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Como Sena Madureira, os rios, confrontos e mortes impactaram na luta que fizeram o Acre Estado

Por Tião Maia, ContilNet

O escritor Leandro Tocantins, acreano de Tarauacá, autor do livro “Formação Histórica do Acre”,  a mais completa publicação sobre as origens acreanas, escreveu que, em sua terra natal, “o rio comanda a vida”. Certamente o historiador estava falando do Tarauacá, que banha a cidadezinha na qual viveu sua infância, a então Vila Seabra, banhada também pelo rio Muru.

Mas isso serviria também para os rios Iaco e Caeté, em Sena Madureira, que tiveram papel relevante nas ações que fizeram eclodir até movimentos armados, com mortes e outros sacrifícios, que levaram o Acre ao Movimento Autonomista, a unificação de seus quatro territórios, disputas para ver quem seria a Capital do território unificado ou do futuro Estado. 

Sena Madureira e seus principais rios estiveram no meio dessa renhida luta que culminou na elevação do Acre à condição de Estado, que comemora, neste 15 de junho, seu 61º Aniversário como ente e membro da Federação brasileira. Mas chegar até aqui não foi nada fácil.

Cidade de Sena Madureira em preto e branco/Foto: Reprodução

O Estado é fruto de uma renhida luta do homem contra a natureza e os conflitos políticos decorrentes da ação natural, como as cheias e vazantes dos rios da região, que comandaram a vida e as consequências de fatos celebrados nesta data. Para chegar à condição de Estado, o Acre foi além das aventuras um tanto quixotescas do espanhol Luiz Galvez de Arias, que criou aqui o que pretendia ser um novo país do continente sul-americano. Foi além também das armas com o derramamento de sangue e perdas de vidas na Revolução comandada pelo gaúcho José Plácido de Castro e das negociações diplomáticas desenvolvidas pela casa da diplomacia brasileira comandada então pelo chanceler José Paranhos Fleury, o “Barão do Rio Branco”, conforme nos conta a história.

O Acre chegou à condição de Estado graças ao papel dos rios pertencentes às bacias do Purus e do Juruá, especialmente o rio Iaco, nas disputas políticas em torno da autonomia estadual e na escolha de sua futura capital, no período entre 1904 e 1920. É o que revela trabalho acadêmico do professor André Vasques Vital, publicado pela Revista Brasileira de História.

No artigo intitulado “O Poder contingente do rio Iaco no Território Federal do Acre (1904-1920)”, Vasques mostra que o Movimento Autonomista, que se iniciou por volta de 1903, tão logo o Tratado de Petrópolis comandado por “Barão do Rio Branco” estabeleceu o Acre como parte do território nacional, teve seu ápice na disputa entre as incipientes cidades de Sena Madureira e Rio Branco para se saber qual das duas deveria ser a Capital do futuro Estado ou do território unificado.

Nesse período, o Acre era dividido em quatro unidades políticas independentes, os departamentos do Alto Acre, Alto Purus, Alto Juruá e Tarauacá, os quais disputavam a hegemonia política sobre o território, conforme revelam extensas reportagens em periódicos publicados sobre os departamentos, em Belém do Pará e na capital federal, bem como relatórios dos prefeitos locais, para mapear a presença dos rios nos acontecimentos políticos.

O rio Iaco foi agente produtor de incertezas, atuando decisivamente na resolução de conflitos, nas relações políticas do governo federal com as elites locais, nos surtos de doenças que marcavam a imagem externa e na escolha definitiva da capital, com a grande cheia de 1915.

Sena Madureira, Acre, início do século XX/Foto: Arquivo Nacional

Enchentes e lama no longo caminho em busca de uma cidade modelo para o Acre que nascia

Essa história começa em abril de 1916, quando o coronel Childerico José Fernandes, um dos seringalistas mais poderosos e temidos do departamento do Alto Purus e ardoroso defensor da candidatura da cidade de Sena Madureira à capital do Acre, deu uma declaração surpreendente a um dos principais jornais de Belém, no Pará. Ao lhe perguntarem sobre as discussões em curso na capital federal sobre uma possível transferência do tribunal de apelação de Sena Madureira para a cidade de Rio Branco ou mesmo para Manaus, Fernandes respondeu que considerava absurda a mudança, mas que compreendia a reivindicação dos magistrados. 

O entrevistador insistiu, lembrando que Sena Madureira era a cidade mais salubre e confortável de que se tinha notícias no Acre, mas recebeu esta resposta: “Mas tem deficiência de muita coisa para homens educados e habituados a grandes meios. Por este lado dou razão aos magistrados, porque a lama de Sena Madureira, no inverno, causa terror até a mim, que sou casca grossa…”. É o que está publicado no relatório “Commercio do Acre”, em  16 abril de 1916.

De acordo com a publicação, ao perguntarem ao poderoso seringalista sobre os debates acerca da autonomia estadual do Acre, Childerico Fernandes lembrou o embaraço relativo à disputa entre Rio Branco e Sena Madureira como futura capital, concluindo que os puruenses deveriam abrir mão em favor do rio Acre. A declaração teria sido completamente impensável dois ou três anos antes. Era mais factível que Childerico Fernandes renovasse a ameaça de levante armado no rio Iaco, em cujas margens estava edificada Sena Madureira, algo que ele mesmo já havia concretizado ao liderar a revolta autonomista do Alto Purus, em maio de 1912. 

A mudança de ideia do coronel Fernandes poderia estar relacionada a dois elementos intrusos na fala do seringalista: “a lama” e  o “inverno”. 

