60 anos do TJAC: de mala com dólares a ameaça de morte, histórias da escrevente Ofélia

"A minha vida funcional no Tribunal completa 44 anos e tudo que fiz foi com muito amor"

Um dos verbetes de servir é trabalhar em favor de alguém, uma instituição, uma ideia. Assim pode se definir a trajetória profissional de Ofélia Valle, servidora aposentada do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC). Na reportagem abaixo, que faz parte do Especial dos 60 anos do TJAC, mostra um pouco da história dela que se confunde com a história do Poder Judiciário acreano, cuja missão também é servir através da prestação jurisdicional.

Seu ingresso no Judiciário foi de forma inusitada. Um dia de 1976, a jovem Ofélia, então com 17 anos, foi ao Cartório de Xapuri, para reconhecer a assinatura do seu diploma de datilografia e o escrivão na época, olhou sua letra, achou bonita e perguntou se ela queria trabalhar com ele. “Eu aceitei, claro. Fiquei trabalhando sem direito a ônus reais”.

Somente em 1983, numa quarta-feira, 1 de fevereiro, a Portaria N. 119/1983, publicada na folha 2 da edição nº 3.546, no Diário Oficial do Estado, trouxe a nomeação de Ofélia para exercer a função de Chefe da Escrivania da Comarca de Xapuri.. Essas e outras histórias você confere a seguir na entrevista que Ofélia concedeu.

Ofélia Valle, servidora aposentada do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC)/Foto: Reprodução

Estamos fazendo 120 de justiça no Acre e 60 anos de TJAC. Vamos contar um pouquinho a sua história. Como foi que você entrou no judiciário?

Sou de Xapuri, tinha 17 anos e fui ao cartório reconhecer a assinatura do meu diploma de datilografia e o escrivão na época, olhou minha letra, achou bonita e perguntou se eu queria trabalhar com ele e eu aceitei, claro, eu tinha 17 anos, fiquei trabalhando sem direito a ônus reais. Tenho Portaria pela doutora Miracele me nomeando escrevente, fiquei de 1976 até 1983, quando fui nomeada já escrivã da Comarca. Continuei no cartório e fiquei na área de registro civil aí depois eu assumi a comarca toda, fazia os registros de nascimento, casamento, óbito, imóvel, eleitoral, além de escrivã eleitoral também. Comandei a comarca com 18 anos de idade e fui a mais jovem escrivã na época, eu e Sérgio Gadelha, de Brasiléia. Vim embora pra cá [Rio Branco] e fui chefe no [cartório do Bairro] 15, trabalhei durante 26 anos registrando e casando, além de Projeto Cidadão, tudo, eu sempre estava no meio, fazendo tudo com muito amor.

Certa vez, a doutora Eva Evangelista, me trouxe de Xapuri, ela era juíza na época, foi fazer uma audiência lá e na hora que ela terminou a audiência, ao invés de eu colocar no processo eu joguei fora no lixo a sentença. Foi promessa de joelho e todo mundo rezando, ninguém achava [a sentença], com medo, eu ia perder o emprego, porque, primeiro dia que eu assumo como escrivã, eu perco a sentença. Enfim, achamos no lixo, aí fui passar o ferro, arrumei, e deu tudo certo. Depois disso, ela viu meu trabalho, achou que eu era muito competente, elogiou, disse que eu tinha que sair de Xapuri, que eu tinha futuro e eu vim embora pra Rio Branco.

Cheguei aqui, cursei história, não gostei muito, cursei direito, e consegui. A minha vida funcional no Tribunal completa 44 anos e tudo que fiz foi com muito amor, tudo que fiz com muito zelo, muita responsabilidade, honestidade em primeiro lugar. Até hoje, minha maior gratidão é quando encontro alguém na rua e essa pessoa dizer pra mim “a senhora que me casou, ainda estou casado” ou “ a senhora que me registrou”, isso compensa muito, é muito gratificante, tenho muita gratidão ao Poder Judiciário. Não aceito que ninguém perto de mim fale mal do meu Poder [Judiciário], porque foi aqui que eu cresci, que eu venci, e hoje eu tenho filho, tenho minhas coisas e não aceito que ninguém fale mal do meu Tribunal de Justiça. Tenho muito orgulho de ser do Poder Judiciário.

