Artista plástica que sempre adorou escrever, dona Margareta se surpreendeu com as instruções detalhadas deixadas por sua mãe sobre o que fazer após a morte com cada objeto em sua possessão. Rotina que ela iniciara após completar 65 anos. Era o döstädning, da qual se tornou devota. A disposição da mãe a ajudou, inclusive, conta, a viver melhor o luto.
Decidiu então passar a sabedoria adiante, em conversas e instruções à filha sobre as coisas que a rodeavam. Virou febre nas redes sociais. O livro, um manual simples, direto e recheado de compaixão com dicas mais ou menos óbvias, organizadas de forma clara, multiplicou sua audiência. E ela foi, inevitavelmente, comparada à guru japonesa da ordem e do bem-estar, Marie Kondo. Na entrevista ao GLOBO, a sueca, no entanto, enfatiza as diferenças que as separam: “Marie trata da organização das coisas que você manterá consigo. Eu escrevo sobre se despedir delas”.
Eliminar pertences em vida com foco em quem lidará com suas pegadas pode ser, argumenta a artista, mais revigorante do que inusitado. Parece o argumento perfeito para uma série de TV na linha makeover, que acompanhe indivíduos interessados em aprender como deixar sua morte organizada na prática, do testamento às roupas e joias a serem doadas, e para quem. E é. A Midas da comédia Amy Poehler abraçou a ideia e produziu “The gentle art of Swedish death cleaning”. O programa estreou em abril no serviço de streaming Peacock, do canal americano NBC, e recebeu elogios da revista Rolling Stone (“Com graça e humor fino, não debocha das pessoas, mas celebra sua resiliência”).
Os principais trechos da conversa por e-mail com a autora de 89 anos que, lá fora, já lançou um segundo livro, reunindo pérolas do bem viver, seguem abaixo:
A senhora se surpreendeu com a recepção a “O que deixamos para trás”?
Se eu me surpreendi? Sim, e muito! Mas também fiquei felicíssima. Honestamente, jamais imaginei que um livro centrado em limpeza e em morte pudesse se tornar tão popular. Muitas pessoas detestam fazer arrumações, faxinas, jogar as coisas fora. E muitas outras mais também receiam falar sobre a morte, embora ela seja, claro, inevitável. Mas defendo que fazer a “limpeza preparatória para a morte”, que é o núcleo do livro, é uma ideia sã para o corpo e para a mente. E creio que a maioria das pessoas acaba compreendendo isso com a leitura.
Quais são as principais diferenças entre fazer uma faxina regular e o döstädning?
Uma boa faxina requer tirar o pó dos objetos, lavar tudo com esmero, limpar o chão, usar panos molhados, lavar a louça, os vidros da casa e as roupas. Já a limpeza preparatória para a morte é algo de dimensão muito maior do que isso. É, essencialmente, se livrar dos seus excessos, de suas quinquilharias, do acúmulo, se houver, para que ninguém tenha de fazê-lo mais tarde. É ser sustentável consigo mesmo e com os outros. É ser elegante, delicado, gentil com quem fica. Bem diferente de apenas lavar os pratos no fim do dia.
Qual a melhor maneira de abordar as pessoas mais velhas sobre o tema?
Perguntar a elas se de fato querem tudo aquilo que têm a seu lado. Lembrar que há o risco de as coisas se acumularem de tal modo que pode afetar a saúde delas, inclusive literalmente, tropeçando e caindo em cima de coisas amontoadas, como já testemunhei. Também é bom oferecer ajuda a elas para se iniciar a faxina antes da morte. E, sendo bem cabotina, lhes presentearia com um exemplar do meu livro.
Há uma fórmula para se identificar o que é inegavelmente quinquilharia, e o que, mesmo parecendo inútil, é algo que se tem apego, que vai doer deixar ir?
A regra é clara: tudo aquilo que você ainda usa muito, que te acompanha no cotidiano, mantenha. Não jogue fora. Agora, em geral, a não ser que exista uma razão para tanto (um segredo, por exemplo), se livre imediatamente daquilo que está esquecido no porão, em caixas que não são abertas há anos, nos fundos dos armários, mofando na garagem. Aprenda a dizer adeus. Eu, por exemplo, faço esta limpeza constantemente.
Mas a senhora nunca sentiu remorso por algo seu que foi abandonado, doado, após uma das limpezas? Nem mesmo de suas obras de arte que, imagino, também se acumularam com o tempo?
Já doei todas. Gosto de imaginar que elas agora estejam alegrando outras pessoas. Não tenho remorso algum de tudo o que se foi — pelo menos até agora. Quando algo parte, para mim, se foi. Acabou. Longe do meu olhar, aquilo está distante do meu pensamento. E bola pra frente.
O que é o mais importante para que essa faxina antes da morte seja, de fato, feita com suavidade?
Sou uma mulher velha. Nada do que faço mais é rápido ou severo. Eu rumino, vou fazendo as coisas no meu tempo, viajando na minha vida através de objetos, fotos, cartas. A limpeza, do jeito que eu recomendo, é sempre reconfortante — e gentil.
Mas esse exercício não pode ser mais complicado em culturas latinas? Penso aqui no estereótipo de que somos mais emotivos do que vocês, nórdicos, por exemplo…
Bela pergunta! Descobri uma tendência interessante que é a de se retirar a palavra “morte” do título do meu livro na tradução para alguns países (é o caso, inclusive, mas a autora desconhecia, da edição brasileira), o que é algo bem curioso para mim. Ora, o foco do livro, sem a morte, pode ficar todo na limpeza. Há esse risco. Mas penso que sociedades ditas mais “emotivas” também irão se beneficiar com o exercício por mim proposto — a limpeza preparatória para a morte é essencialmente, afinal, um ato de cuidado com aqueles que você ama. Ou seja, é, no fim, também, um atestado de alguém que é, pelo menos um pouquinho que seja , sentimental sim, senhor.
A senhora acaba de lançar em inglês e sueco “A arte sueca de envelhecer bem: sábias dicas de alguém que (provavelmente) morrerá antes de você”. É uma continuação do livro anterior?
Não exatamente. Reuni as muitas experiências que tive na vida. E que quero dividir com quem fica.
A senhora já foi chamada de “Marie Kondo da morte”. É fã dela? Foi uma inspiração?
Admiro o trabalho dela, mas há pelo menos uma diferença central entre nós: Marie trata da organização das coisas que você manterá consigo. Tudo bem, mas não é o meu caso. Eu escrevo sobre se despedir dessas coisas. E comecei a escrever meu livro antes de ela se tornar fenômeno editorial.