No dia 3 de novembro de 1966, seis homens, entre eles o primeiro governador do Acre eleito pelo voto popular, eram julgados e condenados por um tribunal de majores, capitães e tenentes que integravam o temível Conselho Permanente de Justiça, da Auditoria da 8ª Região Militar, em Belém, no Pará. Entre as acusações, estavam a de terem criado o Movimento de Cultura Popular do Acre; incentivado, por meio do método pedagógico Paulo Freire, a alfabetização de adultos de famílias de seringueiros; incitarem produtores rurais com a finalidade de se organizarem em um sindicato; publicarem artigos considerados ‘nocivos ideologicamente’ em jornais; e ainda usarem a máquina pública para promover o ‘comunismo’.
À exceção de José Augusto de Araújo, governador deposto por uma gambiarra na Constituição Estadual criada pelos deputados da Assembleia Legislativa para destituí-lo propositalmente, todos os demais haviam sido presos anos antes, em 1964, e torturados severamente pelos militares – alguns por mais de 30 dias –, antes de libertados para aguardar julgamento pela Justiça Militar.
Se você acha que hoje toda essa retórica de ‘guerra ao comunismo’ e ‘morte aos esquerdistas’ é coisa da mente aloprada do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seus seguidores, saiba que, na verdade, ela é quase uma réplica, ainda que moderada, do tempo em que perseguir, torturar e condenar pessoas consideradas ‘subversivas’ se tornou uma prática comum no Acre, a exemplo do que acontecia no restante do país. Um momento sombrio da história iniciado no dia 31 de março de 1964, uma terça-feira, com o golpe militar que neste domingo completa 60 anos.
Nesta reportagem, ContilNet ouviu o pós-doutor Francisco Bento da Silva, professor-associado do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre e teve acesso a suas pesquisas sobre o tema. Consultou ainda documentos da época, entre atestados de antecedentes criminais, minutas, inquéritos policiais militares e sentenças condenatórias, para trazer o relato vívido de uma época de perseguições, torturas e insensatez no estado mais ocidental do país, no auge da ditadura militar no Brasil.
O pensamento crítico como arma de subversão
Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor
não mata quem é dono de engenho,
só mata cabra-da-peste
só mata o trabalhador.
O dono do engenho engorda,
vira logo senador.
Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do coronel Benedito
tiveram com ele um atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era tão baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.
João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
“Não vamos voltar atrás.
Precisamos de dinheiro,
se o coronel não dá mais
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro”.
Com o coronel foram ter
mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
“Ainda está para nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço”.
Do livreto-poema “João Boa Morte – Cabra Marcado para Morrer”, de Ferreira Gullar [1962].
O trecho acima é parte de uma das muitas obras execradas pelos militares durante o regime ditatorial. Nela, o autor, Gullar, narra em um livro de bolso a vontade do sertanejo nordestino pobre e humilde de ser liberto do domínio do fazendeiro. Por estas bandas, a comparação com as amarguras do seringueiro na extração do látex era também factível diante dos maus-tratos, da exploração econômica e dos assassinatos cometidos contra essas pessoas por alguns seringalistas, nas décadas de 50 e 60, no Acre.
Torturados e sentenciados por ‘propaganda de processos violentos’
Em outubro de 1963, uma reunião com 12 pessoas numa oficina elétrica de Rio Branco causaria, em 1964, o indiciamento do eletricista João Moreira de Alencar, o João Borburema. Preso e severamente espancado pela polícia do Exército na 4ª Companhia de Fronteira, (4ª CF), ele havia sido denunciado pelo cabo José Francisco dos Santos, de 27 anos.
No dia 4 de maio de 64, com os golpistas tocando o terror pelo país, o cabo Santos depõe em inquérito policial militar (IPM) presidido pelo tenente Thales da Paz Monteiro de Castro, da 4ª Companhia de Fronteira de Rio Branco.
No Termo de Inquirição de Testemunha, Santos conta que chegou à oficina de Alencar para encomendar serviços elétricos do quartel da 4ª CF e viu que estava acontecendo uma reunião liderada pelo sociólogo Hélio Cesar Kury. Esse último também logo seria preso e torturado.
“O Hélio estava lá na oficina do Borburema. Tinham 12 pessoas ouvindo ele falar. Depois da palestra, o Hélio me ofereceu um livro. O título era: ‘Como seria o Brasil Comunista’ ou coisa parecida. Eu não aceitei, mas ele também me convidou para entrar para o Partido Comunista”, narra o cabo Santos, em depoimento.