O Iaco, com seu ciclo de cheias e vazantes, é entendido no estudo de André Vasques Vital, como uma coisa-poder de um agente importante no processo de territorialização, na emergência das identidades e disputas políticas na região e na elevação de Rio Branco à condição de capital do Acre, em 1920. Entender o rio Iaco como elemento de poder significa conceber que suas águas, em associação com mosquitos da malária, sedimentos, poeira transformada em lama e os interesses de seringalistas de várias partes do Território do Acre e de políticos na capital federal, emergiram como um agente. Agentes com capacidade de promover transformações, mudanças e diferenciação política entre seringalistas, fortalecer, enfraquecer ou mesmo destruir interesses em comum no espaço público.

Rio Iaco em período de cheia, em Sena Madureira/Foto: Reprodução

O Acre, como se sabe, pertencia à Bolívia desde 1867, ano da assinatura do Tratado de Ayacucho com o Brasil e a Espanha, delimitando as fronteiras entre os dois países. Acreditava-se que os rios Purus e Juruá faziam parte da bacia do rio Beni, estando as então “Tierras non Descubiertas” acessíveis por esse curso fluvial que tinha suas nascentes nos altiplanos bolivianos. Contudo, o rio Beni fazia parte da bacia do rio Madeira, dificultando sobremaneira o acesso dos seringalistas bolivianos a essa área. Porém, os rios Acre, Iaco e Tarauacá pertenciam à bacia do rio Solimões e eram acessíveis aos brasileiros pelos rios Purus e Juruá, cursos fluviais plenamente navegáveis durante todo o ano. A facilidade de acesso dos brasileiros, associada ao boom da economia da borracha na segunda metade do século XIX, dentre outros fatores, produziu a migração de milhares de brasileiros vindos dos estados do Nordeste, estabelecendo seringais nos altos rios Purus e Juruá”.

O estabelecimento de brasileiros nessa área levou a diversos conflitos armados a partir de 1894, entre seringalistas brasileiros e militares bolivianos, concomitantes a uma tensão diplomática envolvendo Brasil, Bolívia e Peru. Essas tensões culminaram com a anexação da área ao Brasil após a assinatura do Tratado de Petrópolis, em 1903. 

O papel dos rios nos acontecimentos que culminaram no Tratado de Petrópolis foi mais importante. Isso porque a maioria dos levantes armados dos seringalistas brasileiros contra o domínio boliviano no Acre aconteceram no período de vazante dos rios, no período entre abril e setembro, momento em que os seringais estavam repletos de trabalhadores para a extração da borracha. Quanto maior a quantidade de trabalhadores, maior a quantidade de corpos infectados com o Plasmodium, o agente etiológico da malária. O período de vazante, por sua vez, deixava maior quantidade de coleções de água onde se reproduzia o Anopheles, vetor da malária. Assim, os períodos de vazante dos rios eram, também, o momento em que os surtos dessa doença se intensificavam, coincidindo com a dificuldade de navegação dos rios, retardando a reação dos militares bolivianos e brasileiros. 

Os seringalistas, dispondo desse conhecimento e aproveitando-se das vicissitudes que assolavam as tropas inimigas, péssima logística, falta de adaptação ao clima e precárias condições de saúde, dentre outras coisas, derrotaram as forças bolivianas em várias ocasiões, o que forçou uma saída diplomática do governo brasileiro.

Os rios, o ciclo hidrológico e as doenças eram parte constituinte do sistema de aviamentos da economia da borracha. Na base do sistema estava o seringueiro, tratado como freguês, que trabalhava nos varadouros, as pequenas estradas no seio da mata que levavam às árvores da seringueira, a Hevea brasiliensis. O freguês produzia borracha e vendia a crédito para o seringalista, o patrão, dono do seringal, que, por sua vez, vendia o produto aos importadores na Europa e nos Estados Unidos, por intermédio de empresas exportadoras de Manaus e Belém. 

As empresas importadoras sustentavam toda a cadeia por meio de mercadorias e créditos que eram repassados como pagamento da borracha. A exportação e importação de borracha e mercadorias ocorria no período de cheia dos rios, entre outubro e março, quando a navegação era possível e os varadouros ficavam inundados, dificultando o corte da seringa. Os trabalhos de extração da borracha nos seringais, por sua vez, ocorriam no tempo de vazante, entre abril e setembro, quando as águas baixavam. 

Como consequência dessa lógica, os patrões se relacionavam apenas com seus “vizinhos” pertencentes a um mesmo curso fluvial e com as casas exportadoras de Manaus e Belém. Não havia qualquer necessidade de relação comercial ou política entre seringalistas de rios que corriam em paralelo, especialmente antes da formação dos departamentos.

O governo brasileiro, nessa altura, ainda ignorava os pormenores do papel dos rios na territorialização do Acre. Após a assinatura do Tratado de Petrópolis a área foi alçada à condição de “território federal” pelo Decreto 5.188 de 7 de março de 1904 e dividido em três departamentos independentes uns dos outros, governados por prefeitos nomeados pelo governo federal: departamentos do Alto Acre, do Alto Purus e do Alto Juruá. 

Em 1912, o Juruá seria desmembrado, surgindo o quarto departamento: Tarauacá. Em cada departamento foi fundada uma cidade que serviria de capital: Cruzeiro do Sul (Juruá), Sena Madureira (Purus), Rio Branco (Acre) e Seabra (Tarauacá). Como território federal, o imposto cobrado pela importação de borracha era destinado à União, que passaria uma parte para os departamentos a depender do orçamento anualmente votado pelo Congresso Nacional. 

Mas os habitantes não tinham o direito de votar em presidente e vice-presidente, nem de escolher representantes na Câmara e no Senado Federal, conforme mostra o escritor Leandro Tocantins, em “Formação Histórica do Acre”, publicação de 1979. 

