Vigilante trans com várias formações fala sobre acesso ao mercado de trabalho: ‘Nos matam todos os dias’

“Meu maior desafio no meu processo de transição, que eu me descobri trans, foi a questão da família"

Nesta segunda-feira, 29 de janeiro, foi celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans, e traz a atenção para as reivindicações da população travesti e trans brasileira. A data mundial, celebrada em 31 de março, também reforça esse coro ao trazer cenários e possibilidades diversas de políticas públicas para essa população em várias partes do mundo.

No Dia Nacional da Visibilidade Trans, a coluna Douglas Richer, do site ContilNet, conversou com Ariel Silva, de 45 anos, vigilante na área de segurança privada, um jovem trans que já enfrentou diversos desafios na vida em sua transição, entre eles sua mãe que, por medo, lutava para que ele não vivesse a transição. O senamadureirense falou sobre o preconceito e ataques que viveu e vive durante o seu dia a dia.

“Meu maior desafio no meu processo de transição, que eu me descobri trans, foi a questão da família, porque primeiro você sai do armário como lésbica. Porque a sua família acredita que você é mulher cis e aceita você por um momento ali como lésbica. E depois que você vê que aquilo dali não é a sua identidade, não é naquele lugar que você se encontra de fato, que você se vê como lésbica, você conhece outras pessoas que estão fazendo transição e você sabe que você é daquele jeito, você sabe que é tudo que você quis na vida foi ser daquele jeito, como um homem se vê como um homem, sem seios, que a gente chama de ‘intrusos’, e a gente quer ter um corpo mais masculino, a gente quer ser tratado como homem porque é ali que a gente se vê naquele ambiente, naquele quadrado que você se encaixa”, disse.

“Eu sempre me vi como uma pessoa diferente. Eu tenho orgulho de ser trans. Em momento algum eu quis nascer homem. Pelo contrário. Quando eu me descobri homem trans eu não queria ser homem. Eu tenho orgulho disso, de transicionar, de ter o pensamento que eu tenho hoje, com todas as barreiras que eu já enfrentei, enfrentei a minha família. Eu só quis transicionar mesmo depois que minha mãe faleceu porque eu não queria que ela sofresse. Eu sei que muitos estão passando por essa barreira, muitos meninos trans que são novinhos estão ultrapassando essa barreira. Quando me entendia como lésbica, eu queria ser outra coisa, queria ser o homem trans, entende?”, questionou.

“E quero deixar bem claro que a minha mãe, ela não tinha preconceito nenhum comigo e nem como lésbica e nem como trans. A preocupação dela é que eu já estava ficando velho, tipo de idade, e eu só estava com uma profissão que era cabeleireiro, mas ela não queria essa vida pra mim. Ela tinha medo de eu não ser aceito, de eu ser mais sofrido ainda, de eu apanhar mais ainda. Por conta de ser trans, por isso ela não queria às vezes nem ouvir as minhas histórias quando eu falava pra ela. Ela não queria, ela dizia que não tinha necessidade, para eu parar com isso, que eu já tava casado com mulher, já era lésbica. Também me dizia: “Tu não já tem um emprego? Se tu for transicionar é pior, porque as pessoas não te aceitam nem como lésbica, tu acha que vão te aceitar como ‘macho fêmea’?”. Entendeu? Era sobre isso, ela tinha medo da atitude das pessoas comigo”, contou em entrevista ao ContilNet.

Ariel Silva, de 45 anos, vigilante na área de segurança privada, já enfrentou diversos desafios na vida em sua transição/Foto cedida

Ariel contou que, mesmo transicionado, se vestiu com roupas ditas femininas para buscar emprego no Acre e para não sofrer preconceito. O acreano também falou sobre a importância da data para as pessoas trans e os ataques sofridos por alguns evangélicos.