E prossegue o militar: “O Hélio dizia para os que estavam lá que o comunismo era a melhor ideologia porque se todos fossem comunistas não haveria mais guerra. Contei também isso pro comandante-capitão da 4ª Companhia de Fronteira”.
Além da “doutrinação de pessoas para o comunismo”, segundo o termo de inquirição do cabo Santos constante no IPM, Alencar também recebia jornais considerados subversivos como o ‘Terra Livre’ e o ‘Ligas Camponesas’, e que Hélio Kury distribuía cópias do livreto ‘João Boa Morte – Cabra Marcado para Morrer’ para as pessoas.
No dia 3 de novembro de 1966, dois anos depois do depoimento do cabo Santos, o eletricista João Moreira Alencar, o João Borburema, e o sociólogo Hélio Cesar Kury eram condenados a mais de um ano de cadeia.
No mesmo processo, o Conselho Permanente de Justiça, da Auditoria da 8ª Região Militar, em Belém, sentenciou também o advogado Ariosto Pires Miguéis, então delegado da Superintendência da Política Agrária no Acre, Lourival Messias do Nascimento, diretor do Jornal Vanguarda, e Demóstenes Coelho de Moura, este último considerado um ‘agitador nato’.
O julgamento foi feito à revelia porque todos eram considerados foragidos. No primeiro ano de regime, tinham sido presos preventivamente e torturados, às vezes com palmatórias, às vezes com fio elétrico, enquanto alguns receberam urina na cabeça. O ex-governador José Augusto – deposto no dia 8 de maio de 1964, numa manobra dos deputados da Assembleia Legislativa para tirá-lo do poder –, foi o único que teve a denúncia considerada improcedente.
Um fato curioso é que os autos dos depoimentos nos IPM’s produzidos no Acre eram remetidos para a Auditoria da 8ª Região Militar, em Belém e as condenações, comunicadas de volta a Rio Branco via sinais radiotelegráficos desde a capital paraense.
A imputação dos crimes tinha como base o Artigo 11 da Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953: “crime de propaganda de processos violentos para a subversão da ordem política ou social”. Em 2021, o dispositivo foi revogado pelo então presidente Jair Bolsonaro, quando este sancionou a Nova Lei de Segurança Nacional do Brasil.
“Termo democracia era desconhecido dos acreanos antes mesmo do regime”
Apesar do que representou a ditadura militar para os acreanos, o professor Francisco Bento da Silva, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre, ressalta que no Acre, desde o período territorial, já havia sido instaurada uma ordem política no Executivo “baseada muito fortemente no autoritarismo e numa política de personalidades – de pessoas”.
“Quando o Acre foi incorporado ao Brasil, quem são enviados para cá são os militares. E tem a figura de sujeitos que vão encarar muito bem isso, entre eles Hugo Carneiro, Guiomard Santos e Oscar Passos. Até o Guiomard Santos era um militar. Então é muito forte essa característica autoritária no Acre, desde antes mesmo da ditadura”.
José Guiomard Santos, do Partido Social Democrático (PSD) foi governador do território entre 1946 e 1950, e eleito deputado federal logo em seguida, em 1951, tendo sido o maior defensor da elevação do Acre a Estado, obtido essa conquista na tarde do dia 15 de junho de 1962, quando o presidente João Goulart sancionou a Lei n° 4.070, que elevava o Território do Acre a Estado.
“No meu trabalho, eu digo assim: ‘Quando veio o golpe militar, o Acre já vinha de toda uma trajetória autoritária’. Embora não fosse uma ditadura, o autoritarismo já existia, porque não existia participação democrática”, pontua o pesquisador.
O professor Bento da Silva é autor do livro ‘Autoritarismo e Personalismo no Poder Executivo Acreano – 1921-1964’, da Editora Edufac. Ele ressalta que “na época não se votava para outros mandatos que não fosse para deputado federal. Não tinha votação para escolher senador e os demais representantes. Então, o que eu digo é que quando ocorre o golpe militar, com a deposição de José Augusto, um novo viés autoritário vai, de certa maneira, ter correspondência com o que está acontecendo no Brasil naquele momento”.