Ofélia, como que era trabalhar no Judiciário, logo que você entrou?

Era difícil, era tudo manual, não tinha internet. Somente de 1999 em diante que comecei a ter computador, eu trabalhava com máquina de datilografia, tinha que datilografar aquelas escrituras todas e não podia errar, porque não tinha apagador. Às vezes estava na última folha, se errasse tinha que fazer tudo de novo, ficava [até a] noite, porque não tinha ninguém. Quando eu fiquei no Cartório de Xapuri, apenas eu, o oficial de justiça, seu Murilo, e nosso tabelião, que ainda era nosso “escrivão de tudo”, porque lá não tinha escrivão, o que trabalhava, ele tomava conta de tudo. Quando ele saiu, eu fiquei, continuei e consegui mais dois funcionários. Era difícil, você tinha que fazer tudo a mão, tudo manual ou máquina de datilografia. Eu escrevia os livros antes tudo na mão, as atas da prefeitura, registros ou documentos. Eu nunca senti cansaço, porque eu amava o que eu fazia.

Quando que cheguei no [Cartório do Bairro do] 15, eu fiquei lá sozinha como funcionária, só eu na minha sala, eu tinha que digitar, tinha que carregar água pra jogar nos banheiros, pois até para isso, não tinha gente, já que estava ainda em construção. Foi difícil. Nunca reclamei de fazer, mas era cansativo. Por vezes, eu trabalhava em casa à noite, levava a máquina dentro do carro ou então na cabeça, pedia carona pra levar as máquinas pra casa, pra chegar no outro dia e está tudo pronto. Eu não tenho nada a reclamar. Foi cansativo, mas valeu a pena.

Nesse tempo todo judiciário teve várias histórias que você presenciou, viveu. Você poderia compartilhar alguma que marcou?

Tem várias. Eu estou lá no [Cartório do Bairro] 15. Chega uma pessoa num carro, para e entra. Ele quer registrar uma criança de Sena Madureira, mas ele veio do outro país. Aí eu não sei nem qual era o país, se veio da Itália, enfim, ele veio de algum lugar. Chegou lá e queria que eu registrasse esse bebê e eu falei que eu não ia fazer. Só se ele tivesse um papelzinho do hospital que era [o procedimento] normal. Ele pegou a bolsa dele, abriu a mala, me mostrou assim um monte de dólar, tudo dobradinho, uma pasta grande com dólares. Aí eu olhei pra ele e falei “isso aí não vai resolver minha vida, porque eu não vou perder o meu nome. Esse dinheiro que você vai me dar, isso vai acabar. E eu não vou perder meu nome. A coisa que eu tenho de maior valor da minha herança, do meu pai, apenas o nome que eu tenho. Não vou fazer isso “. Com os meus mestres que eu aprendi. A minha doutora Eva, a doutora Miracele. Eu sou discípula delas e elas me ensinaram, me disseram que eu tinha que seguir, que a vida era difícil, ser cartorária, mulher e apareceriam muitas propostas indecentes para mim. Como apareceu essa e eu não fiz. Ele foi embora dizendo muito palavrões comigo, mas eu não fiz.

Em Xapuri, teve outro, um fazendeiro queria uma certidão negativa. Eu não podia dar porque ele queria que eu desse certidão negativa, mas estava positiva. Aí levantou a roupa, mostrou o revólver para mim. Aí eu liguei para o desembargador Nielse Mouta, que era o nosso presidente, aí ele mandou um policial para ficar comigo. O fazendeiro falou: “Eu vou na fazenda. Quando eu voltar, quero a certidão”. Eu falei “eu não posso lhe dar porque está negativa”. Em todos os bancos está penhorada essa terra e ele queria uma negativa e me ameaçou de morte.