“Por muitas vezes eu me vesti bem feminina pra procurar um emprego, pra me adaptar na sociedade, pra não ser olhado com olhares estranhos, para pessoas me verem como cidadão, por isso a questão da visibilidade trans. É para as pessoas nos verem, para pessoas saber que nós existimos sim e que nós precisamos de políticas públicas, que nós precisamos de saúde, que nós precisamos atenção, nós precisamos de documentos, nós precisamos de isenção de trabalho, ser inseridos no mercado de trabalho, nós precisamos ser tratado como qualquer outra pessoa que se diz normal. São muitas camadas que a gente ainda precisa derrubar, que a gente ainda precisa se impor”.

“Porque tem muitos muitas pessoas na sociedade que sabem que a gente é trans, mas aí continuam chamando a gente pelo nome antigo, que a gente chama nome morto. Muitas pessoas na frente da gente dizem que aceitam e depois ficam criticando, isso dói muito, mas eu sinto que a maioria das pessoas trans são fortes, eu conheço muito do nosso grupo. São pessoas fortes que não se deixam abalar porque a gente já encarou muita coisa, a gente já enfrentou muita coisa. Muitas coisas já foram conquistadas e a gente chegou até aqui, com muitas duras perdas”, disse.

“Eu tive muitos amigos que se suicidaram, um rapaz em Sena Madureira, que conheci, devido à mãe dele ser evangélica. Eles não deixaram eles se encaixar, ser amados; não foram amados, foram criticados. A maioria dos evangélicos hoje em dia diz que quer recuperar pessoas como nós, mas nós não precisamos de recuperação. Essas pessoas criticam, muitos evangélicos matam pessoas como nós. Então muita gente deixa de crer em Deus, de acreditar em Jesus porque muitas pessoas que se dizem pastores, que se dizem ser da palavra, matam pessoas como eu, como você”, continuou.

“As pessoas LGBT, nós sempre estamos na mira do ódio dessas pessoas, do discurso de ódio disfarçado de coisas boas. Eles colocam o discurso de ódio disfarçado de cristão e vice-versa, nós somos endemoniados, eles acham que nós somos endemoniados; nas falas deles, eles endemonizam a gente, como se fosse o único defeito da face da terra ser LGBT. Não existe outra pauta nos púlpitos das igrejas, não existe outra pauta, a pauta é só LGBT, tacar o pau na gente, em pessoas como eu, como você, as pessoas LGBTs que sempre pediram por visibilidade, sempre pediram para que as políticas públicas fossem voltadas para nós também, que a empregabilidade fosse uma porta aberta para nós LGBTs, que nós também tivéssemos essa oportunidade de ser cidadãos, porque é o que nós somos, nós buscamos por dignidade”, contou Ariel.

Ao ContilNet, Ariel Silva relembrou episódios de preconceito e discriminação que já viveu. Em um deles, o trans acreano sofreu transfobia no portão de seu curso em Rio Branco.

“Eu enfrentei todo tipo de discriminação que você possa imaginar. Já enfrentei discriminação em hospital, já passei por discriminação em escola, já passei em cursinhos, que busquei me aprimorar, sempre busquei ter um currículo bem abastado, um currículo que enchesse os olhos, mas mesmo assim, mesmo com tudo isso, com todos os cursos que eu tenho – só na pandemia eu fiz 17 cursos –, então, todas as vezes que eu enviava meu currículo, eu ficava naquela certeza de que a vaga era minha, porque eu conheço o mercado de trabalho, eu conheço como as pessoas são capacitadas aqui no Acre, as pessoas não buscam por cursos de aprimoramento, buscar mais na sua área. Então eu sempre busquei isso para mim, para a pessoa ver meu currículo e não ver a mim e muitas vezes quando a pessoa via o meu currículo e eu chegava pessoalmente, as pessoas diziam que eu não me encaixava, que eu não tinha o perfil. Muitas vezes eu cheguei a ver currículos, eu conversava com as pessoas, sempre conversei com as pessoas que estavam nas salas às vezes comigo e eu via pessoas menos capacitadas do que eu ganharem minha vaga e eu não me encaixava; as pessoas diziam que eu não me encaixava no perfil da empresa, e sempre foi assim”.