José Augusto de Araújo, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) foi o primeiro governador do Acre escolhido pelo voto popular. Assumiu no dia 1º de março de 1963, mas logo foi deposto, no dia 8 de maio de 1964. Contra ele, havia interesses de integrantes do próprio PTB, insatisfeitos por terem sido retirados de cargos dentro do seu governo.
“O Acre não vivia uma democracia, diferentemente do restante do país, cuja população já vinha participando das escolhas [eleitorais], mesmo com todos os problemas que a gente sabe das eleições no Brasil, com a compra de votos, os conchavos espúrios e as traições de candidatos nas urnas. Muito embora isso acontecesse, talvez até de uma forma maior nos idos dos anos 1930, 40 e 50”, destaca.
O fato é que, segundo o pesquisador da Ufac, o período chamado de ‘democracia populista’, que vai do fim do Estado Novo até 1964, não teve no Acre um reflexo do que se via no restante do país, “porque embora os acreanos votassem para deputado federal, era só isso. Não tinha eleição para deputado estadual porque o Acre era território e não tinha para governador porque esse cargo era uma escolha da Presidência da República”.
“Então, eles enviavam os mandatários para cá e os acreanos continuavam sem uma participação democrática popular”. O viés autoritário no Acre é visto, por exemplo, na figura dos seringalistas, uma elite ultradireitista que ditava os rumos econômicos do território, ao lado de advogados, médicos e engenheiros.
O objetivo de José Augusto e Ariosto: convencer Jango a iniciar a reforma agrária pelo Acre
O advogado Ariosto Pires Miguéis, hoje aos 87 anos, é o único do grupo de perseguidos políticos pela ditadura no Acre que está vivo. Em 2016, em uma reportagem para o Jornal Opinião, este escriba teve o privilégio de conversar com ele, sentado em um banco da Praça da Revolução, próximo à banca de revistas da sua família, no centro de Rio Branco.
Na ocasião, Ariosto se dizia orgulhoso de ter sido o fundador da primeira instituição de classe do estado, uma atitude que gerou insatisfação nos militares da época, tendo sido este o principal objeto de acusação contra ele no tribunal militar, como se observará mais à frente, na reportagem.
“Nós fundamos o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Estado do Acre. Nós conseguimos, por determinação do presidente João Goulart, o Jango (PTB) e do João Pinheiro Neto, que era o superintendente-geral da Reforma Agrária no país, colocar três mil trabalhadores rurais na cidade, entre colonos e seringueiros, para um grande manifesto”, conta Ariosto Miguéis. Ele, assim como Hélio Cury, João Borburema e um terceiro conhecido por Luiz Claudio da Educação, eram vistos como os ‘comunistas do José Augusto’.
“A nossa principal missão era, exatamente, organizar o homem do campo para fazer a reforma agrária. E haviam passado-se os anos na época, quando chamei o José Augusto e disse: “Olha, Zé, há um problema muito grande do empresariado sulista. Eles estão todos contra a reforma agrária. Então, eu acho que nós deveríamos começar a reforma pelo Acre”.
“Ele me respondeu: ‘Sabe, você está certo. A gente começa por aqui e quando chegar lá (no sul e sudeste), a reforma já está encaminhada e não tem mais retorno’”.
“Aí, nós fomos ao Rio de Janeiro para a sede da superintendência, que era na praça São Francisco. Pedimos uma audiência, marcamos um encontro com o Pinheiro Neto e passamos a ideia para ele. E o Pinheiro gostou, dizendo que iria levá-la ao presidente”.
“Alguns dias depois, eu fui lá na superintendência, no Rio novamente, e o Pinheiro disse: ‘Olha, ô Ariosto, o presidente ficou de analisar a história: ele não disse nem que sim, nem que não. Mas a ideia é boa. Acho que vamos começar isso tudo aí pelo Acre. E eu como pessoa criada por aqui, tinha um papel muito importante nisso”. Ariosto mandou imprimir convites para uma grande reunião que aconteceria no Clube Tentamen, no Segundo Distrito de Rio Branco, onde ele anunciaria a reforma agrária.
“Então veio o golpe!” Os relatos de Ariosto ao ser preso
Após o Ato Constitucional nº 1, todos os superintendentes da política agrária foram demitidos e alguns, presos na hora. No quinto dia me prenderam por volta das 10 horas da noite.
Toda noite, eu jantava com o José Augusto ali no Palácio. Durante o dia, ele despachava, aquela coisa toda, e à noite, ele ia conversar na hora do jantar, com pessoas da confiança dele. A não ser quando tinha convidados.