Essa organização política trouxe uma série de consequências no âmbito local. A própria disposição territorial dos departamentos seguia um eixo administrativo Leste-Oeste, enquanto os rios corriam paralelamente em direção Nordeste, evidenciando a total falta de integração entre os departamentos e os rios. Mais do que integrar, essa divisão ajudou na formação de agremiações políticas pertencentes a um mesmo rio, as oligarquias fluviais que disputavam o controle das capitais dos departamentos por meio de bajulação, chantagem e coerção dos prefeitos nomeados pela União. Além disso, as oligarquias fluviais que passaram a ser hegemônicas nos departamentos estabeleceram estratégias para chamar a atenção do governo federal para as capitais dos seus departamentos, visando a futura elevação como capital de um território ou estado unificado do Acre. O que estava em jogo era a hegemonia das relações com a União por meio de maior proximidade e controle sobre o centro decisório no território.

O rio Iaco, enquanto caminho fluvial, teve péssima reputação entre os anos de 1905 e 1914. O Iaco era um rio de difícil navegação, e seu curso exibia vários vapores encalhados. Em 1906, o então prefeito do departamento do Alto Purus, Cândido José Mariano (1905-1910), registrou que a navegação no Iaco era completamente nula nos períodos de vazante, mesmo para embarcações de pequeno porte, em relatório da Prefeitura do Alto Purus, de 1906, páginas 63-64. Foi nesse problemático rio, mais precisamente na sua parte baixa, que o general José Siqueira de Menezes fundou o departamento do Alto Purus e sua capital Sena Madureira, em 4 de setembro de 1904.

Entre 1905 e 1910, Sena Madureira prosperou sob a prefeitura de Cândido José Marianno, que conseguiu forjar uma tênue aliança entre os interesses dos seringalistas dos rios Iaco, Macauã, Caeté e Purus, que atravessavam o departamento. Marianno ajudou as elites locais a criarem uma imagem positiva para Sena Madureira, ligando-o à saúde pública, quando começou a ser criada a imagem de que aquela era a cidade mais saneada e mais higiênica do Acre.

Como Sena Madureira se tornou a cidade mais higiênica do Acre e por isso candidatou-se à Capital

A prefeitura, mesmo com escassos recursos, se esforçou para organizar uma Diretoria de Higiene e normas de saúde pública buscando tornar Sena Madureira uma cidade livre de epidemias de varíola, sarampo e malária. Os seringalistas do rio Iaco, por sua vez, fundaram com recursos próprios o Hospital de Caridade 22 de Maio, o primeiro do Território do Acre. 

Em relatórios, Cândido Marianno pressionava o governo federal pela transformação do Acre em estado e a elevação de Sena Madureira a sua capital. Os esforços de construção de Sena Madureira como capital saneada deram resultados. Sua posição privilegiada no centro geográfico do território, associada às condições de saúde, motivou a abertura da sede de vários órgãos federais na cidade, como o tribunal de apelação, a mesa de rendas federais, a sede dos correios, a delegacia do Ministério da Agricultura e outros, já em 1908. 

Em 1910, Sena Madureira já era a principal capital do Território do Acre, autointitulada, provocativamente, como “rainha do Acre” pelos seringalistas do rio Iaco. Nesse momento, Sena Madureira era vista na capital federal como a mais forte candidata ao posto de capital do Acre, em caso de unificação ou elevação do território a estado da Federação.

A disputa entre as capitais se intensificou a partir de 1909, na esteira dos movimentos autonomistas e de debates no Congresso Nacional sobre a reorganização política do Acre. Em Cruzeiro do Sul, as elites locais se esforçaram para construir uma imagem ligada a um clima salubre associado à altitude – a  capital do Juruá situava-se a 200 metros acima do nível do mar, focando os esforços na educação. No Acre, por sua vez, as elites locais, por meio do prefeito Deocleciano Coelho de Souza, atacaram o ponto fraco de Sena Madureira: a navegabilidade do rio Iaco. Souza destacava em relatórios para o governo federal que Rio Branco era a melhor candidata a capital, pois o rio Acre era o único navegável durante todo o ano, diferentemente de Sena Madureira e Cruzeiro do Sul, que ficavam isoladas do Brasil durante os períodos de ápice das vazantes dos rios Iaco e Juruá, respectivamente.

Em 1909, um acordo costurado entre os autonomistas do Alto Acre e as elites dos rios Caeté e Purus foi visto pelos seringalistas iacoaras como uma traição à causa de Sena Madureira como capital. Nesse mesmo ano, as elites do rio Iaco, representadas pelos coronéis Avelino de Medeiros Chaves, seringalista no alto Iaco, e Childerico José Fernandes, do no médio Iaco, realizaram um violento expurgo dos partidários das elites dos rios Caeté-Purus da cidade de Sena Madureira, consolidando a hegemonia iacoara sobre o departamento.

Tropas do Exército são mobilizadas para conter movimento de autonomistas: mortos e feridos 

Os debates na Câmara e no Senado Federal sobre uma possível reorganização do território do Acre ou sua elevação a estado se prolongaram, e as tensões nos departamentos do Acre se intensificaram. A exiguidade de verbas destinadas pela União aos departamentos também gerou o aumento das tensões. Além desses fatores, os departamentos do Alto Acre e do Alto Juruá sofriam com a nomeação de prefeitos que se recusavam a dialogar com os seringalistas, enquanto no Purus aumentava o descontentamento dos seringalistas iacoaras com os juízes, a maioria, aliados dos seringalistas do rio Caeté. O pesado imposto federal sobre a borracha de 22% sobre o produto exportado, a falta de direitos políticos e as incertezas sobre o futuro da área levaram muitos seringalistas a cogitarem a conquista da autonomia estadual pelo uso da força.