“Quando fiz o curso no SENAI, eu fui discriminado também, por porteiro, com transfobia, o rapaz me insultou no portão, voltei, perguntei novamente para ele do que ele tinha me chamado. No momento, me deu muita vontade de desistir, de ir pra cima. Mas eu engoli todo aquele desaforo porque eu tenho 45 anos, já passei por coisas piores do que essa. Então, não ia ser aquele momento que iria me desestabilizar para eu não buscar o mercado de trabalho, para eu não buscar um aprimoramento na minha área, para eu não buscar conhecimento. Tenho três tipos de currículo, tenho um currículo na área de estética, na área de eletricidade e na vigilância, e cada currículo desses é preenchido com cursos da área que eu sempre busquei me aprimorar”, continuou.

“Em todos os lugares, eu sempre passei por preconceito, só que não foi um, nem dois, nem três, que me fizeram desistir e até hoje no lugar onde eu trabalho, que é basicamente maioria masculina, a gente sofre, a gente vê nos olhares das pessoas, que elas respeitam mais os homens cis do que a nós, homens trans. Eles têm a gente como lésbica, têm a gente como uma sapatona, como mesmo eu já ouvi por trás de mim. É isso que a gente ouve, todos os dias, isso mata, isso mata, a pessoa que tem um psicológico fraco, acaba se suicidando porque ela não está estabilizada. Ela,psicologicamente, ainda nem se conhece”.

“Enquanto a gente está com essas dúvidas dentro da gente mesmo, a sociedade massacra demais. A sociedade espanca, a sociedade nos mata a cada dia. Muito LGBT se mata por conta das falácias, das pessoas ignorantes, das pessoas que não querem conhecimento, não querem saber como a pessoa está, como a pessoa é, o porquê que ela é daquele jeito, as pessoas não querem saber, elas simplesmente te julgam, às vezes pela roupa que você veste, pela tua maquiagem, pelo teu modo de andar e isso tudo. Isso é gravíssimo, por isso é muito importante o dia de hoje da visibilidade trans porque nós precisamos ser cuidados assim como todas as pessoas precisam de cuidado”, completou ao ContilNet.

Em papo com este colunista, o vigilante falou sobre a importância do ambulatório inaugurado recentemente no estado.

“Às vezes, quando publicam alguma matéria sobre o ambulatório trans, eu vejo os comentários que nós estamos sendo priorizados pelo estado, pelo município. Em momento algum estamos sendo priorizados por ambos. Sempre falo que a questão do ambulatório trans no Acre foi uma necessidade, em todos os municípios e no Brasil. Porque existem muitas que estão transicionando, tanto mulheres trans como homens trans, com remédio caseiro, com testosterona caseira, que não passou pela Anvisa, por um laboratório seguro. E essas pessoas futuramente terão problemas de saúde”, disse.

“O ambulatório veio para tratar da nossa saúde, não para nos dar prioridade. São disponibilizadas oito fichas na Urap da Seis de Agosto; se nós não chegarmos a tempo de pegar uma dessas fichas, vamos para casa, igual a qualquer um. Nós não estamos tendo prioridade, apenas recebendo especificidade, que é um médico capacitado para nos atender, no nosso caso, no nosso tratamento hormonal. Nós precisamos desses profissionais de saúde para nos atender na transição com saúde e segurança”.

Casado com Eliete Valente do Nascimento, Ariel contou que sua companheira tinha medo das medicações proibidas/Foto cedida

Ariel também falou sobre o processo de transição em seu relacionamento. Casado com Eliete Valente do Nascimento, Ariel contou que sua companheira tinha medo das medicações proibidas usadas por algumas pessoas.

“A minha companheira Eliete, quando eu disse para ela que iria transicionar, ela só ficou assustada porque ela não queria de maneira alguma que eu fizesse minha transição sem acompanhamento médico. Essa foi sempre a grande preocupação dela, que eu não fosse pela cabeça dos outros. Porque eu já tinha amigos trans, e amigos meus trans tomavam a testosterona da Bolívia, que não tinha selo da Anvisa, não era vendida em farmácia. Então, o medo dela era esse, e eu sempre falei para ela, eu não sou louco. Eu tenho mais de quarenta anos, eu não sou doido de botar a minha integridade física, a minha saúde e um cheque. Eu jamais iria fazer essa aposta na minha vida”.

