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Terras indígenas no Acre podem perder demarcação com novo Marco Temporal; entenda

Por Matheus Mello, ContilNet

A comunidade Huni Kuī do Centro Huwá Karu Yuxibu, em Rio Branco, no Acre, teve 100 de seus 200 hectares queimados em 2019/Foto: Denisa Sterbova / Cimi

As discussões sobre o PL 490/07, que estabelece o novo Marco Temporal de demarcações de Terras Indígenas no país, se acaloraram na última semana.

No dia 24 de maio, quarta-feira, a Câmara dos Deputados aprovou a urgência da votação do PL, por 324 votos a favor e 131 contra.

URGENTE: CAMÂRA APROVA PL DO MARCO TEMPORAL

Povo Ashaninka da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia/Foto: Arison Jardim/Associação Apiwtxa

A urgência foi criticada por partidos de que compõe a base do governo Lula, a federação formada por PT, PC do B e PV, a federação Psol-Rede e o 2º maior bloco da Casa, que inclui Republicanos, MDB, PSD, Podemos e PSC.

Com a urgência, a previsão é de que a Câmara vote o PL nesta terça-feira (30). O relator do projeto, deputado Arthur Maia (União/BA), indicou pela aprovação do texto.

“É inaceitável que ainda prevaleça a insegurança jurídica e que pessoas de má-fé se utilizem de autodeclarações como indígena para tomar de maneira espúria a propriedade alheia, constituída na forma da lei, de boa-fé e de acordo com o que estabelece a Constituição brasileira”, disse o relator no texto.

A ideia é transformar o Marco Temporal em lei antes mesmo do julgamento no Supremo Tribunal Federal, que está marcado para acontecer no dia 07 de junho. O relator na corte suprema, ministro Edson Fachin, já declarou ser contrário a tese.

SAIBA MAIS: Indígenas devem fechar BR-364 contra PL do Marco Temporal

Entenda o PL

De autoria do deputado federal Homero Pereira (PR/MT), o PL 490/07, pretende mudar a Lei Federal 6.001, de 19 de dezembro de 1973, que trata sobre as regras do Estatuto do Índio. O texto do projeto estabelece um novo Marco Temporal, que obriga que só serão demarcadas as terras indígenas tradicionalmente ocupadas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

Atualmente, o processo de demarcação de TIs no país é feito pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Para ter o aval do órgão, os interessados precisam encaminhar um relatório de identificação e apresentar uma delimitação de terra, elaborado por uma multidisciplinar, que precisa incluir um antropólogo. Até então, o processo não precisa comprovar a posse em data específica. Com o Marco Temporal, a situação deve mudar.

Além das normas que deverão dificultar os processos de demarcação, o novo Marco Temporal afrouxa também o contato com etnias e povos indígenas isolados no país. A medida é considerada catastrófica por indigenistas.

Terras Indígenas no Acre

No Acre, são 35 terras indígenas reconhecidas pelo governo federal. Desse total, 24 já estão devidamente regularizadas e demarcadas.

De acordo com a Comissão Pró-índio do Acre, a área total das 35 TIs correspondem a 14,56% de todo o estado do Acre e as populações indígenas somam aproximadamente 23 mil pessoas. Além disso, são 15 povos – entre eles o povo Kuntanawa que vive na Reserva Extrativista (Resex) Alto Juruá – cujas línguas pertencem a três famílias linguísticas (Pano, Aruak e Arawá), mais os grupos de índios isolados, ainda não identificados, e um grupo de recente contato.

Na fotografia, as aldeias dos Huni Kuin, em Assis Brasil/Foto: Jardy Lopes

Todas as Terras Indígenas regularizadas no Acre tiveram seus processos homologados por decreto presidencial após 1988. Com o novo Marco aprovado, as TIs poderão ter as demarcações negadas se não conseguirem provar que já habitavam as áreas antes da promulgação da Constituição de 1988. O ContilNet checou as datas e a situação das Terras Indígenas demarcadas no Acre. São elas:

TI Alto Rio Purus – Huni Kuĩ e Madija (Kulina) – Manoel Urbano e Santa Rosa, homologada em 1996.

