‘Fico tranquila, estou fazendo meu trabalho, o desmatamento está caindo’, diz Marina Silva

Em entrevista exclusiva, ministra do Meio Ambiente detalha planos para Amazônia e minimiza conflito com Minas e Energia

Marina Silva/Foto: Reprodução

Por Giovana Girardi, Anna Beatriz Anjos

Para alcançar a meta de zerar o desmatamento até 2030, o governo federal vai começar a se valer de “ações afirmativas”. É assim que a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, define um conjunto de ações lançado nesta terça-feira (5) para marcar o Dia da Amazônia.

Em entrevista exclusiva à Agência Pública, Marina explicou que o foco é dar um passo além das ações do governo federal de fiscalização e controle. Elas continuarão sendo realizadas, mas a proposta agora é incentivar 69 municípios considerados prioritários para o combate ao desmatamento a também se comprometerem com a medida. Eles estão no chamado arco do desmatamento — região de fronteira da Amazônia onde o desmatamento mais avança.

Ontem, em cerimônia no Palácio do Planalto com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e outros seis ministros, foi assinado o decreto que cria o programa “União com Municípios pela Redução do Desmatamento e Incêndios Florestais na Amazônia”. O objetivo da ação é apoiar de modo técnico e financeiro esses 69 municípios.

O programa prevê investimentos de até R$ 600 milhões com recursos do Fundo Amazônia nos municípios que se comprometerem com o programa. O valor que cada um vai receber será proporcional ao desempenho obtido na redução de desmatamento e incêndios.

“Os municípios poderão ter acesso a esses recursos para investir, por exemplo, em bioeconomia. O decreto prevê uma agenda afirmativa na questão de regularização ambiental e fundiária, dentro do regramento de quem tem esse direito. Seria uma pauta afirmativa para os prefeitos que fizerem o pacto contra o desmatamento poderem trabalhar, mobilizando recursos para essa agenda”, afirma Marina.

As medidas, explica, vêm no sentido de fazer com que a queda no desmatamento da Amazônia observada nos primeiros oito meses de governo (de 48% na comparação com o mesmo período do ano passado) seja sustentada no longo prazo. De modo que a a floresta não atinja o temido ponto de não retorno – conceito que estima que se o desmatamento do bioma atingir um patamar entre 20% e 25%, a floresta não será mais capaz de se recuperar, perdendo irreversivelmente suas principais características ecológicas.

Este foi o principal compromisso assumido durante a Cúpula da Amazônia. Contudo, Marina sabe que, para alcançá-lo, não basta apenas conter o desmatamento. É preciso conter também o aquecimento global e, para isso, atacar sua causa central: a queima de combustíveis fósseis.

Este é um debate que se tornou premente no Brasil diante dos planos da Petrobras de abrir uma nova fonte de exploração de petróleo na bacia sedimentar da Foz do Amazonas, no litoral do Amapá e Pará. O projeto é defendido por alguns setores do governo, em especial o Ministério de Minas e Energia.

Marina admite que “existe uma contradição” no governo em relação ao tema. “Precisamos ter a honestidade de dizer que existe uma contradição. Mas é uma contradição que não é só do Brasil, é do mundo”, comenta.

O assunto virou fonte de especulações constantes sobre a permanência de Marina no governo. Questionada sobre essa situação, ela buscou apaziguar os ânimos. “Eu fico tranquila, estou fazendo o meu trabalho. O desmatamento está caindo”, disse.

À Pública, Marina detalha também as estratégias que o governo está desenvolvendo para conter o desmatamento no Cerrado (que, ao contrário da Amazônia, cresceu neste período de oito meses), e os planos para criar uma política nacional de enfrentamento às consequências dos eventos extremos provocados pelas mudanças climáticas.

Confira a seguir a entrevista.

O Dia da Amazônia foi comemorado na última terça-feira (5) com dados promissores de queda consistente do desmatamento nos primeiros oito meses de governo. Quais são os próximos passos? Como fazer para que essa queda se sustente ao longo do tempo?