Então, nós ficávamos lá conversando e, nesta noite, eu me preparei porque sabia que ia ser preso. Então, eu iria fugir para a Bolívia pelos seringais. Eu conheço o caminho dos seringais. Então, já estava com o jipe pronto para eu sair naquela noite.
Aí, chego no palácio e o José Augusto diz: “Olha, Ariosto, se eu fosse você eu ia pra Brasileia, que lá em Brasileia você vai encontrar apoio, e tal”, com o pessoal do sindicato lá da Bolívia.
O Palomito era a grande liderança lá. E vai sair um barco aí do Quadro, onde hoje é a ponte metálica [Juscelino Kubitschek], onde os canos atravessavam. O barco vai pegar o Hélio Cury lá no [bairro] Aeroporto (Velho). Então você vai nesse barco. E depois vem o pessoal aí e vai ficar tudo acertado.
Eu disse pro Zé Augusto: então você diz para eles, que lá na minha casa, no quintal da minha casa, depois da Gameleira, quando o batelão alugado vier, eu dou três sinais de lanterna e eles me encontram.
Quando paramos no Aeroporto Velho, eu estava disfarçado com um chapéu velho e peguei o ferro para ancorar o barco. Enfiei o ferro no barranco para subir atrás do Hélio.
Foi quando o cara disse: “Pode parar aí! Está preso”. No que eu olhei, tinha um negão com uma metralhadora apontada pra mim. Era um sargento, que até depois virou meu amigo. Ainda tentei retirar o ferro e voltar pro barco, mas ele disse: “Para se não eu atiro, hein! Tá todo mundo preso aí”.
O soldado me reconheceu: “Este aí é o Ariosto, que nós estamos atrás”. E o Hélio Cury foi preso por volta da meia-noite.
Já o Adherbal, lá na Companhia, dois dias depois foi solto. Ele era de extrema direita. O Adherbal veio pra cá [para o Acre] com a minha anuência. E o pessoal de esquerda no Rio de Janeiro ainda me dizia olha: não leve esse camarada que ele é direita aqui”.
Cinquenta dias na palmatória para confessar suposto ‘plano de comunização’
Em 2020, Ariosto Miguéis, então aos 83 anos, em entrevista ao jornalista Tião Maia, desta ContilNet, narrou como foi a sua experiência no cárcere por 50 dias. Leia o texto:
“Embora não tenha experimentado uma tal coroa de arame farpado, Ariosto levou um sem número de “bolos’ nas mãos, com a palmatória. Quem lhe aplicava o castigo era um militar baixinho, de nome Monteiro, que queria fazê-lo confessar o envolvimento do governador José Augusto de Araújo no plano de “comunização” do país, do que era acusado o presidente deposto João Goulart e seus aliados. De Ariosto, a cada “bolada” com a palmatória nas mãos, o máximo que o militar ouvia era um palavrão”.
– Filho da puta! — eu dizia, com os dentes trincados, pela dor, revela Ariosto Migueis. Ele não sabe dizer se Hélio Cury e Adherbal foram também torturados com os instrumentos.
Do outro lado da sala, surgem gritos: era o advogado Adherbal Maximiano, já preso, jurando inocência e até apreço ao novo regime. E era verdade: no Rio de Janeiro — embora paraense -, onde vivia e lá travara contato com o futuro governador José Augusto de Araújo. Ele vivia encrencando com o pessoal de esquerda e não escondia sua simpatia pelo integralista Plínio Salgado, que dias antes, dirigindo a TFP (Tradição, Família e Prosperidade), organização de extrema direita, patrocinara um evento de apoio aos militares, a “Marcha pela Liberdade”.
Adherbal Correa, que chegou a ser presidente da Ordem dos Advogados do Brasil seção Acre, por quase 40 anos, morreu, aos 81 anos de idade, em 2018, e dizia ter sido torturado naqueles dias em que ficara preso no quartel do Exército. “Até mijaram na minha cabeça”, contou, certa vez, na redação do Jornal O Rio Branco, onde era colunista social e assinava a coluna “Status” sob o pseudônimo de Max.
