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Mensagens revelam que clã Bolsonaro levou amigos, pastores e até cachorro em aviões da FAB

Por Metrópoles

Bolsonaro em evento com deputados do PL em SP - Danilo Verpa-26.jun.23/Folhapress

Listas de passageiros mantidas até agora sob sigilo e um conjunto de mensagens internas obtidas com exclusividade pelo Metrópoles mostram que, durante o governo Bolsonaro, a então família presidencial usou aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) para participar de eventos privados, como cultos religiosos, e para transportar amigos, parentes, pastores e até um cachorro de estimação.

Confins (MG), 26/01/2019 Presidente Jair Bolsonaro retornando para brasilia apos sobrevoo na região do Rompimento da barragem da Vale no corrego do Feijao. Local: Aeroporto Internacional de Confins - Tancredo Neves. Foto:

 Igo Estrela/Metrópoles

Voando em uma zona cinzenta das regras que regulam os voos oficiais, as frequentes demandas do clã por jatinhos chegaram a preocupar os próprios militares envolvidos nas missões.

Com base em dados oficiais do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República relativos aos quatro anos em que Jair Bolsonaro esteve no Palácio do Planalto, a reportagem mapeou mais de 70 viagens da família — todas feitas sem que o próprio Bolsonaro estivesse a bordo.

Foram 54 voos da então primeira-dama Michelle Bolsonaro, 10 do vereador Carlos Bolsonaro, o filho 02 do agora ex-presidente, e 7 de Jair Renan Bolsonaro, o 04.

Mensagem enviada ao organizar uma das missões religiosas de Michelle destaca que seriam necessários, na ida, 14 lugares – Arquivo Pessoal

Para além de informações sobre essas viagens, como detalhes dos deslocamentos e as listas detalhadas dos passageiros convidados, mensagens de um grupo de WhatsApp usado como canal oficial de comunicação pelos funcionários do GSI encarregados de providenciar os jatinhos revelam que os pedidos eram tratados como verdadeiras ordens — tudo sob a coordenação de altos oficiais das Forças Armadas que chefiavam o setor.

Michelle vai à igreja

Um exemplo que desafia os limites da legislação — e da falta de zelo com o dinheiro público — está nas viagens feitas por Michelle Bolsonaro para participar de cultos religiosos.

Após usar avião da FAB, cujo preço da hora de voo gira em torno de R$ 17 mil, Michelle ora com pastor Josué Valandro Jr., no Rio – Reprodução/Instagram

No material, há registro de pelo menos três viagens com esse propósito, sem que houvesse nenhum outro evento oficial com divulgação pública que justificasse o deslocamento da primeira-dama.

Michelle pedia jatinhos da FAB para voar de Brasília para o Rio de Janeiro, onde gostava de frequentar os cultos de uma igreja evangélica na Barra da Tijuca, zona oeste da cidade. E ela não ia sozinha. Normalmente, os aviões oficiais levavam, ainda, vários convidados da primeira-dama.

Mensagem oficial entre os militares do GSI deixa claro o propósito de uma viagem de Michelle partindo de Brasília: participar de um evento da Igreja Batista Atitude, na Barra da Tijuca, no Rio

É o caso de uma demanda de junho de 2019. A ordem para a missão dizia que Michelle participaria, “como voluntária”, de um evento chamado “Vida Vitoriosa” na Igreja Batista Atitude, frequentada por ela desde os tempos em que morava no Rio. A primeira-dama voaria acompanhada de “mais dez pessoas” na ida e de oito na volta.

O “pastor capeta” e a “amiga do cartão” a bordo

Missão dada, missão cumprida. No dia 28 de junho, um avião da FAB decolou da Base Aérea de Brasília com destino ao Aeroporto do Galeão, no Rio. Ao lado de Michelle, estava o pastor Francisco de Assis Lima Castelo Branco, um antigo amigo da família.

Pastor Francisco de Assis Castelo Branco é amigo da família Bolsonaro: pegou carona em avião da FAB quando não tinha cargo no governo

O jato usado na viagem foi um Embraer 135, com capacidade para 14 passageiros e cuja hora de voo costuma custar mais de US$ 3,5 mil, ou R$ 17 mil.

Alçado à condição de passageiro vip, Francisco, que chegou a organizar um “jejum” em nome do clã, viria a ganhar cargos no governo Bolsonaro. Ele é casado com uma amiga de Michelle que também foi nomeada na Presidência da República e costumava viajar, com frequência, na companhia da então primeira-dama. Um filho do casal também aparece nas listas de passageiros, assim como outras crianças, levadas pelos demais convidados.