Em 1º de junho de 1910, aproveitando o ápice da vazante dos rios, os seringalistas e líderes autonomistas do Juruá expulsaram o então prefeito João Cordeiro e proclamaram a autonomia estadual do Acre. De modo a conquistar o apoio das elites iacoaras e do rio Acre ao movimento, os rebelados declararam Sena Madureira a capital do novo estado e Antônio Antunes de Alencar, líder autonomista no Departamento do Alto Acre, governador. O aceno para as elites hegemônicas nos departamentos vizinhos não foi suficiente para conquistar apoio ao movimento. O governo federal mobilizou tropas do Exército para conter a rebelião e, em resposta, um seringalista do Juruá declarou que a repressão ao movimento seria “impossível, pois que só em novembro a navegação do rio é franca”, conforme mostra a publicação “Revolução”, do jornal  “O Paíz”, de 16 junho de 1910.

O então presidente Nilo Peçanha buscou o diálogo considerando os altos custos materiais e de vidas que poderia acarretar a mobilização das Forças Armadas para o Território do Acre durante o ápice da vazante do rio Juruá. Nesse momento, as Associações Comerciais de Belém e Manaus pressionavam os proprietários seringalistas do Juruá a recuarem. O movimento foi perdendo adeptos e coesão até a sua total dissolução, no mês de outubro. O presidente Hermes da Fonseca, empossado em novembro de 1910, nomearia um novo prefeito, Pedro Avelino, incorporando também lideranças autonomistas na máquina administrativa da prefeitura como forma de dissuadi-los da causa.

A situação no Território do Acre permaneceria tensa até 1912, apesar dos esforços do governo federal em dissolver os movimentos autonomistas por meio de nomeações de suas lideranças a cargos públicos nos departamentos. A nomeação de Tristão de Alencar Araripe em março de 1912 como prefeito do Alto Purus representou um desastre político. Araripe aliou-se aos seringalistas do rio Caeté e hostilizou as elites iacoaras e seus aliados em Sena Madureira. Os seringalistas iacoaras esperaram até o início de maio, período inicial da vazante do rio Iaco, quando convocaram os seringueiros para a deposição do prefeito. O conflito ganharia contornos autonomistas e, em 3 de maio de 1912, centenas de seringueiros sitiaram Sena Madureira por terra e água sob a liderança do coronel Childerico José Fernandes. No dia 7 de maio seria novamente proclamada a autonomia estadual do Acre, conforme conta “A Revolução”, artigo no jornal “O Alto Purus”, em 12 maio 1912.

A revolta autonomista do Alto Purus ocorreu envolta em controvérsias entre os seringalistas do rio Iaco. O coronel Childerico José Fernandes defendia que a deposição do prefeito deveria ser realizada em maio. Por sua vez, o coronel Avelino de Medeiros Chaves e outros seringalistas eram contrários, em razão da possibilidade de ocorrência de chuvas em princípios do mês de junho, provocando um repiquete, como são chamadas as cheias momentâneas provocadas por chuvas fortes na cabeceira do rio. O grupo de Avelino Chaves considerava prudente a revolta ter início apenas em meados de junho. Entretanto, a decisão de Fernandes foi mantida. As lideranças autonomistas do Alto Acre e do Alto Juruá descartaram apoiar a revolta no Alto Purus e o governo federal ordenou a mobilização de tropas do Exército para a região, mostra  de novo  “O Paíz”, em 17 maio 1912. 

A vazante do Iaco e do Purus impedia a chegada do contingente militar, mas o maior temor do grupo de Avelino Chaves se concretizou: fortes chuvas no início de junho promoveram um repiquete dos rios Iaco e Purus, formando o caminho para as tropas federais. Em 8 de junho ocorreu o bombardeio a Sena Madureira e um combate de 6 horas que terminou com oito mortos e inúmeros feridos. 

As relações da União com o departamento do Alto Purus nunca mais seriam as mesmas após a rebelião. Responsáveis pelo pior conflito armado no Território do Acre desde os levantes contra a Bolívia, os seringalistas do rio Iaco passaram a ser vistos como uma oligarquia autoritária, disposta a exercer pressão por meio das armas, desestabilizando uma região de fronteira. Um inquérito foi instaurado para investigar a rebelião e confirmou que a revolta de 1912 foi provocada por uma disputa de poder envolvendo os seringalistas do Iaco e do Caeté, revela o jornal  “O Alto Purus’, em 13 de novembro de 1912.

Diante dessas evidências, o presidente Hermes da Fonseca destituiu Tristão de Araripe do cargo de prefeito, substituindo-o por Samuel Barreira, homem de confiança do coronel Childerico Fernandes, pondo fim às tensões. Entretanto, quando as discussões sobre a reorganização do Acre recomeçaram em 1915, o Executivo federal pressionou pela extinção do departamento do Alto Purus, de modo a isolar as elites do rio Iaco.

Outra questão ficou clara para o governo federal e mesmo para a imprensa: a relação entre seringalistas, rios e doenças. O jornal A Noite, em 17 de maio de 1912, momento em que ocorria a revolta autonomista no Purus, publicou um sinistro editorial prevendo que o Exército lutaria com ampla dificuldade no Purus em razão da época de vazante dos rios. De acordo com o editorial, os rios Purus e Iaco só seriam navegáveis até Sena Madureira no mês de novembro ou dezembro. O texto profetizava que cerca de, no mínimo, 50% da tropa seria dizimada pelas febres palustres (malária) durante a espera da cheia do rio, em frente ao lugar denominado “Cachoeira Hilário Alves”, no rio Purus. Como alternativa ao plano de invasão, o editorial pregava o bloqueio fluvial de víveres e outros materiais de primeira necessidade, admitindo, porém, que o cerco só surtiria efeito prático 5 ou 6 meses depois do seu início.