O fato é que, 50 dias depois, Ariosto Miguéis é colocado em liberdade e foge para o Rio de Janeiro, onde vai encontrar Zumba, uma dançarina natural de Santa Catarina, filha de alemão, cuja irmã namorava o deputado Geraldo Farias, cassado e foragido num apartamento clandestino. Um dia, o ex-deputado o adverte: “vão te pegar aqui no Rio, eu tenho as informações”, disse o amigo.
Nova fuga. Desta vez para Brasília, ali o fugitivo vai contar com o apoio do então deputado federal José Ruy da Silveira Lino, muito respeitado apesar de suas ligações com o governo anterior — era amigo de João Goulart e foi governador do Acre na transição de território para Estado, por alguns meses. “Fui morar num sítio, de um amigo dele, nos arredores de Brasília. Mas logo começaram a surgir informações de que eu estava na lista dos que seriam eliminados no país, numa época em que diziam que jogavam presos de aviões no mar e em áreas isoladas. Fugi para Portugal”, conta Ariosto.
Ele não nega que sobreviveu graças à ajuda de um parente, um militar de sobrenome Pires, o qual nem conhecia, que manobrou de forma a que ele fosse solto e conseguisse a fuga para a Europa. Hoje, o ex-deputado vê o país com tristeza, principalmente com as tentativas de se comemorar um período e um golpe que tantos dissabores trouxe ao país.
Mas, como velho político, Miguéis é um otimista. “O que me conforta é saber que não é o conjunto dos militares que querem comemorar aquelas atrocidades. É um pequeno grupo que, infelizmente, chegou ao poder, mas os verdadeiros militares continuam constitucionalistas e nunca atenderam aos apelos dos que querem um novo golpe. Ainda tenho esperanças no meu país”, diz.” (Por Tião Maia/Contilnet)
Sentença condenatória do Exército vitimiza seringalistas e execra seringueiros
Belém, 3 de novembro de 1996.
(…) O denunciado Ariosto Pires Miguéis, como delegado da Superintendência da Política Agrária no Acre, Supra-Acre, é o principal responsável pelo clima de agitação que ocorreu naquele Estado, incitando a luta de classes e lançando seringueiros contra seringalistas, tudo sob o falso pretexto da reforma agrária.
O aviso-convite de fls 29, que mandou imprimir e que o fez distribuir largamente, apresenta conteúdo de caracter tendencioso em congregar os trabalhadores rurais para aquela luta de classes. Na oportunidade da reunião marcada nesse aviso-convite, fez o inflamado pronunciamento a que se refere a testemunha Waldemar de Souza Corgo, às fls. 111, “com palavras ofensivas à classe dos seringalistas, incitando os seringueiros a não obedecerem mais seus patrões, não mais lhes entregando seus produtos e não mais lhes pagando as rendas, pois as terras iam ser distribuídas a êles, seringueiros”, acrescentando ainda que “a reforma agrária teria de ser feita no Acre, embora fosse na bala”. As declarações dessa testemunha foram confirmadas na fase judicial, conforme se vê de fls. 498.
Por outro lado, menciona a testemunha Armando Tavares Pereira, às fls. 150 e confirmadas às fls. 498 verso que “a partir dessa reunião, as relações entre seringalistas e seringueiros se tornaram difíceis, pois, os seguidores diziam abertamente que nada tinham mais a prestar contas com seus seus patrões”.
A atuação delituosa de Ariosto Pires Miguéis foi seguida de perto pelo também denunciado Demóstenes Coelho de Moura, que naquela mesma reunião de instalação do Sindicato do Trabalhador Rural de Rio Branco, fez também violento pronunciamento, nos mesmos moldes e com o mesmo intuito utilizado por Arioso (fls. 106, 11 e 150).
Como consequência desse incitamento de seringueiros contra seringalistas, começaram logo a surgir invasões de seringais, fazendo com que os prejudicados procurassem a Justiça para garantia de suas propriedades. Foi justamente o denunciado Demóstenes Coelho de Moura que, à frente os colonos, procurava afrontar o cumprimento das decisões da Justiça na execução da garantia dada aos proprietários contra os invasores (fls. 110 a 497). (…)
Fugir para a Bolívia e juntar-se a seguidores de Che Guevara era a opção
A relação amistosa com movimentos de esquerda bolivianos fazia do país vizinho, a Bolívia, um escape natural para qualquer ameaça em território brasileiro aos militantes de esquerda no Acre.