Tem alguma história que te emocionou, que marcou?

Quando a gente registra as crianças, é grátis. As pessoas que eu atendia, eram pessoas carente. Mas tinha coisa que pagava. Eu sempre fiz que não pagasse, eu fazia tudo dentro da lei, certinho, pois eu tinha que provar no final do mês.

Aí eu fazia tudo. Eles traziam galinha, cheiro verde, cebola, até com um jabuti, que [por Lei] não pode. Aquilo me deixava com tanto medo de receber, porque diziam que era propina. Eu ligava para o doutor Ciro: “doutor, o homem trouxe uma galinha”, eu tinha medo. Eu sempre fui muito correta com as minhas coisas. No meu trabalho, você pode procurar na minha ficha. Não tenho nada de coisa ruim que eu tenha feito na vida.

Mas se eu não recebesse aquele frango, aquele feijão, limão, dentro de uma sacolinha, aquela pessoa ia chorar de tristeza, porque ele está fazendo aquilo para mim, não estava me pagando. Eles estavam com gratidão pelo que eu fiz.

Eu sabia o que é pobreza, enquanto certos que estavam aí não sabem. As pessoas não tinham dinheiro para pagar nem o ônibus, imagina ir num cartório? Como é que vai pagar uma segunda via? Então, eu fazia de graça, mas eu provava que a pessoa não tinha condição. Isso gerou muita gratidão onde eu passo. Um dia, eu estava no posto de gasolina, pneu do meu carro secou e eu não sei mexer em nada disso. Um homem estava lá no cantinho, foi lá me ajudar, arrumou para mim e eu perguntei “quanto é que eu lhe devo?”. Ele disse bem assim para “Nada. A senhora registrou meus cinco filhos e não me cobrou um real”. Isso engrandece a gente. Você fica feliz, né. Hoje eu sou cidadã rio-branquense, pois fui reconhecida pelo meu trabalho, pelos vereadores da Câmara.

Percebe-se que você tem orgulho e defende o Judiciário. O que te motivava a trabalhar e ajudar as pessoas?

Maior prazer da minha vida é chegar alguém lá no meu trabalho, eu não deixar ele voltar para casa sem eu atendê-lo ou pelo menos indicar aonde ele vai, que ele possa resolver aquele problema. Depois que os cartórios viraram particular, eu fui para o Fórum Barão do Rio Branco, no balcão de informação. Fui criticada, porque eu sou bacharel, eu sou advogada, eu tenho [carteira da] OAB, sou advogado e eu fui para o balcão de informação. Mas fui eu que pedi. Não foi o presidente que me botou lá.

Um balcão de informação, ali tem que ter pessoas que saibam informar e lidar com pessoas, não qualquer pessoa, que não vai te ensinar. Lá são três computadores e todo mundo atendendo e eu ficava no meio ali quietinha, e a minha fila de atendimento, daqui a pouco estava lá longe e eu dizia: “moça, vá para essa outra [fila]”. Ela: “Não, vou esperar a senhora.

Por vezes eu ia atrás de alguma o favor lá em cima, não para mim. Me chamavam de Madre Teresa de Calcutá, porque eu ficava ajudando as pessoas. Certa vez, Eu disse para o juiz Fernando: “Doutor, eu vou deixar de fazer as coisas [para as pessoas]”. Ele falou: “não, não deixe dona Ofélia, continue”. Eu disse: “Mas meus próprios colega dificultam tudo, não deixam, não me dão uma cópia de uma sentença. Não custa nada”. Eu sei, pois eu trabalhei nisso e você pode tirar uma cópia. Meu maior orgulho era atender a pessoa e ela ir para casa feliz.

É isso as pessoas querem da Justiça, que sejam atendidas, que vão embora felizes e que não precise voltar. Quando ela volta, porque alguma coisa estava errada.

