Mais de 70% dos fazendeiros sentem na terra e no bolso os efeitos das mudanças climáticas

Pesquisa mostra que 71% dos produtores rurais já sentiram impactos inclusive financeiros dos extremos do clima

Seca aguda na Amazônia, onda de calor no Sudeste e Centro-Oeste, enchentes no Sul. Eventos extremos no Brasil se somam a outros choques climáticos pelo mundo este ano e aumentam as preocupações de produtores rurais, que já sentem o impacto do aquecimento global nas lavouras e no bolso. É o que mostra uma pesquisa realizada sob encomenda da Bayer (gigante química alemã que produz insumos para a agropecuária) em oito países que são grandes no setor, entre eles o Brasil.

Dos 800 produtores ouvidos, 71% relataram que já sofrem impactos (inclusive financeiros ) da mudança climática em suas fazendas, e 76% temem as consequências desse processo no futuro. No Brasil, esse índice é ainda maior: 84%.

Alexandre Velho, presidente da Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul — Foto: Carlos Queiroz/Divulgação/Federarroz

A empolgação com a supersafra brasileira de 2022 a 2023 já é passado. No campo, o otimismo deu lugar à apreensão. Produtores de soja do Cerrado, que já começaram a semear, ainda aguardam as chuvas regulares da primavera, enquanto produtores de arroz do Rio Grande do Sul esperam a estiagem em meio às enchentes. O plantio, que ocorre entre setembro e outubro, atrasou.

— Foram 500 milímetros de chuva em setembro, enquanto a média é em torno de 140 milímetros. Está um horror — diz Alexandre Velho, da fazenda Parceria Cavalhada, em Mostardas, no litoral gaúcho.

O atraso no plantio tende a reduzir a produtividade, ou seja, a quantidade colhida em relação à área plantada, explica o produtor. E oferta menor de um item de primeira necessidade tende a jogar o preço para cima.

Ainda mais considerando que o Rio Grande do Sul, que começou o ano com seca, responde por 70% dos 10 milhões de toneladas de arroz consumidos no país. É um exemplo de como o clima afeta os números do agro.

— Os agricultores já estão sentindo os efeitos adversos das mudanças climáticas em seus campos e, ao mesmo tempo, têm um papel central no enfrentamento desse enorme desafio. As perdas relatadas na pesquisa deixam muito clara a ameaça direta que as transformações no clima representam para a segurança alimentar em todo o mundo — diz Rodrigo Santos, presidente global da divisão agrícola da Bayer.

Perdas de mais de 25%

O estudo “Farmer Voice” (“Voz fazendeira”), encomendado pela multinacional a uma agência independente, consultou produtores entre abril e julho deste ano em Brasil, Austrália, China, Alemanha, Índia, Quênia, Ucrânia e EUA. Entre os ouvidos, 73% relataram o crescimento de pragas e doenças em suas plantações. Em média, os agricultores atribuem ao clima uma perda de 15,7% em seus rendimentos nos últimos dois anos. Mas um em cada seis identifica perdas financeiras superiores a 25%.

Estudos acadêmicos mostram desde 2017 os vários fatores ligados a mudanças climáticas que podem afetar a produção de alimentos. O rendimento das colheitas pode cair, por exemplo, por aumento do estresse térmico das plantas, crescimento acelerado, maiores taxas de evapotranspiração, aumento da aridez da terra e de pragas, alagamentos.

No Sul da Europa, com o calor mais forte este ano, vacas produziram menos leite e tomates estragaram. A colheita de grãos foi menor por causa da seca, elevando o risco de a inflação na zona do euro se manter por mais tempo que se esperava.

No Rio Grande do Sul, o plantio do arroz precisa ser feito agora para que a planta se beneficie ao máximo do melhor período de insolação, em janeiro. Embora a imagem dos campos alagados com uma fina camada de água seja a marca dessa cultura, é preciso tempo seco para semear, uma preparação de cerca de três semanas antes de o solo começar a alagar, explica Velho, que também é o presidente da Federarroz-RS, que representa produtores gaúchos.

No fim de setembro, de 20% a 30% da chamada fronteira Oeste do Rio Grande do Sul já deveriam estar plantados, mas, segundo o agricultor, o plantio “andou um pouco”, de forma desigual no estado. Com isso, a colheita também deve atrasar.

Previsões climáticas apontam que outubro continuará com chuvas acima da média no Sul do país. Segundo Jossana Cera, meteorologista do Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga), as previsões mostram que, até o próximo dia 15, não deve haver períodos secos longos o suficiente para o plantio:

— Como está muito úmido, qualquer garoa, de 1 ou 2 milímetros, já atrapalha. Daí os produtores têm de parar (de semear) e esperar secar de novo.

Influência nos preços

Para o economista-chefe da MB Associados, Sergio Vale, ainda não é possível antecipar os impactos sobre a agropecuária — e o preço dos alimentos — da combinação do fenômeno El Niño (aquecimento das águas do Pacífico, que tem se mostrado severo desde meados do ano) com as mudanças climáticas, mas uma coisa é certa: a deflação que se vê agora no Brasil “tem data para acabar”. De junho a setembro, os preços dos alimentos acumularam queda de 4,01% no IPCA, segundo o IBGE.

— Devemos ver o impacto dos alimentos IPCA em janeiro, fevereiro, com o regime de chuvas mais intenso. Será um dos itens que afastará o IPCA da meta, junto com uma possível alta do preço dos combustíveis — avalia Vale.

O economista observa que, nos últimos 20 anos, houve deflação de alimentos em apenas três: 2005, 2017 e 2023. A tendência histórica que vem se desenhando é de uma inflação de alimentos de 5% ao ano. A deflação atual, explica ele, decorre da superprodução da última safra no país: produtores não conseguiram escoar tudo, devido aos problemas históricos de logística e armazenagem de grãos e da queda de preços das commodities no exterior, ampliando a oferta interna.

Café também sob risco

Análises da Nottus, empresa de inteligência de dados e consultoria meteorológica para negócios, apontam que as temperaturas no Brasil em outubro, novembro e dezembro deverão ficar de 2 a 3 graus acima da média histórica por conta do El Niño. E as chuvas serão irregulares.

— Esta será uma safra desafiadora para a região do Matopiba (acrônimo das siglas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia para definir a área entre os quatro estados caracterizada pela produção de soja, milho e algodão), mas nada próximo aos grandes períodos de seca que a região já enfrentou, como na safra de 2015/2016, quando estava vigente o El Niño mais forte do século — explica Desirée Brandt, meteorologista da Nottus.

Fabio Marin, professor do Departamento de Engenharia de Biossistemas e do curso de Engenharia Agronômica da Esalq/USP, lembra que o fim do inverno é sempre quente, com o ar seco. O recorde de temperatura já registrado por uma estação meteorológica da Esalq no interior de São Paulo foi de 41,2 graus em outubro de 2020. O especialista diz que as culturas que mais sentem o calor são café, citros e hortaliças, cujas lavouras podem ter qualidade e produtividade prejudicadas.

Técnicos da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo (Faesp) relatam a preocupação dos cafeicultores de Caconde, na divisa com Minas Gerais, maior produtora paulista do grão, com a onda de calor. Também há riscos para a produção de laranja. “Caso a onda de calor perdure há, sim, possibilidade de elevação dos preços (de alimentos). Por enquanto, a tendência é de estabilidade”, informou, em nota, a equipe de economistas da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp).

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