Por sua vez, a revista ilustrada “O Malho” publicou uma série de charges evidenciando o papel dos rios e do ciclo de cheias e vazantes na emergência das revoltas autonomistas no Território do Acre. Uma das mais explícitas foi publicada por Alfredo Storni em 25 de maio de 1912. O seu conjunto, incluindo as legendas, explicitou a noção de aliança entre os seringalistas, o rio Iaco e a malária. As bandeiras que tremulam do lado direito da charge lembram estandartes de povos ou unidades políticas que, juntas, remetem a uma espécie de confederação. A senhora impaludismo, que congrega aqui o Plasmodium e o mosquito do gênero Anopheles, segue na linha de frente desse exército confederado em prol da autonomia do Acre, com o papel de compelir as forças adversárias antes de sua chegada às trincheiras seringalistas. 

Na segunda linha há a viação fluvial, representada pelo leito seco do rio com um navio encalhado. A “viação fluvial” nessa região dificultava o transporte e a manobra do Exército na região, auxiliando na promoção da fome e na ação da senhora “impaludismo”. Na retaguarda, no topo da colina, estava a “revolução do Acre”, ou os seringalistas rebelados com seus rifles à espera da força federal.

Contudo, a dinâmica fluvial e hidrológica era forte e imprevisível demais para ser considerada uma vantagem perene pelos seringalistas. A dinâmica das águas na região fortalecia as posições dos autonomistas nos momentos de embate armado e na retórica do conflito. Mas os interesses autonomistas também eram enfraquecidos com o domínio dos rios sobre a comunicação entre o Território do Acre e o Brasil. O rio Juruá e o regime de chuvas nessa bacia ajudaram o movimento autonomista de 1910 a intensificar os debates sobre a autonomia do Acre, embora a conquista do status de estado tenha fracassado. Já os rios Iaco e Purus, associados ao episódio das chuvas de junho de 1912, enfraqueceram as forças de Childerico Fernandes, que tiveram de enfrentar as tropas federais graças à cheia momentânea. 

Os próprios seringalistas do Território do Acre admitiam que a aliança com os rios era sempre provisória, predominando as incertezas nos momentos mais decisivos dos conflitos políticos.  A amplitude dessas incertezas era pouco conhecida: o rio Iaco e o ciclo das águas se mostrariam muito mais erráticos, participando de transformações materiais e políticas mais profundas.

Como Sena Madureira foi capital batizada de “Rainha do Acre” e era o vice-consulado de Portugal

O núcleo urbano de Sena Madureira atingiu seu ápice nos anos de 1913 e 1914. Nessa época, os regulamentos da Diretoria de Higiene foram atualizados e o Hospital de Caridade foi ampliado. O cientista Carlos Chagas, em relatório médico decorrente das expedições do Instituto Oswaldo Cruz no interior da Amazônia entre 1912 e 1913, confirmaria Sena Madureira como a cidade mais confortável e salubre do território do Acre. Seu núcleo urbano tinha uma população de pouco mais de 3 mil pessoas, contava com sala de cinema, teatro e praças, e passou a dispor, a partir de fins de 1914, de uma linha de bondes de tração animal. Sendo sede dos órgãos federais no Território do Acre, do vice-consulado de Portugal e do Peru, Sena Madureira ainda podia ostentar o já mencionado apelido “rainha do Acre” em 1914.

Paradoxalmente, o clima nos seringais era de apreensão pela crise da borracha. Em 1913, a cotação da borracha em Belém chegava ao nível mais baixo desde 1891, mostra o historiador Pedro Martinello, em 2004. O Plano de Defesa da Borracha, iniciativa do governo federal para socorrer a economia da borracha, fracassaria, sendo extinto pelo Congresso Nacional em 31 de dezembro de 1913. Frente à crise, a prefeitura do Purus e a Delegacia do Ministério da Agricultura procuraram incentivar a agricultura estabelecendo plantações em áreas próximas ao núcleo urbano, mostra o “O Alto Purus”, em  23 de maio de 1915.

A chamada “quadra invernosa” de 1915 começou em fins de outubro de 1914, atingindo seu ápice nos meses de janeiro e fevereiro. Choveu em 21 dias no mês de janeiro e 13 dias no mês de fevereiro. O volume de chuvas acumulado no mês chegou a 1.022 milímetros em janeiro e 503 milímetros em fevereiro. A quantidade de chuvas foi muito alta comparada com a média normal para esses meses, que somava entre 300 e 438 milímetros mensais.

Em 5 de fevereiro de 1915 a área rural de Sena Madureira e os subúrbios foram atingidos pela cheia excepcional do rio Iaco. Dois dias depois, as águas avançaram por várias das principais ruas da cidade, ganhando contornos trágicos. Em 20 de fevereiro a altura das águas fez todas as repartições públicas fecharem as portas, e a população intensificou um êxodo em massa para o interior da floresta, rumo às partes altas não atingidas pelas águas. No domingo, 21 de fevereiro, o volume das águas atingia seu ápice, tomando todas as ruas da cidade. Porém, na manhã do dia seguinte, finalmente o nível das águas estacionou, dando os primeiros sinais de vazante nos dias posteriores.

As consequências imediatas da grande cheia incluíram a fome, a destruição de toda a incipiente agricultura e enormes prejuízos com a perda de mercadorias, utensílios e casas. Os sedimentos carregados pelo rio Iaco e a força das águas destruíram as valas de drenagem de águas pluviais e os aterros que planificavam o solo no núcleo urbano. Sem o sistema de drenagem, grande quantidade de águas fluviais e pluviais ficou empoçada, favorecendo a proliferação dos mosquitos do gênero Anopheles, vetor da malária. 

O ano de 1915 foi marcado pelo maior surto de malária já visto em Sena Madureira até então, provocando pelo menos 34 mortes. Epidemias de coqueluche, sarampo, varíola e doenças gastrointestinais também atingiram Sena Madureira nos meses subsequentes à cheia. Em 21 de novembro de 1915 a prefeitura admitiu o dramático ciclo de múltiplas e intensas epidemias que atingiam Sena Madureira, condição jamais vista antes, deixando ao menos 68 mortos. Esse episódio ficou conhecido como “a hecatombe de 1915”,dizo “O Alto Purus, em 21 de  novembro de 1915.

