Márdhia El-Shawwa: de delegada à secretária que ajudou a reduzir os índices de feminicídio no Acre

Entrevista é um especial em comemoração ao Dia Nacional do Delegado de Polícia Civil

No dia em que se comemora o Dia Nacional do Delegado da Polícia Civil, neste domingo, 3 de dezembro, o ContilNet entrevistou a secretária de Estado da Mulher, Márdhia El-Shawwa, que é delegada aposentada e já pode se orgulhar de um marco na carreira: ajudou a reduzir os índices de feminicídio no Acre.

Com um longo trabalho na defesa dos direitos femininos, Márdhia comandou por anos a Delegacia Especializada na Mulher de Rio Branco.

Secretária Márdhia El-Shawwa durante entrevista ao ContilNet/Foto: Matheus Mello

Delegada de Polícia Civil aposentada, Márdhia entrou na corporação aos 22 anos de idade. A delegada que é natural de Tarauacá, fez faculdade em Santa Catarina e antes de assumir a nova Secretaria, atuou por 10 anos como delegada na Delegacia de Defesa à Mulher, além de trabalhar em outras áreas de defesa, como a Delegacia do Idoso, Núcleo de Atendimento á Criança e Adolescente Vítima, e mais recente, à frente da Secretaria de Estado de Segurança Pública, como secretária-adjunta, durante quase todo o primeiro mandato do governador Gladson Cameli.

No cargo, Márdhia assumiu a responsabilidade de coordenar o projeto Acre pela Vida, um dos mais importantes do Governo.

Vida na Polícia Civil

Márdhia assumiu o cargo de delegado quando tinha apenas 22 anos. Muito nova, ela tinha acabado de se formar em Direito e conseguido passar na prova da OAB. A recém-advogada relutou em entrar na carreira da polícia.

“Eu nunca pensei em ser delegada. Quando eu passei, fiz a academia para ver se eu me encontrava, se eu gostava. Só que fui criando amor pela profissão”.

Quando assumiu o cargo, Márdhia foi lotada para assumir a GAPE, Grupo Especial Anti-Assalto em Rio Branco, uma espécie de BOPE, da Polícia Civil.

‘Foi meio chocante para mim. Eu toda delicada, toda menininha. Fui a primeira mulher a trabalhar lá, rodeada de homens. Mas eu tive que me adaptar na marra”, disse a delegada.

A delegada disse que enfrentou muita resistência dos colegas da corporação, no começo, por ser mulher.

“Imagina ser coordenado por uma mulher? Eles tinham um delegado coordenador, só que assim que eu assumi ele tirou férias. Eu que fiquei no lugar”, relatou.

Durante a entrevista, Márdhia lembrou de um episódio que retrata bem a dificuldade enfrentada quando assumiu o comando de uma dos grupos mais importantes da Polícia Civil no Acre.

“Uma vez eles [policiais] me buscaram em casa, de manhã cedo para levar para a Delegacia, e tinha um assaltante que nós já procurávamos há um tempo. E aí passaram no rádio que ele tinha sido visto em um local de Rio Branco. Era um cara que tinha cortado a cabeça de um outro preso no Presídio Urso Branco, em Rondônia, e jogado futebol com ela. Super procurado. Foi quando os policiais disseram que não dava para ir até o local porque ‘a delegada [Márdhia] estava com eles e eu estava de salto’. E eu respondi – Como assim? Pode ir sim!”, contou a delegada.

“Eram umas coisas sutis. Não é porque eu sou mulher que eu não vou fazer tudo igual aos homens. Mas a gente foi vencendo, eles foram me aceitando e deu tudo certo”, completou.

Secretária da Mulher, Mardhia El-Shawwa/Foto: Matheus Mello/ContilNet

Agora secretária, Márdhia lembrou que quando chegou na corporação da Polícia Civil, há mais de 20 anos, o cenário era diferente.

“As condições não eram boas na época. Não tinha armamento, eu lembro que a primeira arma que eu usei foi um revólver, apreendido de um bandido, que foi cauteloso para mim porque não tinha arma. Não tinha computador, viatura, igual nós temos hoje”, destacou.

Uma história na DEAM

Márdhia ficou por 8 anos no comando como titular da Delegacia Especializada na Mulher, a DEAM, de Rio Branco.

A delegada relembrou que relutou a assumir a delegacia, principalmente por conta de um estereótipo em relação à essas delegacias.

“Quando eu fazia academia eu não queria ir. Eu tinha aquela visão – Ah! as mulheres vão lá, registram e desistem, e a gente vai ficar só trabalhando-, como muitas pessoas têm essa visão. Imagina, eu era uma menina. Mas aquilo foi uma escola, eu fui entender porque as mulheres registram o boletim de ocorrência e desistem. Fui entender porque elas mesmo apanhando, sendo ameaçadas e humilhadas continuam com seus companheiros. Eu entrei uma criança na DEAM e saí uma mulher”.

Emocionada, a delegada falou sobre a responsabilidade da função e do cargo exercido na Polícia Civil.

“Imagina eu com 22 anos ter que decidir o futuro da pessoa? Era parque. Não dava para ligar para alguém e perguntar o que tem que fazer. Na academia, você estuda Direito, sabe as leis, mas não te ensinam o que é ser delegada. Como que você vai atender aquela pessoa. O que você tem que falar. É só tu e Deus”, disse.

Casos marcantes

Com tantos casos que passaram pela sua mesa enquanto estava à frente da DEAM, Márdhia compartilhou os que mais a marcaram e moldaram a profissional que ela é hoje.