À época da viagem para o compromisso voluntário de Michelle, o pastor não ocupava nenhum cargo no governo — ele só foi nomeado no ano seguinte.

Em reportagem publicada pelo Metrópoles no início deste ano, Francisco aparecia como uma espécie de capataz da primeira-dama no dia a dia do Palácio da Alvorada, do qual passou a ser administrador. Apelidado de “pastor capeta”, ele era alvo frequente de queixas de funcionários, que chegaram a relatar episódios nos quais se sentiram assediados moralmente.

Rosimary Cardoso Cordeiro e Michelle Bolsonaro: unidas nas páginas de inquérito da PF e na lista de passageiros sigilosa do GSI – Reprodução

No voo estava, ainda, a funcionária do Senado Rosimary Cardoso Cordeiro, amiga pessoal de longa data do casal Bolsonaro que, conforme revelou a mesma reportagem, emprestava a Michelle um cartão emitido em seu nome cujas faturas eram pagas em dinheiro vivo pela equipe do tenente-coronel do Exército Mauro Cid, ajudante de ordens do então presidente.

O esquadrão especial

Para deslocamentos como esse costumavam ser usadas aeronaves da frota do GTE, o Grupo de Transporte Especial da FAB, que serve a ministros do governo e outras autoridades.

As viagens solicitadas pela família eram “encaixadas” no quase sempre tumultuado roteiro organizado pelo setor, que atente ainda a cúpula do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional.

As outras viagens de Michelle Bolsonaro para participar de eventos evangélicos no Rio ocorreram nos dias 22 de fevereiro e 10 de maio de 2019. – Michael Melo/Metrópoles

Em agosto do ano passado, Michelle usou um avião da FAB para participar, em Belo Horizonte, de uma celebração em homenagem ao pastor Márcio Roberto Vieira Valadão, pai do também pastor André Valadão, que nos últimos dias ganhou as manchetes por incitar fiéis a matarem pessoas LGBTQIA+. O próprio Bolsonaro participou do evento, mas viajou à capital mineira em outra aeronave.

André Valadão e Jair Bolsonaro: Michelle e ex-presidente voaram com avião da FAB até Belo Horizonte para ver culto do pai de André(PL)

Nessas viagens, a então primeira-dama não estava acompanhada do presidente. Foram voos exclusivos para compromissos dela.

Dos 54 voos de Michelle que constam do levantamento, 33 apresentam uma finalidade vaga, sem indicação dos eventos dos quais ela supostamente iria participar. Nesses casos, os documentos apenas listam que as aeronaves decolariam “em apoio” a Michelle ou estariam “à disposição” do presidente em missões envolvendo a primeira-dama.

Arquivo Pessoal

Em dois trechos, uma viagem de ida e volta a São Paulo em 21 de setembro de 2019, o GSI declarou como motivo uma visita a uma entidade e uma “agenda privada”, sem mais detalhes.

A planilha registra, ainda, viagens para cidades como Cuiabá, Manaus, João Pessoa, Belo Horizonte, Roma e Londres.

A preocupação de quem recebia as ordens

Nas conversas de WhatsApp entre os próprios militares que serviam à Presidência, eram comuns intervenções que denotavam preocupação com a rotina de voos solicitados pelo clã Bolsonaro para atividades privadas e com amigos a bordo.

Ao preparar a viagem para Jair Renan, um dos militares demonstra preocupação ao comparar pedido com escândalos de outros governos: “As mesmas coisas feitas por outras pessoas” –Arquivo Pessoal

No começo de julho de 2019, por exemplo, um oficial postou uma reportagem publicada dez anos antes que deu o que falar. Era sobre um voo da FAB que levou de São Paulo a Brasília um grupo de amigos de um dos filhos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Na mensagem, o militar observa, com alguma dose de crítica: “As mesmas coisas feitas por outras pessoas”. “Temos que prevenir o PR (Presidente da República) e a FAB da história se repetir”, prossegue. Por fim, o oficial escreve: “Filho de presidente não pega carona”. O alerta parece não ter funcionado.

A cachorra voadora

A mensagem foi escrita no grupo de WhatsApp do GSI em um período no qual estavam sendo organizadas várias viagens de Jair Renan Bolsonaro.

A certa altura, até um dos cachorros da família foi transportado em um dos jatos: Beretta, a cadela vira-latas de Eduardo Bolsonaro cujo nome homenageia a famosa fabricante italiana de armas.