Em um país como o Brasil, a forma mais fácil — porém também difícil — de reduzir emissões de CO2 [gás carbônico] é com a queda do desmatamento, por ser o nosso maior vetor de emissões. Por outro lado, o desmatamento, para cair de forma estruturante, tem que ir além das ações de comando e controle. E, até aqui, o resultado que temos é fruto dessas ações.

Mas há uma agenda estruturante que já está sendo implementada. O novo PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal] se dá em cima dos eixos de combate às práticas legais, ordenamento territorial e fundiário e desenvolvimento sustentável. Agora, introduzimos um quarto eixo: os marcos regulatórios para criar os incentivos a essa transformação.

O Plano Safra [de incentivo à agricultura], por exemplo, já foi lançado com a pegada de usar os recursos para fazer a transição para a agricultura de baixo carbono. O que anunciamos ontem dialoga com isso. Por exemplo, a criação da Câmara Técnica de Destinação de terras públicas não destinadas, que envolve o MMA e o MDA [Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar]. A ideia é destinar essas terras para a criação de unidades de conservação e terras indígenas. E não mais para a conversão de floresta em outras atividades.

Uma das medidas anunciadas ontem foi a publicação de um decreto que cria o programa “União com municípios”, listando as cidades prioritárias para o combate ao desmatamento. Como vai funcionar isso? Se eles reduzirem o desmatamento, vão receber benefícios?

Temos 69 municípios que estão ranqueando o desmatamento, principalmente nos três estados que lideram, Mato Grosso, Pará e Amazonas. Esses municípios podem ser beneficiados com ações afirmativas no âmbito de um pacto contra o desmatamento.

A ideia é ter medidas afirmativas para ajudar que [o desmatamento] caia. Por exemplo, propriedades que conseguirem manter sua reserva legal, sua área de preservação permanente ou entrem no Programa de Regularização Ambiental podem participar do programa de regularização fundiária. De imediato, elas já serão identificadas como possíveis beneficiárias da redução de 1% dos juros no Plano Safra. Também poderão ter acesso a recursos para atividades ligadas à bioeconomia, a projetos de desenvolvimento sustentável do Fundo Amazônia.

Pensamos inicialmente em algo em torno de R$ 600 milhões para começar, mas identificando outras fontes, inclusive os R$ 10 bilhões que o Fundo Clima pretende captar. Os municípios poderão ter acesso a esses recursos para investir, por exemplo, em bioeconomia. O decreto prevê uma agenda afirmativa na questão de regularização ambiental e fundiária, dentro do regramento de quem tem esse direito; a análise de requerimento de desembargo junto ao Ibama e ao ICMBio, para os proprietários que querem se regularizar e voltar a acessar crédito; e também fomento à recuperação de vegetação nativa e outros incentivos previstos na legislação ambiental federal. Seria uma pauta afirmativa para os prefeitos que fizerem o pacto contra o desmatamento poderem trabalhar, mobilizando recursos para essa agenda.

Como os investimentos em infraestrutura, com o lançamento da nova etapa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), se relacionam com esses esforços de conter o desmatamento? Rodovias, por exemplo, são um conhecido vetor de desmatamento.

Os projetos mais polêmicos e impactantes foram colocados para estudos: [a pavimentação da] BR-319, a Ferrogrão, [o licenciamento para perfuração de poços] na Margem Equatorial e [a usina nuclear] Angra 3. O interessante dessa postura do governo do presidente Lula é que ela rompe com o ciclo negacionista e com o modelo de concessão de licenças políticas que [o ex-presidente Jair] Bolsonaro vinha adotando: os técnicos diziam uma coisa e o presidente do Ibama e o próprio ministro do Meio Ambiente faziam exatamente outra.

Analisar cientificamente as questões é o que mandam a boa política e a boa gestão em tempos de grandes transformações ambientais de forma acelerada, como é o caso da mudança do clima e da [crise da] biodiversidade. É necessário encaminhar para estudos e ao mesmo tempo continuar fazendo o debate de forma técnica e cientifica, internamente no governo e com a sociedade.

