Apagado da memória da música popular de seu país, o mineiro Nelson Ned (1947-2014) empilhou feitos que ainda surpreendem muitos dos seus compatriotas. Com nanismo, esse autoproclamado “baixinho e feio”, que chegou somente a 1,12 metro de altura, foi o cantor brasileiro de maior popularidade de todos os tempos na América Latina, África e Estados Unidos.
Só no mítico Carnegie Hall, em Nova York, ele se apresentou quatro vezes (duas no mesmo dia, com ingressos esgotados). Em Bogotá, certa vez foi recebido por uma multidão no aeroporto e cantou para 80 mil pessoas. E seus LPs “Voz y corazón” (1978), “Mi manera de amar” (1979) e “Primavera de una vida” (1980) entraram por diversas vezes nas listas dos 10 mais vendidos de Miami e Nova York.
O que aconteceu com Nelson Ned?
Mas as revelações do livro “Tudo passará – A vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção”, do jornalista André Barcinski, vão bem além do sucesso no mundo do show e do disco. Das pouco mais de 200 páginas salta um personagem que, nas palavras do autor, faria um astro do rock como Keith Richards, guitarrista dos Rolling Stones, “parecer um escoteiro”. Ou melhor: o protagonista de um improvável filme que combinasse “Boogie Nights” com “Scarface” e “Nasce uma estrela”.
— O Nelson passa de 1975 a 1988 numa espiral de droga, loucura, sexo e orgias que eu nunca vi igual. Ele era um cara enfezado, arrogante e autoconfiante com um monte de amigo gângster — avalia Barcinski acerca do cantor que num dia poderia estar cantando na Colômbia para um Pablo Escobar em ascensão, noutro para o sanguinário ditador haitiano Baby Doc e ainda assim ser idolatrado por um expoente das letras como o colombiano Gabriel García Márquez.
“Tudo passará” (que André Barcinski autografa dia 25 na Festa Literária de Paraty, a Flip) começou a nascer durante a pesquisa para “Pavões Misteriosos – 1974-1983: a explosão da música pop no Brasil”, livro que ele lançou em 2014 e reeditou no ano passado.
— Apesar de aquele ser um livro sobre música pop, falei com vários artistas ligados a essa música chamada brega, mais popular. Falei com o Odair José, o Sidney Magal, e o Nelson Ned estava na lista de entrevistados — conta. — Era 2011, 2012, e ninguém mais ouvia falar dele. Li uma autobiografia do Nelson e fiquei fascinado: ele era o mais velho de sete filhos e o único portador de nanismo. Só a parte da história familiar é muito tocante. A coragem e a altivez da mãe, dizendo que não ia criar um mundo pro seu filho, mas um filho para o mundo, isso tudo era muito emocionante para mim.
Em 2012, depois de muita insistência com a família, Barcinski conseguiu marcar uma entrevista com o cantor. E só quando o encontrou na chácara da irmã, Neuma, em Cotia, interior de São Paulo, entendeu a razão de tanta resistência em expô-lo.
— As irmãs tinham tirado ele de uma situação familiar muito muito triste, com a Cida (a última esposa, com quem vivia entre tapas e beijos). Ele estava muito mal de saúde, tinha alguns momentos de lucidez mas logo depois começava a perder a razão. Tivemos uns 25 minutos de entrevista em que ele foi respondendo bem e aí começou a dar uma viajada, já não falava muito coisa com coisa — recorda-se. — Fiquei tão tocado pela entrevista que achei que ele merecia um livro só dele.
‘Um show de noventa centímetros’
Da pesquisa e demais entrevistas, feitas no Brasil e no exterior, aos poucos se formou o retrato do artista que sai da pequena Ubá com uma voz maior do que tudo e, em pouco tempo de Rio de Janeiro, ainda adolescente, lançou em 1964 o seu primeiro LP: “Um show de noventa centímetros” (título de reportagem publicada no ano anterior, da revista “O Cruzeiro”). Na capa, Nelson aparecia de smoking, ao lado de uma fita métrica — mas sob protestos, afinal já tinha mais de um metro de altura. “Quanto menor você parecer ao publico, melhor será para sua promoção”, argumentou o diretor da gravadora.