TI Alto Tarauacá – Isolados do Alto Tarauacá – Jordão e Feijó, homologado em 2004.

TI Arara do Igarapé Humaitá – Shawãdawa (Arara) – Porto Walter, homologada em 2006.

TI Arara do Rio Amônia – Arara – Marechal Thaumaturgo, homologada em 2003.

TI Cabeceira do Rio Acre – Jaminawa e Manu – Assis Brasil, homologada em 1998.

TI Campinas Katukina – Katukina – Cruzeiro do Sul, homologada em 1993.

TI Igarapé do Caucho – Huni Kuĩ – Tarauacá, homologada em 1991.

TI Jaminawa Envira – Madija (Kulina) e Ashaninka – Feijó, homologada em 2003.

TI Jaminawa Arara do Rio Bagé – Jaminawa – Marechal Thaumaturgo, homologada em 1998.

TI Jaminawa do Igarapé Preto – Jaminawa – Cruzeiro do Sul, homologada em 1998.

TI Kampa do Igarapé Primavera – Ashaninka – Tarauacá, homologada em 2001.

TI Kampa do Rio Amônea – Ashaninka – Marechal Thaumaturgo, homologada em 1992.

TI Kampa e Isolados do Rio Envira – Ashaninka, *Povo de recente contato do Xinane e  isolados – Feijó, homologada em 1998.

TI Katukina/Kaxinawá – Huni Kuĩ e Shanenawa – Feijó, homologada em 1991.

TI Kaxinawá Ashaninka do Rio Breu – Ashaninka e Huni Kuĩ – Marechal Thaumaturgo, homologada em 2001.

TI  Kaxinawá Colônia Vinte e Sete – Huni Kuĩ – Tarauacá, homologada em 1991.

TI Kaxinawá da Praia do Carapanã – Huni Kuĩ – Tarauacá, homologada em 2001.

TI Kaxinawá do Baixo Rio Jordão – Huni Kuĩ – Jordão, homologada em 2001.

TI Kaxinawá do Rio Humaitá – Huni Kuĩ – Feijó, homologada em 1991.

TI Kaxinawá do Rio Jordão – Huni Kuĩ – Jordão, homologada em 1991.

TI Kaxinawá Nova Olinda – Huni Kuĩ – Feijó, homologada em 1991.

TI Kulina do Rio Envira – Kulina (Madija) – Feijó, homologada em 1991.

TI Kulina do Igarapé do Pau – Kulina (Madija), Feijó, homologada em 2001.

TI Mamoadate – Manchineri e Jaminawa, Assis Brasil, homologada em 1991.

TI Nukini – Nukini – Mancio Lima, homologada em 1991.

TI Poyanawa – Puyanawa – Mancio Lima, homologada em 2001.

TI Riozinho do Alto Envira – Ashaninka e Isolados – Feijó e Santa Rosa, homologada em 2012.

Como deve votar os parlamentares do Acre 

Levando em consideração a votação da última semana, que aprovou a urgência da discussão do PL do Marco Temporal, a bancada federal do Acre deve ser praticamente unânime na aprovação. No pedido de urgência, apenas a deputada federal Socorro Neri (PP) optou pela negativa.

Veja como votou cada deputado acreano:

TI recém criada pode perder demarcação

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou no dia 28 de abril, no acampamento Terra Livre, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, a volta de demarcação de Terras Indígenas e um dos povos beneficiados foi a dos Araras do rio Amônia, no Alto Juruá, no Acre.

O espaço territorial tem a  extensão de 20 mil e 764 hectares e apresenta sobreposições com três terras reservadas pelo governo federal, uma área sob tensão por ser utilizada como rota de traficantes de drogas e de madeiras.

Os processos de demarcação estavam paralisados desde 2018, pois o ex-presidente Jair Bolsonaro afirmou que não faria nenhuma demarcação durante seu governo. A portaria declaratória é uma das fases do processo de homologação de uma terra indígena. Após estudos de identificação, o governo federal reconheceu a área como pertencente a determinado grupo indígena. Com poucos meses após a demarcação, a TI do Rio Amônia pode ter o processo embargado.