Sonho de se tornar Capital é aniquilado pela enchente do rio Iaco em 1915: cidade destruída

A cheia do rio Iaco de 1915 repercutiu na imprensa de vários estados. Contudo, as reações nos departamentos vizinhos, guardaram relações com as disputas políticas em torno da escolha da futura capital. A exceção foi o caso do Tarauacá, departamento periférico nessa disputa por ter emergido apenas em 1912.

Nos primeiros meses de 1916, Sena Madureira estava irreconhecível frente ao que fora em fins de 1914. Após o recuo das águas, trauma e perplexidade pareciam seguir de mãos dadas no ânimo dos seringalistas do Iaco e seus aliados, com o aprofundamento da crise da borracha e destruição da cidade símbolo do poderio iacoara. Em grande medida essa atmosfera pesada era fruto da percepção de que a cheia de 1915 era uma verdadeira tragédia para as elites locais. A cheia de 1915 não apenas aniquilou Sena Madureira enquanto capital saneada e sonhada, como também foi um duro golpe para a já debilitada economia da borracha no Iaco. Mas a situação viria a piorar: 1916 foi um “ano sem água”, marcado por uma quantidade menor de chuvas do que em anos anteriores. O rio Iaco permaneceu em vazante, dificultando o escoamento da já prejudicada produção da borracha de 1915.

A grande cheia de 1915 fortaleceu as pretensões dos seringalistas do rio Acre em tornar Rio Branco centro político, seja de um território federal unificado ou de um novo estado da Federação. Apesar da intensificação da crise da borracha, as circunstâncias favoráveis se aprofundaram entre 1916 e 1920. A bacia do rio Acre era a mais populosa do território, contava com a maior produção de borracha e, em 1915, tinha também a maior população urbana.

Desde 1910 as elites seringalistas do rio Acre rejeitavam o confronto direto com o governo federal, preferindo negociar em eventuais crises. Em termos de saúde pública, algumas mudanças efetivamente ocorreram, com a expansão da cidade para áreas não alagáveis pelo rio Acre e com a fundação do Hospital de Caridade Augusto Monteiro, em 1918. Por fim, a navegabilidade do rio Acre e a facilidade de comunicação entre Rio Branco e a capital federal mantiveram a cidade como forte candidata a capital do Território.

Eventos similares à excepcional cheia e vazante do rio Iaco no biênio 1915-1916 assolaram o núcleo urbano de Sena Madureira nos anos de 1918, 1919 e 1925. Ou seja, nos anos seguintes ficou mais evidente que a própria regularidade do ciclo de cheias e vazantes entre 1904 e 1914 fora uma contingência que ajudou na emergência de Sena Madureira como área propícia ao estabelecimento de uma futura capital.

Após a cheia de 1915, tanto Childerico Fernandes quanto Avelino de Medeiros Chaves, os mais importantes seringalistas do rio Iaco, abandonaram o plano de Sena Madureira como capital do Acre. Childerico Fernandes capitulou, aceitando a hipótese de Rio Branco como a nova capital. Avelino Chaves, por sua vez, insistiu em uma saída negociada, propondo a incorporação do povoado de Boca do Acre, no Amazonas, ao Acre e estabelecendo lá a nova capital.

A cheia de 1915 proporcionou uma oportunidade política para o governo federal e para as elites do rio Acre. A reorganização do Acre voltaria a ser debatida naquele ano com a proposta de unificação dos departamentos em dois territórios federais distintos, administrados por governadores nomeados pela União, anexando os departamentos do Alto Purus e Tarauacá ao Acre e ao Juruá, respectivamente. Os debates no Congresso degeneraram em novo plano: a unificação do Território Federal do Acre, com Rio Branco sendo alçada à condição de capital.

Já nesse ano, Sena Madureira sofreria suas primeiras derrotas. A Delegacia Fiscal do Território do Acre e a sede dos Correios foram extintas em meados de novembro de 1915. Em 28 de fevereiro de 1917 ocorreria a segunda grande derrota das elites iacoaras com a assinatura do Decreto 12.045 pelo então presidente Venceslau Brás, instituindo a transferência da Justiça Federal e do Tribunal de Justiça para Rio Branco.

Território unificado faz de Rio Branco a capital única do Acre em 1920

Apelação de Sena Madureira para Rio Branco. Outras sedes federais localizadas em Sena Madureira e em Cruzeiro do Sul foram extintas ou transferidas também para Rio Branco, como indicativo da nova proeminência que a capital do departamento do Alto Acre adquiria. Em 20 de outubro de 1920 ocorreria a derrota final, com a assinatura do Decreto 14.383, extinguindo os departamentos, unificando o Território Federal do Acre e elevando Rio Branco à condição de capital.

Começava então a ser concretizado o anseio que fez emergir o Movimento Autonomista, com a criação do Território do Acre, em 1903. Sem poder eleger seus governantes e sem poder usufruir benefícios decorrentes dos impostos aqui coletados durante o ciclo da borracha, os acreanos se viam submetidos política e economicamente à União.

Movimento autonomista acreano – Foto: Agecom Gov. do Acre

Com a derrocada da borracha em 1920, o Movimento Autonomista perdeu parte de suas forças, até o começo do governo de José Guiomard Santos, em 1942. Em 1946, o Território do Acre recebe seu novo governador, o experiente militar José Guiomard dos Santos. Sua escolha pelo governo federal não foi à toa – a experiência desenvolvida por ele no Território de Ponta Porã, hoje Mato Grosso do Sul, foi importante para o governo federal, e ele foi enviado para o Acre com um único objetivo: dar jeito na situação caótica que havia aqui.