O ministro [da Fazenda] Fernando Haddad já está em fase de conclusão do plano de transformação ecológica. Ele decidiu fazer uma captação de recursos na ordem de R$10 bilhões [que serão obtidos via Fundo Clima]. No Fundo Amazônia, quando se soma o que temos, que são R$3 bilhões, às entradas acordadas com os Estados Unidos, Reino Unido e vários países, dá algo em torno de R$6 bilhões.

Está em discussão no Senado um projeto de lei [2159/21] que flexibiliza muito o licenciamento ambiental no país. Se aprovado, ele não pode pôr a perder o esforço para que essas obras mais polêmicas, como as que a senhora citou, sejam cuidadosamente avaliadas?

No Senado, tem havido abertura para o diálogo por parte dos relatores do projeto, a ex-ministra Tereza Cristina [PP/MS, relatora na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária] e o senador Confúcio Moura [MDB-RO, relator na Comissão de Meio Ambiente]. A nossa expectativa é de que possamos corrigir questões muito graves do texto aprovado na Câmara dos Deputados, que, sim, enfraquecem completamente a política de licenciamento, tanto para mitigar impactos [das obras], quanto para evitá-los em relação a empreendimentos sem viabilidade ambiental, econômica e social. Há uma discussão interna no governo para contribuir com o debate com os relatores.

O projeto aprovado pela Câmara dos Deputados é altamente prejudicial porque estabelece que deve ser ouvido o órgão federal responsável apenas em caso de áreas quilombolas já tituladas e de terras indígenas homologadas. No caso das unidades de conservação, também só quando há incidência direta [do empreendimento] em relação à área de entorno dos parques. Aí praticamente se inviabiliza a interface com esses órgãos nas dinâmicas do licenciamento.

Outro aspecto tem a ver com as licenças de operação corretiva [modalidade que permite a regularização dos empreendimentos implantados sem o devido licenciamento ambiental]. Isso também precisa ser reparado.

Na Cúpula da Amazônia, os países estabeleceram o objetivo de evitar que a Amazônia atinja o chamado ponto de não retorno, mas para conseguir isso, além de frear o desmatamento, é preciso não deixar o planeta aquecer mais. A eventual concessão de licença para exploração da bacia da Foz dos Amazonas, na chamada Margem Equatorial, não pode minar os esforços para a redução do desmatamento?

Precisamos ter a honestidade de dizer que existe uma contradição. E uma contradição que não é só do Brasil, é do mundo. É do modelo de desenvolvimento que nos trouxe até aqui. O presidente Lula disse no Piauí [no fim de agosto] que vamos trabalhar para ter uma matriz energética 100% limpa. Mas nem todos os países do mundo conseguem fazer isso que nós podemos fazer. E, infelizmente, ainda não dispomos dos meios para prescindir da fonte de geração de energia que nos tirou de uma população de um bilhão de pessoas durante a Revolução Industrial e nos trouxe a oito bilhões de pessoas.

Estamos falando do que move e sustenta oito bilhões de pessoas. Mas quanto mais nos atentarmos ao fator tempo, mais vamos ter condição de dar resposta [à crise climática]. Por isso, é muito preciosa a atitude do governo de encaminhar para estudos a Margem Equatorial e todos os projetos altamente impactantes. Aí se pode, nesse espaço de tempo em que os estudos estão acontecendo, vislumbrar alternativas.

Essa contradição é num âmbito maior. Alguém me perguntou o que acho do Equador, cuja população decidiu, por meio de plebiscito, que não vai mais explorar petróleo no Parque Nacional da Yasuní, na Amazônia. Que bom que eles estão conseguindo fazer isso agora, porque no Brasil, isso [exploração de petróleo] já não é permitido desde que foi criado o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. No Brasil, já não é permitido fazer isso dentro das unidades de conservação, nem das terras indígenas.