“Projeto é inconstitucional”

Ainda em 2021, quando o PL do Marco Temporal voltou a ser debatido, a Comissão Pró-índio do Acre, emitiu uma carta para cobrar o posicionamento contrário dos parlamentares da bancada federal em relação ao texto da matéria.

Na carta, o grupo disse que o projeto é inconstitucional e que irá “enfraquecer as comunidades e criar problemas para o desenvolvimento dos modos de vida em um momento em que a preservação ambiental, das florestas e das águas, são importantes para toda a sociedade”.

Confira a carta na íntegra:

CARTA ABERTA DAS ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS AOS PARLAMENTARES DO ACRE NO CONGRESSO NACIONAL

Senhoras e senhores representantes do Estado do Acre no Congresso Nacional,

Manifestamos nossa preocupação com iniciativas legislativas que pretendem alterar os direitos territoriais indígenas e solicitar vosso posicionamento e voto contrário aos projetos de lei que afrontam nossos direitos.

A Constituição de 1988 reconheceu a luta de nossas lideranças e dos movimentos indígenas ao determinar o respeito aos direitos originários sobre os territórios e a proteção da nossa autodeterminação, modo de vida, cultura, espiritualidade e línguas. Hoje, vemos projetos de lei para alterar o determinado pela Constituição, mudando o que é necessário à demarcação das terras e afrontando o direito de usufruto exclusivo dos territórios.

O Projeto de Lei nº 490/2007 é inconstitucional porque não pode alterar o que está previsto na Constituição. Coloca os territórios em negociação, ao permitir que qualquer interessado ou invasor seja considerado e que os estados e municípios participem da demarcação, indo contra outra lei, o Estatuto do Índio. O PL prevê, entre suas propostas, que a demarcação de terras dependerá de um marco temporal que só garantirá o direito das comunidades que comprovarem que estavam de posse efetiva da terra em 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O que excluiria os parentes que lutam pela demarcação há muitas décadas ou que foram expulsos de seus territórios e que jamais realizariam o sonho de viver neles novamente.

O PL 490/2007 tem o interesse de impedir demarcações, suspender processos de reconhecimento em curso e mudar a gestão das terras indígenas, que deixariam de ser da União para uso nosso, para passar a permitir o desenvolvimento de atividades de exploração de recursos por terceiros, por não indígenas. Abre também a possibilidade de desenvolver atividades predatórias como a mineração, que só deixa poluição e doença por onde passa.

O PL 490/2007 não considera os direitos internacionais que possuímos e quer atropelar até mesmo o direito a sermos consultados em caso de empreendimentos que impactem nossas terras como barragem, estrada, ferrovia, exploração mineral e linha de transmissão de energia.

Esse PL 490/2007 é contra tudo o que conseguimos garantir com muita luta. E vem para enfraquecer as comunidades e criar problemas para o desenvolvimento do nosso modo de vida em um momento em que a preservação ambiental, das florestas e das águas, são importantes para toda a sociedade.

Queremos autonomia para cuidar coletivamente dos nossos territórios. Não queremos invasão, conflito, divisão e degradação ambiental.

Independente das opções políticas e partidárias, queremos dialogar com cada um dos senhores e senhoras em nome de centenas de povos e comunidades indígenas, não apenas de nosso estado do Acre, mas de todo o país, que se posicionam contra a tomada de nossas terras, o despedaçamento delas e a eliminação dos modos de vida tradicionais.

Lembramos às senhoras e senhores deputados e senadores, que nós indígenas somos eleitores. E estamos cada vez mais atentos àqueles que, longe de nossos olhares, decidem propor ou apoiar iniciativas que ameacem os povos indígenas e a proteção da floresta.

Pedimos o seu posicionamento contrário às leis que ameaçam nossos direitos e seu voto contra o PL 490/2007.

Nenhum direito a menos!

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