O grupo fazia as vezes de um canal oficial de comunicação por meio do qual eram compartilhadas as ordens de serviço. Entre os participantes estavam os chefes do setor à época, como o coronel da FAB Eduardo Alexandre Bacelar, então coordenador-geral de Transporte Aéreo, e o general Luiz Fernando Estorilho Baganha, então secretário de Segurança e Coordenação Presidencial do GSI, ambos do GSI.

Após o fim de semana no qual participou do culto no Rio, com direito a diversas fotos em redes sociais, Michelle Bolsonaro precisava voltar para casa e um avião saiu de Brasília para ir buscá-la. Era 1º de julho de 2019, uma segunda-feira.

Passeios familiares como uma visita à mãe, que mora em Resende, no interior do Rio de Janeiro, eram feitos por Jair Renan usando os aviões da FAB –Arquivo Pessoal

Ao mesmo tempo, Jair Renan queria voar até o Rio para visitar a mãe em Resende, cidade do sudoeste fluminense. Na faixa, o 04 pegou carona no voo que foi buscar Michelle.

Eduardo Bolsonaro e a cachorra Beretta: animal teve embarque determinado pelo então ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid

É aí que Beretta, a cadela de Eduardo, entra de última hora na, digamos, lista de passageiros. Coube ao agora notório Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro, hoje enrolado em várias frentes de investigação, expedir a ordem. Os militares que receberam a missão registraram no grupo do GSI que era preciso incluir “a fera Bereta” — é assim que eles se referem à cadela — no trajeto do Rio até Brasília.

No grupo do GSI, um militar informa que a cachorra do deputado Eduardo Bolsonaro, “a fera Beretta”, também iria embarcar em um dos jatinhos, rumo a Brasília –Arquivo Pessoal

Fica evidente, nas mensagens, que não aquela não seria a primeira viagem levando a bordo animais da família. O tenente-coronel que avisou da necessidade de levar a cadela lembrou que a missão recebida de Cid não seria trivial e já havia causado problemas. “No último embarque a casinha de transporte não passava na porta, gerando transtornos”, escreveu o oficial.

Jair Renan, passageiro prioritário

Em 10 de julho de 2019, no grupo de WhatsApp no qual os militares encarregados de administrar as viagens presidenciais chegou um lembrete importante: “Não se esqueçam do Renan”.

Na sequência vieram os detalhes do novo serviço a ser prestado a familiares do então presidente: “Serve qualquer voo do Rio para Brasília entre 13 e 15 de julho”.

Os pedidos do clã presidencial eram tratados como ordens pelo staff encarregado de organizar as viagens: “Não esqueçam do Renan” – Arquivo Pessoal

A resposta imediata não era animadora para quem tinha recebido a missão de atender, a qualquer custo, o pedido: não havia voos previstos para ocorrerem naquelas datas que pudessem servir ao 04.

Isso não significava, porém, que Jair Renan teria que embarcar, como um brasileiro qualquer, em um avião comercial. Primeiro, um dos militares cogita uma solução alternativa.

Igo Estrela/Metrópoles

“Ele tem que entrar na sorte de uma contramão”, diz, referindo-se à chance de surgir alguma demanda saindo de Brasília para buscar outras autoridades no Rio naqueles dias. Nesse meio tempo, ele até brinca diante do que era, até então, uma dificuldade: “Filho do PR hehehe. Não tá fácil para ninguém”.

Vinte minutos depois, no entanto, um superior avisa, com a autoridade de quem sabe que os subordinados são obrigados a obedecer: “Se até dia 12 não aparecer nada, vou ligar para a GC-2 acionar treinamento”.

GC-2 é o setor da FAB que gerencia o fluxo de voo dos jatos oficiais. “Acionar treinamento”, por sua vez, significa agendar um voo com a justicativa de treinar a tripulação — ou seja, se não aparecesse outro voo, o staff a serviço do gabinete presidencial iria recorrer ao velho “jeitinho” para atender o filho de Bolsonaro.

Arquivo Pessoal

A troca de mensagens mostra que nem sempre, como costumam alegar as autoridades, a família presidencial só era “encaixada” em voos já existentes, sem custos adicionais para os cofres públicos. Fica claro que as demandas do clã funcionavam como uma ordem. Era preciso atender e pronto.

O maquiador e o golpista

Também embarcaram nos aviões da FAB outras personalidades do mundo bolsonarista – alguns com propósito duvidoso e nenhuma relação com o governo.

O maquiador Pablo Agustin, por exemplo, acompanhou a primeira-dama em uma visita ao Hospital de Amor de Barretos, especializado no tratamento de pacientes com câncer, em 25 de outubro de 2019.

