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Terapia gênica abrirá portas para cura de doenças raras no futuro

Por Correio Braziliense

Cura, desafios e avanço para o futuro. A terapia gênica é a chance de levar uma vida melhor para aqueles que sofrem com alguma doença, principalmente as mais raras ou de caráter hereditário, com menores probabilidades de recuperação ou tratamento. O procedimento, de maneira resumida, nada mais é do que a inserção de genes sadios nas células do paciente, substituindo por outros que estejam inativos, mortos ou deficientes.

Para entender os passos do procedimento até aqui, é preciso fazer uma viagem no tempo. Lá atrás, em 1972, os pesquisadores Theodore Friedmann e Richard Roblin trouxeram um novo conceito para a medicina, que prometia mudar todos os parâmetros e ideias já concebidas na época — e também para o futuro. A concepção, de forma simples, pretendia identificar, por meio de amostras genéticas, “defeitos” presentes no DNA.

Por meio dessa coleta, o gene detectado é isolado para que uma cópia dele seja produzida, sem a falha apontada anteriormente. Logo após esse processo, o chamado gene terapêutico é injetado na célula com o uso de um vetor viral, para que ele aja dentro do organismo do paciente. Com isso, a substituição é concluída, trocando o DNA defeituoso pelo novo. E as células, a partir disso, começam a se replicar e dar respostas positivas ao organismo.

Desafios e dilemas

Desde o início, muito antes de começar a dar certo, porém, a terapia gênica enfrenta inúmeros percalços. Durante evento realizado pela Pfizer na Universidade de São Paulo (USP), em novembro do ano passado, o pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Carlos Frederico Menck explicou que o assunto sofre dilemas. Entre eles, a possibilidade de entregar esse material genético e efetuar o benefício terapêutico seria o maior.

Atualmente, ele destaca que essa transferência é feita por meio de vetores virais e não virais. “Os maiores exemplos que temos disso são as vacinas, que não são terapia gênica e não modificam o genoma. Mas, a vacina contra covid-19 da AstraZeneca, por exemplo, é derivada do adenovírus, enquanto a da Pfizer é um RNA envolto em uma gotícula de lipídio, chamada de lipossomo”, detalha o pesquisador.

Segundo Carlos Menck, o método usado nos imunizantes contra a covid-19 pode se tornar o começo de uma revolução na área dos genomas, já que a edição gênica lida com diversos problemas na hora de substituir o DNA defeituoso pelo saudável. Essa possibilidade na entrega de genes é fantástica, como afirma o pesquisador, abrindo portas em um futuro muito próximo. Outro ponto citado pelo professor é a falta de investimentos no setor, algo que não é de se surpreender, principalmente nas condições sobre a crença na ciência que existem no país.

Os preços dos tratamentos são exorbitantes, na avaliação de Menck. Os valores chegam a mais de US$ 1 milhão. Certamente, essa questão é uma grande limitação que perpassa sobre o assunto, bem como a ausência de apoio nos estudos científicos realizados. Ainda que a terapia gênica esteja se desenvolvendo há 50 anos, é preciso ter cuidado com todo o processo, a fim de evitar possíveis falhas no caminho.

Um universo de possibilidades

Além das chances de se curar e combater alguma doença rara e hereditária, os universos que podem ser explorados pelos genes são imensos. Dentro de algumas dessas portas está o mapeamento genético. No Brasil, Ricardo Di Lazzaro Filho é um dos fundadores do serviço que busca trazer informações completas sobre o DNA de um indivíduo.

“É diferente de um exame genético, por exemplo, que é voltado para esta ou aquela doença e apenas avalia os genes nos quais a patologia pode estar. O mapeamento traz um compilado de informações disponíveis no material genético”, diz.

Sobre o trabalho exercido no país, ele revela que um dos aspectos mais buscados pelas pessoas é o segmento que aborda a ancestralidade, uma vez que grande parte da população teve fragmentos de suas histórias familiares perdidas devido a questões históricas.

Depois da ancestralidade, os marcadores de saúde, como a predisposição para desenvolver esta ou aquela doença e alterações genéticas estão entre os principais interesses de quem faz o teste. “Mutações genéticas que podem ser passadas aos descendentes e até mesmo alterações que influenciam como um medicamento pode agir no organismo estão entre os dados que podemos obter”, comenta.

Por fim, Ricardo destaca os aspectos ligados ao bem-estar. A nutrigenética, que avalia a melhor nutrição para cada indivíduo, como os alimentos mais benéficos e os que podem causar alergias ou intolerâncias, aptidões físicas, como a predisposição para determinados tipos de lesão e a que tipo de atividades físicas o organismo pode se adaptar melhor, estão entre os benefícios do mapeamento.

“Isso pode ajudar a pessoa a evitar determinados gatilhos para o organismo. Se tem riscos de desenvolver certas doenças, como a celíaca, pode escolher não ingerir alimentos com muito glúten”, exemplifica.