Toda vez que sai alguma novidade em relação ao processo de licenciamento da Foz do Amazonas, como ocorreu recentemente em relação ao parecer emitido pela Advocacia-Geral da União (AGU), começam os rumores de que existe um processo de fritura da senhora por outros atores do governo. O que vê de diferente em relação à sua primeira experiência no ministério?

Tem uma diferença muito grande. A gente recebeu o governo [em 2003] de um democrata, do Fernando Henrique. Demos continuidade a um processo democrático. E eu, então com 45 anos, era de um partido [o PT] que ajudei a fundar quando tinha 18 anos. Desta vez, recebemos um governo que veio de uma experiência terrível em todos os sentidos, contrário a tudo que é civilizado – inclusive a própria democracia. Com tudo desmantelado. E para ganhar [nas eleições] deste governo desmantelador da ordem, tivemos que aprender rapidamente que era preciso uma frente ampla.

Foi essa frente ampla que, por uma margem pequena, ganhou o governo. É essa frente ampla que, por uma margem pequena, consegue aprovar o que é essencial e estratégico no Congresso Nacional. E é essa frente ampla que eu espero que consiga aumentar sua margem para que, no futuro, a gente não tenha que passar o susto que passamos em 2022.

Aprender a conviver com o diferente e ter essa relação de alteridade política – de se colocar no lugar do outro – faz diferença para lidar com tudo isso. Pode até ser que a gente não tenha as mesmas concordâncias sobre os temas aos quais eu estou, digamos, visceralmente ligada, mas sei a importância dessa composição para o conjunto da obra do governo. Assim como esses colegas também sabem a importância da contribuição que determinados temas aportam para o conjunto do governo. Ainda que, no particular, isso crie fricções, contradições.

Mas uma coisa interessante é que a fila das contradições anda, e nem tudo é contradição. As pessoas falam: “teve o problema com a Margem Equatorial”. Parece que eu e o Alexandre [Silveira, ministro de Minas e Energia] nos resumimos apenas a esses assuntos. Mas tem um monte de assuntos nos quais estamos trabalhando juntos.

Mas como lidar com as especulações de que a senhora está sofrendo um processo de fritura no governo?

Eu olho para a agenda [que está sendo adotada pelo governo]. É muito corajoso do presidente Lula, com a pressão que sofre, dizer: essas obras aqui vão para estudos [em referência aos projetos do PAC]. Alguém pensa que ele vai dizer, como presidente da República, que o Ministério do Meio Ambiente está coberto de razão e fulano é que está errado? Ou que o Meio Ambiente está errado e fulano está coberto de razão? Ele não vai dizer isso. Vai, como um líder político que é, fazer a mediação em prol do interesse público. E é com esse espírito que estamos trabalhando.

Então, eu fico tranquila, estou fazendo o meu trabalho. O desmatamento está caindo e a gente está retomando a agenda [ambiental e climática] em um patamar inimaginável. Veja que quem está coordenando a transição ecológica é o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Pense em uma pessoa que compreende a agenda. Ele se apropriou rápido do tema. E gosto dessas coisas porque assim posso descansar. É sério. Em vez de ficar: “ah, vamos lá, pelo amor de Deus”. Não. As pessoas estão indo [sozinhas].

O BNDES está na agenda. O Ministério da Agricultura. Tenho uma excelente relação com o [Carlos] Fávaro. A gente se liga, conversa. Tem coisas que a gente não vai concordar. Mas, enfim, é da natureza do nosso trabalho. E essas contradições não mudam pela nossa vontade.

Mudando um pouco de bioma, embora o desmatamento na Amazônia esteja caindo, no Cerrado, até julho, a tendência era oposta. E os dados mostram que a maior parte do desmate é legal. Como enfrentar essa questão para que o bioma não seja sacrificado em detrimento da redução da destruição na Amazônia, por exemplo?

O PPCerrado [Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento no Cerrado, que está em elaboração] vai, sobretudo, articular os entes federados. É fundamental uma ação robusta não só do governo federal, mas também dos estados.

Identificamos que no governo anterior foi estimulada a concessão de licenças para o desmatamento. E há licenças que não são necessariamente usadas no momento em que são concedidas, ficando válidas por dois, três, até quase quatro anos. Viram licenças especulativas, que valorizam certas áreas a título de comercialização.