Antes de contar os casos, a delegada declarou que toda vez que saía de férias da Delegacia, quando retornava, sentia o baque da responsabilidade que carregava nas costas. “Quando eu tirava férias e voltava, sempre morria uma mulher”.

Márdhia El-Shawwa é secretária da Mulher. Foto: Secom/AC

Foi justamente na volta de férias que Márdhia se deparou com um dos casos mais marcantes da carreira. Com a delegacia lotada em um final de semana agitado, a delegada, com uma fila de fragrantes para lidar, inclusive de uma criança de 6 anos, deficiente visual, que havia sido violentada pelo avô, ela deixou um caso de ameaça para ser despachado pela escrivã plantonista.

O caso se tratava de uma ameaça feita pelo marido a sua esposa. A vítima não quis fazer a representação do crime. Sem a Lei Maria da Penha, as mulheres que não queriam representar o caso, só assinavam um livro da Delegacia e eram liberadas.

Dias depois, Márdhia recebeu uma ligação,
à noite, com a notícia: a mesma mulher teria sido assassinada. O suspeito principal era o marido.

“Eu fiquei desesperada. Como é que essa mulher passou pela Delegacia comigo e morreu? Eu não conseguia nem lembrar, porque foi em um dia de muvuca na DEAM. Era um direito dela não querer representar”, lembrou.

No outro dia, Márdhia foi até o local do crime, em uma casa no bairro da Sobral e achou o celular da vítima. Mais tarde, o marido da vítima foi convocado para depor e prestar esclarecimentos. Mesmo não confessando o crime, a delegada sentia que homem havia cometido o assassinato.

Suspeito pelo crime, mas sem provas, o acusado foi liberado. Dias depois, com a perícia do celular nas mãos, Márdhia consegui a gravação da última ligação feita pela mulher ao 190. As últimas palavras foram: “Socorro, meu marido me deu um tiro”.

O pedido de ajuda da mulher é lembrado até hoje pela delegada. O homem conseguiu fugir e nunca foi preso.

Márdhia era a delegada do Acre quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, em setembro de 2006.

Um nome técnico

Sem ter influência política-partidária, Márdhia assume o cargo de secretária da Mulher após a nova reforma administrativa do governador Gladson, aprovada em fevereiro desde ano, que retomou a SEMULHER.

Ela foi uma indicação do governador Gladson Cameli/Foto: Reprodução

Ela disse que o convite para assumir a Secretaria é o reconhecimento de anos de trabalho à frente da defesa das mulheres.

“É uma consequência, uma resposta à toda essa história. É um reconhecimento do governador Gladson Cameli e da vice-governadora Mailza Assis. Eles apostaram em mim. Nunca tinha pretenção de ser secretária.

Legado à frente da SEMULHER

Depois de permanecer, até o ano de 2021, ao lado de Tocantins, como um dos estados do Brasil que mais registraram aumento no número de casos de feminicídio, o Acre entrou para a lista dos estados da região Norte onde este tipo de crime diminuiu no ano de 2023. Isso sob o comando da secretária Márdhia El-Shawwa.

“O trabalho não é só meu. A Secretaria realiza um trabalho transversal. Ela precisa estar aqui para articular”, disse a delegada.

Ela destacou a necessidade do acolhimento das vítimas, como forma de reduzir os índices de feminicídio.

O presidente Lula, inclusive, sancionou uma lei que estabelece que o atendimento às mulheres nas delegacias deve ser realizado em sala reservada e, preferencialmente, por policiais do sexo feminino, durante as 24 horas do dia, sete dias por semana.

No Acre, a proposta da lei já vinha sendo cumprindo desde o início do mês de março por ordem do governador Gladson Cameli. Ao nomear a delegada para o cargo de secretária de Estado da Mulher, Gladson Cameli orientou para a necessidade de manutenção das delegacias de proteção às mulheres abertas às 24 horas por dia e durante todos os dias para que o Acre possa diminuir os índices de violência doméstica e de femicídios que o colocam como líder nas estatísticas neste tipo de crime.

“A gente sabe que os índices de violência aumentam, não porque elas estão sendo mais agredidas ou mais abusadas. É porque elas estão sendo acolhidas e incentivadas a denunciar”.

Márdhia El-Shawwa/Foto: Reprodução

“Os índices vão aumentar, a gente quer que aumente a quantidade de denúncias. Que as nossas crianças denunciem, que as mulheres falem. As mulheres que morreram no Acre não tinham medida protetiva, ou seja, o Estado não sabia que elas eram vítimas. A gente tem que saber. Então ela chegando em uma delegacia, maquina Secretaria, em qualquer lugar da relede atendimento a ela e denunciar, a gente vai ajudar ela a tirar uma medida protetiva e salvar essa vida”, completou Márdhia.

A secretária da prevenção

Questionada sobre o qual o legado que pretende deixar na Secretaria da Mulher, Márdhia entoou um discurso necessário na proteção de todas as mulheres acreanas.

“Eu quero ser reconhecida como a secretária que lutou e conseguiu efetivamente implantar políticas públicas para todas as mulheres, as mulheres cis, mulheres trans, todas! Que elas se sintam representadas. Que elas saibam que tem uma secretária que luta por elas, sem discriminação”.

Márdhia disse ainda que quer ser reconhecida como uma gestora que focou na prevenção do feminicídio. “A secretária que mostre e ensine desde cedo o que é certo e o que errado. Que mulheres e homens, são iguais e temos que nos respeitar”, finalizou.

PUBLICIDADE