Mas e o medo?

Uma das possíveis desvantagens destes testes é o medo e a ansiedade que as pessoas podem sentir ao identificar este ou aquele marcador genético relacionado a uma doença mais grave. Ricardo recomenda que as pessoas não se deixem levar pelo medo, os testes exibem as chances mais altas ou mais baixas e os laboratórios costumam oferecer consultorias médicas junto aos resultados, evitando assim a desinformação e a ansiedade exagerada com relação aos resultados.

Um manual de instruções

O Centro de Excelência Física de Brasília (Cefis BsB) é um dos laboratórios que oferecem o mapeamento genético no Distrito Federal e usa os resultados dos testes para direcionar melhor o atendimento aos seus pacientes. “Conseguimos oferecer um cuidado mais preciso e individualizado a cada pessoa, indo desde o cuidado em prevenção de doenças até a nutrigenética e aos hábitos que fazem bem àquele organismo”, comenta Fábio Veras, diretor técnico do Cefis.

Para Fábio, um mapeamento genético mais completo, que pode trazer mais de 3 mil informações, é uma espécie de “manual de instruções de cada pessoa”. Por meio dos dados extraídos em cada painel, que vão depender do objetivo do paciente, é possível criar todo um plano de vida baseado na medicina preventiva e nos bons hábitos.

“Vejo isso como uma das grandes vantagens do mapeamento genético, mudarmos a nossa medicina, que é muito focada no tratamento das doenças e trabalhar com a prevenção. Sabendo o que pode afetá-las com mais agressividade, as pessoas podem se cuidar melhor”, acredita.

Fábio ressalta aos pacientes que o exame genético não é um diagnóstico e não pode ser tratado como tal. Se ao realizar o mapeamento, alguma questão chame mais a atenção, é necessário fazer exames médicos e laboratoriais — apenas eles podem fornecer um diagnóstico.

Um exemplo dado por Fábio é o seu. Ao fazer o mapeamento, descobriu alta predisposição para o câncer de cólon, mesmo sem nenhum caso conhecido na família. “A partir de então, comecei a fazer os exames preventivos, que em uma situação comum só seriam indicados para mim com uma idade mais avançada”, comenta.

Chamado de mapeamento genético de alta precisão, os teste feitos na Cefis podem trazer informações referentes a genes e a marcadores de doenças neurológicas, oncológicas, cardiovasculares, autoimunes, alergias, questões psicocomportamentais, como predisposição para ansiedade, depressão, comportamentos agressivos, obsessivos ou compulsivos, entre outros.

O funcionamento do metabolismo, como cada medicamento e alimento pode interferir com o seu organismo e que tipo de atividade faz bem ao seu corpo também estão entre as informações que podem ser obtidas. “Com o mapeamento, conseguimos verificar até mesmo a predisposição para rugas e marcas de expressão. É realmente um guia de como seu corpo pode funcionar e no que você precisa prestar mais atenção.”

Descobertas familiares

Uma história que ilustra a curiosidade e a vontade de entender melhor o próprio corpo é a do bombeiro militar Diego Kenji Yamasaki, 35 anos, que resolveu fazer um teste genético para coletar dados sobre sua saúde e seus genes. Ele queria entender melhor suas aptidões físicas e o que pode afetar mais ou menos o seu organismo.

Filho de pais separados, Diego também tinha vontade de saber mais detalhes sobre a história da família, tanto da paterna quanto da materna. Mais reservado, o pai não era muito de falar sobre os antepassados e a mãe nunca teve certeza sobre quem era o seu pai biológico. “Essas coisas acabaram me instigando a fazer o teste e eu encontrei tanta coisa interessante que comecei a montar uma árvore genealógica”, conta.

Neste momento, as informações genéticas sobre possíveis doenças e suscetibilidades a este ou aquele problema se tornaram menos interessantes e as pesquisas sobre ancestralidade ganharam destaque aos olhos do bombeiro.

No banco de dados do laboratório Genera, onde Diego fez o teste, ele encontrou familiares distantes que já tinham uma extensa pesquisa sobre a família Medeiros, origem de sua mãe. “Encontrei uma pessoa que tinha o mesmo bisavô que a minha mãe e, a partir de toda essa pesquisa, encontramos livros de genealogia e seguimos pesquisando e coletando mais e mais informações, inclusive por meio de livros históricos”, comenta.

Para Diego, o processo foi além da curiosidade e o ajudou a encontrar um sentimento de identificação, que o auxiliou a lidar com a depressão. “Foi uma forma de me encontrar, teve um efeito terapêutico, que me ajudou a enxergar minha existência de outra forma.”