O maquiador Pablo Agustin, que viajou pelo Brasil em avião da FAB, acompanhou Michelle Bolsonaro ao enterro da rainha Elizabeth II, em Londres – Reprodução

Como acompanhante de Carlos Bolsonaro, aparece um assessor dele na Câmara Municipal do Rio. Rogério Cupti, que nunca ocupou cargo no governo federal, era um dos encarregados da criação de um canal de TV na internet para propagar as ideias do então presidente.

As duas viagens que ele fez com Carlos nas asas da FAB ocorrem no período eleitoral de 2022. Ambas começaram em Brasília e terminaram no Rio — a segunda, por sinal, foi às vésperas do segundo turno.

Carlos Bolsonaro viajou ao Rio em época eleitoral junto com seguranças e assessores: reembolso desse voo pelo PL segue sem esclarecimento – Metrópoles

O sargento Murilo José Geromini, cujo nome aparece nas investigações sobre os pagamentos de despesas da ex-primeira-dama, também já viajou na companhia de Carlos Bolsonaro. Nesse caso, saiu de Brasília para acompanhar uma motociata de Bolsonaro no Rio, em maio de 2021.

Outro militar do Exército, o capitão Andriely Cirino acompanhou três vezes o filho 02 do então-presidente. O nome do oficial, que foi lotado no gabinete presidencial, já apareceu relacionado às tramas golpistas do bolsonarismo. A última viagem com Carlos foi ano passado, também em plena campanha, para participar de um evento simbólico: o desfile cívico militar de 7 de setembro, na orla de Copacabana.

Viagens de campanha

Entre os voos feitos pelos parentes do presidente há alguns que aparecem descritos como viagens de cunho eleitoral — isso está, inclusive, apontado na própria finalidade declarada. Às vésperas do debate promovido pela TV Globo em 29 de setembro de 2022, por exemplo, Carlos Bolsonaro deixou Brasília e seguiu para o Rio a bordo de um dos aviões da FAB. Com ele havia uma comitiva composta por militares, assessores e seguranças. O objetivo da viagem foi assim definido na planilha: “atividade eleitoral no Rio de Janeiro em 29/09/2022”.

Carlos Bolsonaro no debate da Band –  Fábio Vieira/Metrópoles

A legislação autoriza presidentes no exercício no cargo que sejam candidatos a usar aviões da FAB em viagens para cumprir compromissos de campanha. Os custos desses deslocamentos, porém, precisam ser ressarcidos aos cofres públicos — no caso em questão, o PL, partido de Bolsonaro, deveria reembolsar a FAB.

Os pagamentos de despesas com voos oficiais feitos pelo partido ainda estão sob análise, mas é certo que esse voo que levou Carlos e outros integrantes do entourage de Bolsonaro, especificamente, não aparecem no rol dos que foram ressarcidos pelo PL. A lista inclui apenas o voo que levou o próprio Bolsonaro, no dia do debate. O Metrópoles perguntou à FAB, ao GSI e à Presidência por que esse voo não aparece entre os passíveis de reembolso, mas não houve resposta até o momento.

Vazio legal

As normas que regem o uso de aviões oficiais por autoridades são omissas quanto aos limites dos serviços prestados a parentes do presidente da República. Há menções genéricas ao atendimento de “familiares”, mas os textos passam ao largo de definir limites ou, menos, estabelecer claramente em quais situações os jatos podem ser utilizados.

Normalmente, os voos são justificados pela necessidade de garantir a segurança da família presidencial, que teoricamente estaria com sua integridade exposta se tivesse que embarcar em aviões comerciais, como cidadãos comuns.

 Rafaela Felicciano/Metrópoles

Como o GSI tem por atribuição assegurar a proteção do presidente e de seus familiares, basta um simples arranjo de raciocínio com base na lei — e no vazio das normas sobre os voos — para explicar facilmente por que a FAB teve de decolar um avião para transportar a primeira-dama ou um filho do presidente. “Se não está proibido, está permitido”, diz uma fonte, resumindo a lógica reinante há anos.

Além disso, não há qualquer transparência em relação às viagens feitas sob demanda de parentes de quem ocupa o principal gabinete do Palácio do Planalto. Esses voos ficam registrados em uma caixa-preta mantida longe do escrutínio público.

Já há algum tempo, a FAB publica na internet, ainda que parcialmente, informações sobre os voos feitos por solicitação de ministros do governo e de outras autoridades dos poderes Judiciário e Legislativo. Os deslocamentos a serviço da Presidência ficam de fora, assim como as informações sobre os custos das viagens para o bolso do contribuinte. Para um país que precisa economizar e ajustar suas contas, talvez esta seja uma boa oportunidade de colocar ordem na farra.

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