportagens do time Spotlight do jornal “The Boston Globe”, denunciando não só abusos de religiosos mas o acobertamento dos crimes pela Igreja, décadas de pedofilia envolvendo padres vieram à tona, um país após o outro. Um lugar, porém, vinha escapando ileso: maior país católico do mundo, o Brasil viveu sob um silêncio que encobriu boa parte das histórias de abusos da fé.

Ao contrário do resto do mundo, as notícias sobre vítimas brasileiras surgiram de forma esparsa. Em contraposição, nos últimos anos, países como Alemanha, Argentina, Austrália, Chile, México, Espanha, Irlanda, Portugal, Itália, França e Canadá tiveram sacerdotes expostos por molestar menores, em relatórios produzidos a partir do trabalho de jornalistas, de comissões independentes e a pedido da própria Igreja.

— Quando você acha que já viu tudo, no dia seguinte cai do cavalo. É infinita a perversidade — dispara Roberto Tardelli, advogado e ex-promotor de Justiça que representou vítimas de abusos sexuais na Diocese de Limeira pelo padre Pedro Leandro Ricardo, que foi condenado, em maio do ano passado, a 21 anos de prisão por atentado violento ao pudor.

O livro “Pedofilia na Igreja — um dossiê inédito sobre casos de abusos envolvendo padres católicos no Brasil” (Máquina de Livros, 2023) reúne pela primeira vez os crimes sexuais cometidos por religiosos contra menores de idade no país. Após três anos de trabalho, foram reunidos casos de 108 sacerdotes acusados de abusar de pelo menos 148 crianças e adolescentes. Sessenta deles foram condenados.

Os abusos descritos no livro revelam a prática criminosa de sacerdotes de 80 dioceses e arquidioceses, em 23 estados e no Distrito Federal. Há padres, monsenhores (um título de honra concedido a padres), bispos e arcebispos, além de uma freira. Há abusos cometidos tanto por padres diocesanos — que não pertencem a uma ordem religiosa — quanto por frades franciscanos, salesianos, beneditinos e jesuítas, entre outros.

Cerca de 10% de 1,3 bilhão de católicos do mundo são do Brasil, de acordo com o Censo de 2010. A estrutura da Igreja Católica também é imensa no país: mais de 27 mil sacerdotes atuando em 111 mil igrejas. Apesar disso, as denúncias contra clérigos são difusas e não organizadas.

Cidades pequenas
Os crimes enumerados pela reportagem ocorreram em 96 cidades de todas as regiões do país, desde São Paulo, município com maior população do Brasil, até a pequena Ichu, no interior da Bahia, que tem pouco mais de seis mil habitantes. No entanto, uma tendência aparece no levantamento: os padres agem mais frequentemente em cidades com menos de 100 mil habitantes. Nestas, foram registrados 48 dos 108 casos encontrados.

O combate aos abusos sexuais cometidos por sacerdotes católicos, que no início dos anos 2000 dependia em grande parte de investigações de fora da Igreja, ganhou impulso a partir de março de 2013, com a eleição do Papa Francisco. Assumindo o tema da pedofilia como central no seu pontificado, o jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio adotou um discurso forte e reforçou a legislação católica contra os abusadores dentro do próprio clero. Numa missa em julho de 2014, celebrada para vítimas de padres pedófilos, Francisco disse que esses abusadores fazem um “culto sacrílego” e profanam a imagem de Deus.

‘A luz do mundo’
De maio de 2019 a junho de 2021, a luta do Papa Francisco foi mais profícua. O principal marco foi o motu proprio “Vos estis lux mundi” — “Vós sois a luz do mundo”, na tradução do latim. O motu proprio é um decreto papal que disciplinou ações de combate a abusos sexuais por clérigos. Entre outras medidas, estabeleceu prazo de 90 dias para as investigações e traçou o perfil das vítimas mais vulneráveis: pessoas enfermas, com deficiência ou privadas de liberdade, ainda que ocasional, com sua capacidade de entender ou de resistir à ofensa limitada.

Tirar da escuridão as denúncias é fundamental. Entrevistado para o livro, o jornalista americano Michael Rezendes, que integrou o Spotlight, defende a transparência como um importante passo para combater pedofilia:

—Honestamente, não há qualquer razão para pôr segredo em tudo. O segredo é inimigo da justiça.

Antes das alterações na legislação, Francisco criou uma comissão para propor iniciativas de proteção a crianças e adolescentes. A Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores nasceu em março de 2014 e reúne sacerdotes e representantes da sociedade civil. Um dos membros é o brasileiro Nelson Giovanelli, fundador da Fazenda da Esperança, comunidade terapêutica católica voltada à recuperação de dependentes químicos.

No Brasil, foi criado, em dezembro de 2020, o Núcleo Lux Mundi, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB). Presidido pela pediatra paranaense Eliane De Carli, o Lux Mundi busca ajudar a Igreja a se organizar para obedecer às normas do “Vos estis”.

Apesar das mudanças de legislação e orientação, continuam vindo de fora da Igreja as denúncias mais graves. A mais recente veio à tona na Bolívia este mês: oito denúncias de pedofilia contra padres estão sendo investigadas pelo Ministério Público boliviano. O caso surgiu após o jornal espanhol “El País” publicar, em 30 de abril, o diário do jesuíta Alfonso Pedrajas, morto em 2009. No texto, o sacerdote diz ter “prejudicado muita gente (85?), gente demais”, além de afirmar que era protegido por seus superiores da Companhia de Jesus. Além de Pedrajas, os promotores bolivianos investigam outros clérigos.

Apesar dos esforços do Vaticano em expor os sacerdotes abusadores e seus crimes, a rede de proteção às vítimas ainda espera resultados práticos das mudanças implementadas pelo Papa. Anne Barrett Doyle, codiretora da BishopAccountability.org — instituição sediada em Boston e considerada a maior do mundo na pesquisa sobre abusos sexuais na Igreja —, que assina o prefácio do livro-reportagem, se mostra cética.

— Não creio que a Igreja, voluntariamente, mudará de maneira significativa para acabar com o problema. Ela será forçada a mudar devido às pressões externas — observa.

Pelo lado das vítimas, há um consenso: expor os abusos é um meio de se evitar a repetição dos crimes.

— Não me arrependo da denúncia. Caso contrário, ele (o padre) estaria hoje fazendo o mesmo. Poderia ser com um filho meu — diz o rapaz que, aos 11 anos, foi vítima de abuso pelo franciscano catarinense Paulo Back, em 2012.

 

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