O interesse só cresceu e, hoje, Diego se prepara para escrever um livro que remonta as origens dos dois lados de sua família desde os anos da colonização do Brasil. Depois de passar dias revirando livros de batismo com mais de 300 páginas, Diego quer que a filha tenha acesso a esse histórico sem precisar de tanto trabalho. “A ideia é que, desde a colonização para a frente, tudo esteja compilado. Quero escrever a história do Brasil junto com a árvore genealógica dela, mostrando nossos ancestrais que lutaram na Balaiada, por exemplo. É uma forma mais pedagógica de mostrar a história do Brasil e do Japão para ela”, afirma.

Além de Diego, a tia, a mãe, o irmão e a esposa do bombeiro fizeram o teste genético. A mulher dele tem o mesmo sobrenome da mãe de Diego e os dois acabaram descobrindo um parentesco distante. Ela também descobriu que sua família originava de judeus que fugiram de Portugal e, como compensação, tem direito à cidadania portuguesa.

Do filho para a mãe

São muitas as aplicações e a maneira como o teste de ancestralidade mudou a vida de Diego e de seus familiares e uma das mais curiosas é a história de sua mãe, Rose Medeiros, 62 anos. Foi por acaso e participando do projeto do filho que a psicóloga e policial civil aposentada descobriu, enfim, quem era o seu pai biológico. Embora não tivesse uma resposta direta sobre sua paternidade, o interesse não chegava a ponto de fazer um teste ou algo semelhante.

Ao fazer o mapeamento genético para ajudar Diego em seu projeto, Rose percebeu que ela e a irmã tinham um material genético quase totalmente semelhante. E, assim, souberam que dividiram não somente a mesma mãe, mas também o mesmo pai biológico.

Quando a mãe de Rose engravidou da psicóloga, estava separada do marido, pai da irmã de Rose. “Ela acabou voltando com ele e tendo outros filhos, mas nunca revelou quem era meu pai biológico.” Rose foi criada pela sogra da mãe e pelo segundo marido dela, com quem não tinha filhos, e sem muito contato com o restante da família. Mesmo sem dividir material genético, a semelhança com o pai adotivo sempre surpreendeu a todos e foi ali que ela encontrou acolhimento.

“Fui muito feliz com minha família, o pai e a mãe que me criaram. Por isso eu não ia atrás dessa questão biológica, mas hoje penso que poderia ter vivido outros momentos com minha irmã e ter uma relação ainda melhor com minha mãe adotiva, que acabou sendo minha avó”, comenta. Ao desvendar o antigo mistério da família e satisfazer uma curiosidade que tinha desde nova, Rose ficou surpresa. “Esclarecer isso foi interessante, eu acho muito legal que cada vez mais pessoas tenham acesso a essas informações.”

Além de descobrir mais sobre seus laços próximos, Rose e o filho resgataram parte da história familiar mais antiga. A paternidade do pai biológico de Rose também era desconhecida, e os dados genéticos mostram que ele era diferente do que todos imaginavam — a família, majoritariamente negra, tem mais ascendentes brancos do que pensava.

Rose se surpreende em como a história da família acaba se misturando com a do Brasil. “Minha avó e mãe adotiva foi abusada na época da Coluna Prestes, quando engravidou, e resgatada pela tia da Cora Coralina, em Goiás Velho. Há quase 100 anos, a casa da Cora Coralina era um lugar de acolhimento para essas mulheres”, lembra.

Rose Medeiros ao lado do pai adotivo

Por essas e outras que o assunto genoma permite diversas descobertas e benefícios que levariam a resultados inimagináveis. Carlos Menck afirma que a terapia gênica, justamente pelos pontos citados acima, é considerada a quinta revolução na medicina. “Temos um acordo entre os pesquisadores que antes dela vem as vacinas, anestesias, desinfecção e antibióticos”, pontua.

Embora essa inovação não esteja acontecendo na rapidez desejada, Menck espera que nos próximos anos novos tratamentos surjam e que pessoas sejam curadas por meio desses procedimentos. Até lá, corrigir falhas, estudar mais sobre os efeitos colaterais que venham a aparecer, como dores de cabeça, febre baixa ou sintomas de gripe, que hoje são os sinais mais presentes.

No Brasil, por exemplo, o primeiro produto farmacêutico foi aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), apenas em agosto de 2020. A autorização para a terapia gênica refere-se ao uso da tal técnica no tratamento de doenças hereditárias da retina (DHR) que pode provocar a perda de visão. Em seguida, outro procedimento visando atender pacientes que tenham Atrofia Muscular Espinhal (AME) também foi autorizado.

E no ano passado, o primeiro produto com terapia gênica para combate ao câncer hematológico foi licenciado para pessoas de até 25 anos. Além disso, o tratamento visa atender pacientes que tenham Leucemia Linfoblástica Aguda (LLA) e para pacientes adultos com Linfomas. E os avanços estão apenas começando. Há um futuro promissor e animador envolto ao tema, como descreve Carlos Menck. “A terapia gênica vai abrir um enorme leque de possibilidades”, finaliza

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