— No entanto, quando o Nelson começa a ser premiado por sua música, a novidade do nanismo passa. Ainda em 1964, isso se torna um fardo para ele — revela o autor, que no livro resgata slogans da época como “Este homem não se mede aos palmos! Mede-se às palmas!” e “o cantor-anão com voz de gente grande”. — Se no começo era uma coisa que o ajudava a vender shows e a despertar interesse em revistas como “O Cruzeiro”, depois isso só dificultou a vida dele. Em 1966, quando o Nelson vai para São Paulo cantar nas boates, ele é achincalhado pelo público.
Quando outros cantores começaram a cantar as suas músicas, iniciou-se o caminho de Nelson Ned para o sucesso (no Brasil, depois na Argentina e nos Estados Unidos). O estouro de “Tudo passará” em 1969 sacramentou o compositor de canções cujo tema ele era especialista: a rejeição.
— Cantadas por outras pessoas, as músicas românticas do Nelson Ned são profundas, muito interessantes. Mas cantadas por ele, as músicas ganham uma dimensão extra, uma vez que ele está falando sobre a sua própria condição, sobre o fato de ser rejeitado porque a mulher prefere um outro cara que tem uma altura “normal” — analisa André Barcinksi. — O Nelson tem pouquíssimas músicas especificamente sobre nanismo, a maior parte do que ele diz está nas entrelinhas. Ele está sempre tentando falar que é um cara sensível e bacana e que se a mulher lhe desse um tempo, ele a conquistaria.
Quantos casamentos teve Nelson Ned?
E incontáveis foram as conquistas amorosas do cantor, que foi casado duas vezes, em sua escalada internacional, que tem como marco a participação no 1º Festival da Canção Latino-Americana de Nova York, em 1970. A fama de garanhão era maior até mesmo que as dores lancinantes nos ossos (agravadas, no nanismo, por dois acidentes automobilísticos, nos quais foi arremessado pelas janelas dos carros), as quais só suportava tomando morfina. O álcool e a cocaína (pura, obtida diretamente dos amigos chefões do tráfico) se somaram ao coquetel químico que o deixou sujeito a variações abissais de humor.
Armas, drogas e cocaína em cofre de Nelson Ned
À fama, drogas e mulheres, Nelson Ned ainda acrescentou uma fixação por armas, que guardava em um cofre junto com dólares e cocaína. O lado sombrio se manifestava, mas ele ainda conseguia fazer graça.
— Ninguém zoava com Nelson Ned, era ele mesmo que se zoava. Nos shows, Nelson dizia: “Eu sou pequeno, mas algumas partes de mim são muito grandes.” E quando já estava todo mundo rindo, ele completava: “Partes como o meu coração.” — relata André Barcinski.
Em que ano Nelson Ned se converteu?
A partir de 1976 (quando passa por uma conversão religiosa e grava o LP “O poder da Fé”), Nelson passa a intercalar discos evangélicos e seculares. Nos anos 1990, a religião o domina por completo e sua carreira declina em termos comerciais — mas não só por causa da opção artística. Sua saúde foi se degradando, ele teve um derrame, perdeu a visão um olho, enfrentou a concorrência da música sertaneja e ainda chorou a morte dos pais e do seu empresário, Genival Melo.
— Em dez anos, Nelson Ned passou de cantor brasileiro mais famoso do mundo a um cara pobre com as irmãs pagando o tratamento de saúde — lamenta Barcinski, ressaltando que, em nenhum momento, ele deixou de fazer shows para o público mais pobre, para quem ele nunca deixou de ser um ídolo. — E essa idolatria vem muito do fato de ele ser visto pelas pessoas como um milagre. Tinha algo de místico, de mágico no Nelson.
Com o livro na praça, o autor agora parte para projetos de filmes (documentário e ficção) sobre Nelson Ned. Ele torce para que, depois de ler sobre a história do cantor, as pessoas passem a ouvir sua música, especialmente a dos discos que ele lançou entre 1969 e 1979:
— O Agnaldo Timóteo dizia: “Não é fácil acordar e ser o Nelson Ned!” Eu não consigo pensar em outro alguém que cantou a melancolia desse jeito tão confessional. Quase nunca os artistas se põem na posição de uma pessoa que foi rejeitada por uma questão física.
“Tudo passará – A vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção”. Autor: André Barcinski. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 256. Preço: R$ 79,90.