A Secretaria Extraordinária de Controle do Desmatamento está avaliando junto à Abema [Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente], aos governos estaduais e federal que não se permita esse expediente de concessão de licenças tão longas, que levam a processos de especulação e à contratação do desmatamento de milhões de hectares de Cerrado antecipadamente.

Tudo que está acontecendo em relação à mudança climática e suas consequências, os avanços tecnológicos e pesquisas indicam que dois, três anos é muita coisa. Nesse período, a realidade pode mudar. Não se pode ter uma licença concedida por um período tão longo exatamente porque o tempo conta para que se possa reverter determinados processos que se tornam irreversíveis quando entram em curso. Estamos trabalhando a ideia de um pacto pelo Cerrado.

Conseguimos, agora, uma estabilização no desmatamento [os dados mais recentes do Deter mostram um pequeno aumento, de 2,4%, em relação a agosto do ano passado]. Pelo que estamos observando, é possível que a articulação com os estados e a expectativa da não impunidade já estejam fazendo a diferença [no Cerrado] como fizeram na Amazônia em relação ao desmatamento e às queimadas. Há uma redução em torno de 50% das queimadas também no Cerrado [em agosto, segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe].

É possível detalhar o que será esse “pacto pelo Cerrado”?

Ainda não, porque vamos colocar o PPCerrado para consulta pública no dia 11 de setembro, que é o dia do Cerrado, e aí teremos as contribuições da sociedade. Enquanto isso, ocorre o processo de conversa com os estados.

Estive agora no Piauí, também conversei com o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues [PT], e ele está muito mobilizado para que possamos fazer a reversão dessa preocupante tendência de alta [a Bahia é o estado com os maiores índices de desmatamento no Cerrado, na fronteira do agronegócio na região do Matopiba].

De acordo com o Código Florestal, propriedades rurais no Cerrado têm direito a desmatar até 80% de sua área. Como evitar que tudo isso seja de fato desmatado?

Buscar alternativas para aumentar a produção por ganho de produtividade [nas áreas já convertidas] com certeza é um caminho. Menos áreas abertas, mais resultados em função de maior uso da tecnologia.

E há o limite do que diz a ciência. Estamos numa situação em que a queda na quantidade de chuva e no número de dias chuvosos no Cerrado chega a cerca de 50% [na estação seca, entre junho e setembro]. Há também um estudo do MapBiomas que diz que já perdemos algo em torno de 15% da superfície hídrica do país. É necessário buscar alternativas ao modelo atual. Não é só questão de mitigar ou adaptar, mas também de transformar.

O bom é que há a possibilidade de fazermos isso juntos, porque na região do Matopiba [área que envolve os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia], a maioria dos governadores é do campo progressista. Tanto é que nos diálogos que temos feito com os secretários estaduais de meio ambiente e com alguns dos governadores têm sido sempre numa visão de cooperação.

Quando o presidente Lula fala em desmatamento zero no Brasil, temos a consciência de que cada bioma pode fazer a exploração [econômica] de acordo com o que está na lei, então é disputar os usos dessas áreas. Otimizar cada vez mais as áreas abertas que podem ser usadas e evitar cada vez mais a conversão de floresta ou mesmo de outras conformações vegetais.

O Brasil ainda não atualizou a sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC – a meta climática de cada país sob o Acordo de Paris). Isso depende do Comitê Interministerial de Mudança do Clima (CIM), que ainda não se reuniu. Lula vai levar para a Semana Climática de Nova York, neste mês, a atual NDC, que sofreu uma “pedalada” no governo Bolsonaro?

Não é a NDC de pedalada de Bolsonaro que ele vai levar. Mas o compromisso de fazer essa revisão, que já está publicamente assumido. Fazer a revisão da nossa NDC é um processo técnico e científico complexo que envolve analisar não só o desmatamento, mas todos os setores que produzem emissão de CO2.

