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Como o Acre aniquilou uma das mais ferozes rebeliões em presídio de segurança máxima

Por  Tião Maia, ContilNet

Quem vive na região Sul da Amazônia, onde se localiza o Acre e sua Capital Rio Branco, já sabe que é entre os meses de junho e julho que começa o chamado verão amazônico.

Dias marcados pelas primeiras fumaças das queimadas criminosas das florestas, início da seca dos rios e seus afluentes e em que há um sol para cabeça de cada ser humano que vive na região, conforme a reclamação generalizada e certamente um pouco exagerada de cada acreano. Mas é também o período em que as manhãs são únicas, de uma beleza singular com o dourado dos raios de sol contrastando com o verde das matas e criando imagens que só um pintor divino e caprichoso seria capaz de reproduzir – belezas que um total de mais de seis mil pessoas de uma população estimada em pouco mais de 800 mil, não têm o direito de ver. São os que vêem, como no dito popular, o “sol nascer quadrado” e que só o veriam diferente se conseguissem romper os muros do encarceramento do sistema prisional, como seria tentado naquele dia.

Naquele 26 de julho de 2023, uma quarta-feira, apesar de o dia ter começado com a típica beleza amazônica e digna de uma pintura, aquela manhã começava carregada e com ameaças de que poderia se tornar uma espécie de inferno na terra, muito parecido com o que havia ocorrido, em anos anteriores, com rebeliões de presidiários no Maranhão, no Amazonas e em Roraima, estados amazônicos em que presídios estaduais foram tomados pelos apenados e transformados em açougues humanos, com carnificinas que em três oportunidades, dizimaram mais de uma centena de pessoas.

Forças de Segurança se mobilizaram para conter a rebelião no Acre. Foto: Juan Diaz/ContilNet

No Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, o massacre de janeiro de 2017, considerado até hoje o maior do Amazonas, 56 pessoas foram mortas numa rebelião que durou 17 horas. Os mortos eram integrantes de uma facção criminosa que cumpriam pena por estupro.

Em Roraima, em janeiro de 2021, mesmo no auge da pandemia do coronavírus, o massacre foi de 33 presos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo. As vítimas foram esquartejadas e decapitadas. 

As mortes no Amazonas e em Roraima fizeram lembrar o ano de 2013, no  Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, Maranhão. Ali, naquele ano, 45 seres humanos conheceram o lado mais sombrio do que dissera, muito antes, Nelson Mandela, ao deixar a prisão,  após 28 anos de encarceramento, na África do Sul. Antes de se eleger presidente de seu país, ele escreveu: “Ninguém será capaz de conhecer verdadeiramente uma nação até que tenha estado dentro de suas prisões”.

O lado mais sombrio da nação brasileira e da declaração do vencedor do Prêmio Nobel da Paz de 1993 foram conhecidos por presos que pagaram com suas próprias vidas o preço da narrativa que sustenta o que uma década depois o Supremo Tribunal Federal (STF) chamaria de “estado de coisa inconstitucional do sistema carcerário”, ao reconhecer a violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) número 347.

Após aquele julgamento, o STF deu prazo de seis meses para que o governo federal elabore um plano de intervenção para resolver a situação, com diretrizes para reduzir a superlotação dos presídios, o número de presos provisórios e a permanência em regime mais severo ou por tempo superior ao da pena – algo que os presidiários do Acre, como os demais em todo o país, ainda esperam.

Segurança máxima para população carcerária que só cresce no Acre

No Acre, Estado com uma população estimada em 830.026 pessoas, segundo o Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de presos naquele mesmo ano foi de 6.016 – os números de 2023 ainda estão sendo tabulados. Em comparação com 2021, que tinha 6.839, a redução de presos foi de 823 detentos, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

No sistema prisional, incluindo os presos sob custódia, o número de presos em 2022 foi de 6.016. Em 2022, o número proporcional foi de 724,8 para cada grupo de 100 mil pessoas, o que coloca o Acre na quinta posição em termos de proporcionalidade. No que diz respeito à região Norte, o Estado fica apenas atrás de Rondônia, com 932,1 para cada grupo de 100 mil. O primeiro lugar desta lista proporcional ficou com o Distrito Federal, que permanece na posição em 2022 com 971,9 para cada grupo de 100 mil pessoas.