Rio Branco em preto e branco/Foto: Reprodução

Seu governo durou até 1950 e foi considerado um marco. Tendo como lemas “Trabalho e Honestidade” e “Creio no Acre e nos Acreanos”, ele criou grandes avanços no Território do Acre, promovendo transformações de ordem econômica, social e cultural. Foi também o primeiro governador a fazer Reforma Agrária no Brasil, começando pelo Acre. Para impulsionar a economia, trazia até mesmo bois de avião. Após seu governo, Guiomard aproveitou a Constituição de 1934, que dava ao Acre o direito de escolher dois deputados federais, e foi eleito nos anos de 1950, 1954 e 1958.

José Guimard Santos/Foto: Reprodução

Após seu governo, na campanha eleitoral para o primeiro mandato federal, ele manifestou o desejo de transformar o Acre em Estado. E em 1954, quando exercia o segundo mandato, apresentou o projeto e saiu nas cidades e vilas, participando de comícios e reuniões, esclarecendo a população sobre a ideia.

Guiomard Santos propõe o Acre como Estado mas enfrenta oposição do PTB, que acaba assumindo o governo

Apoiado por muitos outros autonomistas, como deputado federal Guiomard Santos apresentou, no Congresso Nacional, um projeto de lei elevando o Acre de território federal a Estado, medida concretizada em 1962.

Com a assinatura da lei nº 4.070, que elevou o Acre a Estado, em 15 de junho de 1962, um novo caminho era iniciado: a independência política. Mas os acreanos não chegariam a essa conquista sem antes muito combate político entre os tantos partidos que havia. Parte dessa história pode ser estudada com mais profundidade a partir do trabalho “Invenções do Acre: um Olhar Social sobre a História Institucional da Região Acreana”, da historiadora Maria José Bezerra, que ouviu diversos militantes da época.

Professora da Ufac, Maria José Bezerra/Foto: Reprodução

“O partido daqui era a Legião Autonomista, era o mais importante. A chapa popular era o Partido do Judiciário. Em 1945 Getúlio Vargas criou tanto o PSD quanto o PTB. Havia ainda a UDN”, afirmou em entrevista à historiadora, em 1996, o jornalista Foch Jardim, que teve seus direitos políticos cassados durante a ditadura militar.

Com esse contexto partidário, Aníbal Miranda, que foi governador nomeado entre 1960 e 61, deu sua versão dos fatos que levaram à assinatura da lei, também em entrevista a Maria José: “Vale dizer que o projeto aprovado não foi o mesmo apresentado pelo Guiomard. Sofreu modificações. O PTB não queria o projeto. O Acre não tinha condições de ser Estado”. Aníbal era ativista do PTB e também foi cassado após 1964.

Em Cruzeiro do Sul, no Juruá, o clima também era tenso entre os que queriam e não queriam a autonomia do Acre. Comerciantes e a elite seringalista temiam impostos e dispunham de armas para que o projeto não prosseguisse. Mas havia aqueles que buscavam uma alternativa. “A causa autonomista cresceu em Cruzeiro do Sul. O pessoal se conscientizou de que deveria fazer o Estado. Para nós, o ponto culminante da luta foi 1958, quando colocamos o Guiomard como deputado federal. Ele lutou e o Acre virou Estado”, afirmou ocomerciante e ex-deputado estadual Cláudio Perez Nobre, integrante do PSD, partido de Guiomard.

Com muitos debates, discussões e até navalhadas, como relatou Foch Jardim, a política acreana chegou a um de seus episódios mais importantes. O Acre elevou-se a Estado, ganhou sua autonomia e pôde escolher seu primeiro governador, José Augusto de Araújo, um dos que não utilizou a bandeira autonomista em sua campanha.

Desse modo, logo houve a primeira eleição direta, em que o povo escolheu José Augusto de Araújo para governador. O professor de filosofia tinha ideais avançados: promoveu a reforma agrária e era entusiasta do método de alfabetização Paulo Freire, com o qual promovia a conscientização da classe dos trabalhadores. Em 1964, com o Golpe Militar, o capitão do Exército Edgard Cerqueira tomou o Palácio Rio Branco, obrigou José Augusto a renunciar e assumiu o governo.

Ex-governador José Augusto de Araújo/Foto: Reprodução

Dois anos depois das eleições, a ditadura cerceou toda a liberdade brasileira e fortaleceu as elites econômicas. Grupos que chegaram ao estado desmatando e expulsando o povo de suas terras, fazendo nascer aí a próxima etapa da luta acreana. A cultura do Acre foi se reafirmando com cada batalha, mostrando que tem seu próprio jeito de fazer política e desenvolver sua economia e sociedade.

O ex-deputado federal constituinte Osmir Lima, 78 anos, foi um dos participantes do Movimento dos Autonomistas, e revela os motivos de a oposição, liderada pelo PTB, ser contra a ideia da elevação do Território do Acre à condição de Estado. “A oposição dizia que o Acre ia se acabar, e nós falávamos das vantagens de planejar o nosso desenvolvimento e escolher”. 

“Eu era locutor dos serviços de alto-falante em Cruzeiro do Sul, ao lado de Benjamin Ruela. Começávamos às 8 horas da manhã e terminávamos a transmissão do dia apenas com a oração da Ave-Maria, às 6 horas da tarde. Era um combate de ideias, não de pessoas. Eu não fiz inimigos. A oposição dizia que o Acre ia se acabar, e nós falávamos das vantagens de planejar o nosso desenvolvimento e escolher nossos governantes. Eu fazia entrevistas, lia os discursos, além dos comícios. Montamos serviços de barco para chegar aos ribeirinhos, espalhar o sentimento do desejo pela autonomia. Era um movimento forte, mas precisava ter a opinião pública do nosso lado para isso”, lembra Osmir Lima, que aos 17 anos participou ativamente do Movimento Autonomista.