Existem coisas que a gente não muda da noite para o dia. Eu gostaria de já ter uma mudança. Mas nós estamos trabalhando por dois: por tudo que não foi feito no passado, durante os últimos quatro anos, e por tudo que precisa ser feito no presente, agravado por esse passado. E isso está acontecendo em todas as frentes do governo: é duplo trabalho na agenda social, na agenda ambiental, na agenda econômica, em tudo.

Ainda sobre a agenda climática, a senhora tem dito que tem a intenção de criar uma “política nacional de enfrentamento às consequências dos eventos extremos” – uma espécie de PPCDAm dos eventos extremos. Como estão os trabalhos? A ideia é lançar essa política no âmbito do novo Plano Clima? 

Estamos trabalhando ainda em um núcleo estratégico, que envolve inicialmente os ministérios do Meio Ambiente, de Ciência e Tecnologia e da Integração e Desenvolvimento Regional, para apresentar uma ideia que tenha alguma robustez.

E uma das bases dessa política é decretar emergência climática nos municípios mais vulneráveis?

Sim, decretar emergência climática nos municípios avaliados pela série histórica do Cemaden [Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais] que são suscetíveis a eventos extremos. Para esse conjunto de municípios vamos ter um olhar que vai desde criar sistemas de alerta rápidos e eficientes e planos de emergência, para quando o evento extremo já está instalado, até ter ações estruturantes de prevenção a esses eventos diagnosticados.

Tenho um diagnóstico do que pode acontecer em cerca de 800 municípios, então não posso pagar para ver. Temos áreas de risco onde poderão ser feitas intervenções. Mas existem algumas que são de risco extremo, aí é caso de remoção da população mesmo. Tudo isso requer continuidade. Processos licitatórios mais sérios. Orçamentos que podem ser alocados para essas obras de adaptação. Criar mecanismos de compliance envolvendo o Tribunal de Contas e o Ministério Público. Porque se ali haverá obras constantemente, isso também é um chamariz para corrupção.

Já tive uma conversa com o Tribunal de Contas. Queremos que tanto o Tribunal de Contas da União quanto o Ministério Público nos ajudem a conceber como é que seria essa estrutura. Em algumas situações, talvez seja também preciso revisitar os planos diretores dos municípios.

Pode dar um exemplo?

A cidade de São Sebastião, por exemplo, tem um gabarito de construção que não permite obras verticalizadas até um determinado nível. Só que os pobres ficaram todos na encosta. Como a prefeitura vai tirar essas pessoas [dos morros] se não puder colocá-las dentro de um determinado padrão, em determinadas áreas, com algum tipo de verticalização? Vai fazer o quê? Manter tudo como está e exportar as pessoas? Pessoas que têm suas vidas ali, sua história ali, seu município, sua identidade.

Em audiência no Senado, a senhora disse que a Autoridade Climática poderia ser o órgão gestor do mercado de carbono regulado, cuja criação está sendo debatida no Congresso a partir de uma proposta do governo. Isso já está definido? Quais os entraves para a criação da Autoridade Climática?

Não falo em principais entraves, mas em chances. Pode-se ter uma lei excelente para o mercado regulado de carbono, mas será necessário um operador para a sua implementação. Temos esse sentido de urgência.

Há certa preocupação do Congresso em criar novas estruturas [no governo]. O presidente Lula também tem essa preocupação. Mas é importante compreender que essa estrutura não é para gerar mais custos, e sim para criar os meios de implementar uma política altamente benéfica em termos econômicos, ambientais e sociais para o nosso país, como é o caso do mercado regulado de carbono.

O que temos ali [como função do órgão gestor do mercado de carbono] são processos de regulação e averiguação da integridade dos créditos. São operações complexas para fazer com que o Brasil seja o destino de um mercado íntegro de carbono, que sirva à finalidade de ajudar países a cumprirem suas metas, e não uma trapaça climática. Estamos no caminho, debatendo dentro do governo e, obviamente, as duas coisas terão que caminhar juntas, tanto o marco regulatório quanto o órgão operador.

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