Dois blocos do Presídio Antônio Amaro Alves já receberam reforma. Foto: Ascom/Iapen

A rebelião que ameaçava a segurança e a beleza daquela manhã acreana e amazônica de 26 de julho foi iniciada por volta das 9h local – duas a menos em relação ao horário de Brasília, no Presídio Antônio Amaro Alves, parte do sistema prisional do Acre, em Rio Branco.

O Antônio Amaro Alves, um anexo do sistema penitenciário do Acre, cujo primeiro pavilhão é o Francisco D’Oliveira Conde (FOC), construído nos anos 80, foi concebido como de segurança máxima, no início dos anos de 2000, no governo petista de Jorge Viana, com capacidade para 183 presos, especialmente para manter ali o ex-deputado federal Hildebrando Pascoal, que foi transferido da Cadeia Pública Federal do Acre, conhecida como “Papudinha”, onde estava sob a custódia da Polícia Federal, para o sistema estadual.

Na época, Pascoal tinha pelo menos duas condenações na Justiça por envolvimento com o narcotráfico e com mortes por secessão de pessoas e estava preso desde 1999 cumprindo penas superiores a 100 anos de prisão. Hoje, ele cumpre prisão domiciliar. Além de Pascoal, o presídio Antônio Amaro Alves recebeu outros 19 presos que seriam todos integrantes do bando e esquadrão da morte supostamente comandado pelo ex-deputado e coronel reformado da Polícia Militar do Acre.

Presídio Antonio Amaro Alves/Foto: Secom

Em julho deste ano, no presídio não havia mais nenhum preso ligado a Hildebrando Pascoal. O esquadrão da morte havia mudado de comando e de soldados, que se resumiam no presídio a 99 homens, todos ligados às principais facções com atuação no Acre, o CV (Comando Vermelho) e PCC (Primeiro Comando da Capital), que no Acre assina-se como B13 (Bonde dos 13). Eram homens que viviam separados dos demais presos por serem apontados como os mais perigosos em atuação no Acre. Era o caso de Ricardo Vitorino, o “Ricardinho”, então com 25 anos. A ele era atribuído mais de uma dezenas de assassinatos, num período inferior a seis meses, crimes cometidos a mando dos chefões do chamado B13.

O motim no Amaro Alves foi iniciado por 26 presos em 26 de julho quando policiais penais faziam inspeção de segurança em um dos pavilhões, logo pela manhã. Durante o motim, um policial penal, Janilson da Silva Ferreira, foi atingido com tiro de raspão no olho. O agente foi socorrido e sobreviveu, mas perdeu a visão total do olho esquerdo, atingido por estilhaços de bala. 

O policial atingindo foi encaminhado para o Pronto-Socorro de Rio Branco. Foto: Juan Diaz/ContilNet

Caminhões frigoríficos prontos para o carregamento de dezenas de cadáveres

Durante 24 horas, até amanhã de sexta-feira (27 de julho), os presos permaneciam amotinados, e bem armados. Na manhã em que se rebelaram, eles tiveram acesso ao paiol de armas do presídio e se apoderaram de metralhadoras, fuzis e revólveres, além de outras armas de grosso calibre. Ameaçavam matar, inclusive policiais e deixavam claro que pretendiam fugir.

Face ao poderio do armamento e da periculosidade dos presos envolvidos na rebelião, a Polícia Científica da Polícia Civil do Acre dispensou o uso do chamado “rabecão”, carro de pequeno porte utilizado no transporte de cadáveres para o IML (Instituto Médico Legal), para utilizar caminhões frigoríficos que chegaram a ser estacionados nas imediações do presídio à espera de dezenas de cadáveres, conforme os cenários, nas mesmas circunstâncias, dos presídios do Maranhão, Amazonas e de Roraima. Mas, apesar do registro de cinco mortes de presos, todos decapitados, o pior cenário, como o verificado nos três estados em anos anteriores, não foi registrado.