“Quando eu comecei a querer transicionar, eu já busquei tratamento médico e foi justamente quando eu procurei um médico que descobri que eu estava com um cisto de água. Por isso que eu não sentia dor. E ele já estava bem grande e eu não sentia dor nenhuma. Foi quando eu procurei o médico para fazer a transição que descobri isso tudo; ele pediu um check-up, pediu vários exames para poder me encaminhar para o endocrinologista. E aí eu descobri o cisto. Aí eu comecei a tomar um remédio para murchá-lo. E nesse meio intervalo eu não estava tomando a testosterona injetável, eu passava um androgel, que é um gel que se passa na pele e que não é vendido sem receita médica. Então eu já estava há um tempo só usando ele, sem injetável, e aí foi quando a médica perguntou para mim se eu estava fazendo uso da T, e eu falei que estava em gel. Ela disse que esse não tem problema, pode continuar. A gente vai fazer acompanhamento do seu cisto, se ele não crescer, você não para; se ele crescer, você para”, disse.

“Enquanto eu estava tomando um anticoncepcional para murchá-lo ou para parar o crescimento do cisto, porque o cisto de água não tem um risco de vida. Então ele não tem risco para minha saúde se ele não crescer. E aí eu fiquei usando o androgel, não injetava. E aí foi passando; quando fiz os novos exames, ela disse que ele tinha crescido três centímetros e pediu para eu suspender. Foi quando entrei pelo SUS, para fazer a cirurgia, e demorou muito tempo, muito tempo. Do posto fui para a fundação, da fundação eu fui para o ambulatório da Uninorte no Santa Juliana, e lá eu fiquei fazendo acompanhamento. Eu esperei muito tempo sem a ‘T’, tipo uns oito meses por aí esperando a cirurgia. Daí eu fiz a cirurgia, quando fiz a cirurgia, voltei para o androgel de novo, que é comprado sem receita”.

“Depois disso, voltei de novo para a fundação e fiquei fazendo acompanhamento com o endocrinologista, porque de qualquer forma eu teria que tomar hormônio, pelo fato de que eu não tinha mais os órgãos internos femininos. Então ia ficar com pré-menopausa, ia ter aqueles calores, e aí ele tinha que realmente fazer reposição hormonal. Quando eu optei por tomar T, tomar testosterona e não o hormônio feminino, eu falei para ele: eu sou homem trans e pretendo fazer a transição. Se o senhor quiser me acompanhar, eu agradeço muito, porque o senhor vai ter que passar mesmo os hormônios para mim, e eu prefiro que seja masculino. Ele quis passar uma dose baixa. Eu comecei a tomar a órgãos, que é a que tem a longa durabilidade, passa três meses. A cada três meses começa a tomar outra, depois passa três meses, toma outra. Então foi isso, eu tive o acompanhamento médico, né? E depois disso já abriu o ambulatório, aí ele me encaminhou diretamente para o ambulatório”, disse Ariel.

vigilante trabalha na empresa VigiAcre em Rio Branco/Foto cedida

Além de vigilante, Ariel tem curso na área ambiental, hospitalar, familiar, prisional e eletrotécnico. O vigilante trabalha na empresa VigiAcre em Rio Branco. Ariel contou que sempre foi bem acolhido em seu local de trabalho.

“Meu chefe sempre diz que quer saber do profissionalismo, que a pessoa tem responsabilidade. Ele disse que não tem problema com a questão sexual ou de gênero. Quando eu cheguei lá, ele perguntou se eu queria ser tratado como ele ou ela, e falei que queria ser tratado como ele. E desde então, ele só me chama pelo meu nome social, não me chama pelo nome morto. Fui bem acolhido e tratado”.

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