Qual é o papel da justiça?

A coisa mais importante é a Justiça, tem que ter justiça, ser justiça de verdade. De forma igual para todo mundo. Eu vejo a justiça, se ela for igual para todos. Aí eu vejo que tem a Justiça e nós precisamos só disso, que a Justiça seja para todo mundo, que resolva os problemas das pessoas com o mesmo empenho. Pois nós somos iguais. A Justiça é igual para todo mundo e eu vejo assim.

Você contou no início da sua história, que a educação fez a diferença na sua vida. Foi a tua letra que fez começar essa história. Conta um pouquinho sobre a importância do estudo e da educação.

Sem educação, não há justiça. Você tem que estudar. Porque nós precisamos de pessoas nesses setores da nossa Justiça, que tenham mais empatia com as pessoas. Nesses lugares que você hoje entra e vai atrás de uma documentação. É muita reclamação de pessoas que não atendem. Meu sonho, eu queria ver era chegar num setor desse, num cartório desse, encontrar pessoas sorrindo, que te recebesse como ser humano, como gente, sabe? Esse era o meu sonho, porque no meu tempo de cartório ninguém vai dizer, que todo mundo também era um santo, não. Às vezes tem pessoas que a gente precisa ser mais dura, porque vem com propostas indecentes.

Pessoas de fora, que ligam, pedem o atendimento e só recebem “não”, “não podemos”. Pode sim, tudo pode, tudo pode fazer, desde que seja correto, ninguém quer nada errado, não. O que tem que melhorar na justiça são os atendimentos. A pessoa chega num cartório, o atendente vê a pessoa e não é atendida. Parece que você não é gente.

Hoje, ninguém fala mais com ninguém. A Justiça só falta melhorar no atendimento para ficar melhor do que ela já está. Que as pessoas mudem a maneira de ver o outro. Ninguém vai na Justiça porque quer, não. Ele ou ela vai porque precisa de um documento, de alguma coisa, e temos que saber explicar ou encaminhar para o lugar que ele vai resolver, seja a Defensoria Pública ou em qualquer lugar.

Nunca fiz nada errado para dizer ou para deixar o cara ir embora infeliz, não. Eu fazia conforme a lei. Tudo era dentro da lei. A [Lei] 6015, meu código civil estava sempre do meu lado e o processo civil, do outro. Eu sabia tudo para não fazer errado, para depois não sobrar para mim e para o meu filho, porque éramos só nós dois, né? Sem educação, não há justiça.

E uma história marcante?

Outra coisa boa que eu senti relacionado ao meu trabalho, que eu fiquei mais emocionada foi com o meu filho quando estava cursando direito na Uninorte. O professor dele era o doutor Fernando e falando sobre mim na aula de Registro, de práticas forense, alguma coisa falou meu nome. O professor disse: “Aqui no Acre, nós temos uma registradora, uma grande profissional” e falou alguma coisa me elogiando. E meu filho estava na sala. Ele não conhece meu filho e meu filho sentado. Depois, meu filho me ligou e disse: “Mãe, eu tenho uma coisa para lhe falar, que o professor falou que essa a senhora é uma grande registradora, honesta, direita”. Isso é muito bom para a mãe, ver o filho escutar sobre ti, de uma coisa boa do teu trabalho.

Eu tenho orgulho da justiça. Eu amo meu Poder Judiciário, e não aceito que ninguém fale mal dele perto de mim, porque foi aqui que eu cresci, que eu venci, que eu tenho o meu filho. Tenho minha casa, tudo foi aqui. Dei minha vida também. Não me casei e não tive meus filhos, porque não deu tempo, porque eu só queria trabalhar, tinha ciúme do meu cartório. Ciúme do meu livro, não deixava ninguém escrever, só eu que podia pegar. Eu deixava de tirar férias, de tirar licença-prêmio, tudo para ninguém pegar minhas coisas. Eu era ciumenta, mas porque eu amava o que eu fazia.

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