Policiais fazem barreira em áreas próximas ao presídio. Foto: Juan Diaz/ContilNet

De alguma forma, o Estado, através de suas instituições, havia atravessado o Rubicão do que seria uma tragédia de magnitude catastrófica para apenas cinco mortes, apontadas como efeito colateral numa guerra em que em poucas ocasiões o saldo, para o Estado e suas instituições, não é algo extremamente violento, com dezenas de cadáveres conforme já registrado no Amazonas, em Roraima e Maranhão. Não por acaso, ao fim da rebelião após 24 horas, surgiram informações de que o primeiro a ser morto e decapitado foi exatamente o matador “Ricardinho”. Os outros quatro mortos, também decapitados, eram dirigentes, fundadores e conselheiros do B13. Naquele dia, o CV havia vencido.

A tragédia no Antônio Amaro só não foi maior porque o Governo do Acre agiu para estancar  a sangria do sistema prisional. O governador do Estado, Gladson Cameli, estava em Brasília, para encontros que incluíam o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, que se colocou à disposição do Acre, inclusive com a cessão de homens da Força Nacional caso a rebelião perdurasse. 

Flávio Dino no Acre. Foto: Juan Diaz/ContilNet

De Brasília, Gladson Cameli comandou a reação do governo estadual contra a rebelião, determinando a criação imediata, no Estado, de um gabinete de crise destinado a sufocar a rebelião o mais rápido possível. Sob a presidência do secretário de Estado de Segurança Pública, coronel PM reformado José Américo Gaia, o Gabinete de Crise foi formado por integrantes de todos os setores que compõem o sistema de segurança pública estadual e forças federais, como a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal, além do Poder Judiciário e  do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC).

Secretário de Justiça e Segurança Pública do Acre, José Américo Gaia. Foto: Juan Diaz/ContilNet

“Toda crise é inesperada e exige uma ação rápida, mas também aceitável. Foi o caso concreto. Ao eclodir o evento criminoso, o governo, através da Sejusp, decretou o Comitê Integrado de Gerenciamento de Crise, que com ações coordenadas das forças de segurança, conseguirmos conter, isolar e solucionar a crise de forma aceitável, reflexo do pronto emprego e poder operacional do Estado”, disse o coronel Américo Gaia.

Quanto a possíveis novas rebeliões, ele afirmou: “Fazemos monitoramento constante das agências de inteligências e reforço nas ações preventivas dentro dos estabelecimentos prisionais”.

Acre: um lugar em que nem tudo está perdido

Mas, para um personagem dos mais conhecidos no sistema prisional no Acre, o promotor de Justiça Tales Tranin, da Vara das Execuções Penais, a criação do Gabinete de Gerenciamento de Crise logo após a eclosão da rebelião foi importante, mas lembrou que o trabalho do MPAC, ao longo dos últimos cinco anos, a partir de sua atuação, também ajudou.

“Experimentamos, por conta da nossa atuação, momentos em que os presos exigiram nossa presença no presídio em meio às negociações para que eles depusessem as armas e se rendessem. Exigiam nossa presença porque temiam que, desarmados, eles pudessem ser executados. Isso significa que, de alguma forma, eles confiam na ação do MPAC na garantia de seus direitos básicos. Isso também foi muito importante na superação desta crise”, disse o promotor.

Promotor de Justiça Tales Tranin chegou a participar da negociação com os presidiários. Foto: Cedida

Na manhã do dia 26 de setembro, exatos dois meses após a rebelião, um avião da Polícia Federal decolou de Rio Branco. A bordo, pelo menos 14 presos acusados de terem liderado a rebelião e as execuções de cinco presos rivais no presídio, todos lideranças do chamado Comando Vermelho. 

Os presidiários foram transferidos para outro Estado. Foto: Reprodução

Foram levados para presídios federais fora do Acre exatamente para cortar qualquer elo e comunicação com os comandados do CV que estão fora dos presídios e nas ruas do Acre. Aquele avião, de alguma forma, mostrou que, no caso, o Governo do Acre e demais instituições – ao menos por enquanto – venceram o crime e que, apesar da seca dos rios, das queimadas, do calor e da fumaça, a vida nesta região da Amazônia ainda guarda esperança de que nem tudo está perdido.

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