Na época, os serviços de inteligência davam como certa a presença de Ernesto Guevara de la Serna, o Che Guevara, nos altiplanos de Cochabamba. Considerado um revolucionário marxista, o médico também era rotulado de guerrilheiro e tornou-se símbolo da Revolução Cubana.
Portanto, causava preocupação, sendo quase uma paranóia para os militares, a presença dele tão perto do estado, sobretudo, porque os agentes de inteligência já teriam anotado em seus blocos de bolso que Che teria feito incursões também na Amazônia boliviana, chegando a se abastecer no Acre.
No entanto, a parte mais real e consistente disso tudo tem a ver com a amizade alimentada pelo ex-governador José Augusto, pelo sociólogo Hélio Kury e por Ariosto Miguéis com Eliseo Aguilar Alvarez, o ‘Palomito’, que para a Justiça Militar é classificado como “chefe comunista boliviano que costumava receber emissários recomendados” por Hélio Koury, do Acre, na Bolívia.
Como já mencionou no seu relato da tentativa de fuga, Ariosto Miguéis afirma que José Augusto o recomendou ir de encontro a Palomito na Bolívia, fugindo para a fronteira, transcrito novamente aqui.
“Aí, chego no palácio e o José Augusto diz: “Olha, Ariosto, se eu fosse você eu ia pra Brasileia, que lá em Brasileia você vai encontrar apoio, e tal”, com o pessoal do sindicato lá da Bolívia.
O Palomito era a grande liderança lá. E vai sair um barco aí do Quadro, onde hoje é a ponte metálica [Juscelino Kubitschek], onde os canos atravessavam. O barco vai pegar o Helio Cury lá no [bairro] Aeroporto (Velho). Então você vai nesse barco. E depois vem o pessoal aí e vai ficar tudo acertado”.
Movimento de Cultura e artigo de jornal custaram caro para Hélio Kury e Lourival do Nascimento
Trecho das alegações finais do Conselho Permanente de Justiça para, ao final, condenar os réus no dia 3 de novembro de 1966:
(…) Também pela carta de fls. 69, assinada por quem se diz MARCUS, evidencia-se que Hélio César Koury estava integrado no plano de agitação de setores educacionais e que, para isso, segundo o signatário daquela carta “uma das coisas que estamos fazendo se chama Fundo Nacional de Cultura popular e foi criado com o objetivo de ASSISTIR aos movimentos de alfabetização e cultura popular já existentes”.
De fato, seguindo a orientação dessa carta, o denunciado Hélio César Kury fundou o movimento de cultura popular do Acre, ao mesmo tempo em que disseminava a alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire, de intenções reconhecidamente agitadoras e para o aprendizado daquele método, diz ter realizado uma viagem ao Nordeste. (fls. 56)
Fazia apologia da implantação do regime comunista no Brasil e procurava doutrinar elementos para isso, como ocorreu com José Francisco dos Santos, conforme se vê das declarações dêste às fls. 148 e fls. 500, fato que foi confirmado pelo acusado José Moreira Alencar. (…)
(*Nota: José Francisco dos Santos é o cabo do Exército mencionado no início desta reportagem, que delatou João Borburema e Hélio Kury quando estes dois promoveram reunião na oficina elétrica do Borburema, e na ocasião, distribuíam livros considerados subversivos)
Discriminação na imprensa local
[…] A prova documental constante dos autos deixa bem prestativa a responsabilidade criminal do denunciado Lourival Messias do Nascimento, que fazia ostensiva pregação da subversão da ordem política e social do país mediante a implantação do socialismo, tal como se vê do rodapé do jornal “VANGUARDA”, do qual era Diretor Responsável (fls. 119)
Por outro lado, ainda por meio da imprensa, incitava a luta de classes, fazendo discriminação entre rico e pobres, empregados e empregadores, operários e patrões, conforme se vê da publicação de fls. 117, sob o tendicionso título “Os Ricos Fazem Greve?”.
Para saber mais sobre os relatórios secretos da ditadura
Algumas informações de inteligência dos ‘arapongas’ brasileiros sobre a situação do Acre na ditadura militar e a movimentação de pessoas investigadas na área de fronteira, durante o regime, podem ser encontradas no Serviço de Informação da Aeronáutica, o Sisa, por meio do Arquivo Nacional na internet. A parceria do Sisa e Arquivo Nacional é feita com o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica, no endereço https://dibrarq.arquivonacional.gov.br/index.php/centro-de-informacoes-de-seguranca-da-aeronautica-1981.