Osmir LIma foi autonomista aos 17 anos/Foto: Reprodução

O projeto de mudança, porém, foi aprovado pelo Congresso Nacional somente em 1961. E no dia 15 de junho de 1962, o presidente da República, João Goulart, e o então primeiro-ministro, Tancredo Neves, assinaram a sanção que transformou o Acre em Estado da República Federativa do Brasil.

Falando sobre a data histórica, que contou com a participação do então deputado federal Oscar Passos, contrário à aprovação do Acre Estado, Lauro Santos revela: “Tancredo Neves era muito amigo do meu avô, porque eles eram mineiros, e por isso ele ajudou muito o Movimento Autonomista e incentivou que o Acre se tornasse Estado”.

Com a passagem do Acre de Território para Estado, a primeira medida foi convocar o povo para sua primeira eleição direta. Era hora de escolher o primeiro governador e o primeiro senador do Acre. “Ele era um homem muito dinâmico. Sempre foi um líder. Ele achava que um acreano deveria ser eleito para o governo, muita gente não queria, mas o movimento estudantil deu força. Foi uma empolgação”, conta a ex-deputada federal Maria Lúcia de Araújo, viúva de José Augusto.

As primeiras eleições do Acre foram históricas e representavam bem o comportamento do povo acreano, que sempre foi interessado pela movimentação política do Estado. Na campanha para governador, estavam Guiomard dos Santos e José Augusto, jovem professor de filosofia, nascido em Cruzeiro do Sul e pertencente ao PTB, partido que fizera oposição à autonomia do Estado.

No Acre, todos achavam que o governador a ser eleito seria naturalmente Guiomard Santos. Abertas as urnas, veio a surpresa: os acreanos preferiam eleger José Augusto de Araújo, que aparentemente havia virado o jogo com a campanha “O Acre é Para os Acreanos”. Guiomard Santos era mineiro.

Mesmo assim, Guiomard dos Santos não amargou a derrota – na época, era possível aos políticos se candidatarem em duas vagas diferentes. Como Guiomard também se candidatou a senador, foi eleito para o cargo e voltou para o Rio de Janeiro como o primeiro senador do Acre.

Mas a democracia no Acre teve dias curtos. Em 1964, o golpe militar toma conta do Brasil, e no Acre, o militar Edgar Cerqueira cerca o Palácio de Rio Branco, obriga José Augusto a renunciar, assume o governo e faz com que a Assembleia Legislativa reconheça-o como governador do Acre por dois anos. 

“Os políticos contra José Augusto se aliaram a Cerqueira, que não conhecia o Acre, era um recém-chegado e foi muito influenciado. José Augusto já estava doente do coração, assumiu sua renúncia para que tudo fosse pacífico e em menos de 24 horas saímos do Acre de volta para o Rio de Janeiro. Só depois é que o ditador Castelo Branco veio tomar noção das coisas que estavam acontecendo no Acre”, disse a viúva Maria de Lúcia de Araújo.

Para José Augusto e a esposa, momentos ainda mais difíceis viriam. O ex-governador foi cassado, teve mandado de prisão decretado e foi obrigado a passar um tempo escondido. Tinha que ir com frequência para a Auditoria Militar, em Belém (PA), e nesse meio tempo piorou do coração, tendo quatro infartos. Morreu em 1971, antes de completar 41 anos. Mas o Acre-Estado que seu Partido um dia combateu completa hoje seus 61 anos de fundação.

As principais datas históricas do Acre

1904 – Fim da Revolução Acreana. O Acre é incorporado ao Brasil na condição de Território após a assinatura do Tratado de Petrópolis.

1910 – Revolta dos 100 Dias em Cruzeiro do Sul. Comerciantes depuseram o prefeito. Exército precisou intervir.

1912 – Revolta de Sena Madureira. Marinha bombardeia a cidade.

1912 – O governo federal castiga Cruzeiro do Sul criando o Departamento de Tarauacá, dividindo o Juruá e diminuindo seu poder.

1913 – Acaba-se o primeiro ciclo da borracha. A ideia de criar um Estado enfraquece sem a riqueza gerada pela borracha.

1918 – Revolta de Rio Branco. Primeiro Distrito contra Segundo Distrito.

1920 – Unificação dos quatro departamentos do Acre para que a administração saia mais barata para a União.

1920 a 1930 – Grande crise econômica e social.

1934 – Nova Constituição dá ao Acre o direito de eleger dois deputados federais. Começa o período de organização política local.

1946 a 1950 – Governo de Guiomard Santos.

1946 a 1962 – Estruturação dos grandes partidos. Ascensão de Oscar Passos pelo PTB e de Guiomard dos Santos pelo PSD.

1954 – Guiomard começa a desenvolver o projeto do Acre Estado.

1957 – Guiomard apresenta o projeto para tramitar pelo Congresso. É montada a Comissão Pró-Autonomia, com sede em todos os sete municípios existentes no Acre na época.

1961 – O projeto da criação do Acre Estado é aprovado.

1962 – Sanção do presidente da república, João Goulart, e do primeiro ministro, Tancredo Neves. Imediata convocação das eleições diretas para governo do Acre.

1962 – José Augusto é eleito primeiro governador do Acre.

1964 – O Golpe Militar força José Augusto a renunciar. O militar Edmar Cerqueira assume o governo por dois anos. Foram 20 anos sob o regime militar sem a possibilidade de escolher seus governantes. Ainda assim, todos os governantes foram acreanos, porém pertencentes ao partido do governo ditador, a Arena.

1982 – Redemocratização e eleições diretas para o governo. Nabor Júnior foi eleito governador pelo povo.

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