Dia Mundial da Água: crise hídrica em Rio Branco é gargalo grande para o novo prefeito em 2025

ContilNet traz nesta sexta-feira (22), um diagnóstico do maior problema da atualidade para os mais de 360 mil moradores da capital: o aumento da crise climática na vida dos rio-branquenses

Numa era em que bilhões de terabytes de informações circulam todos os dias pela internet e sondas espaciais são enviadas a milhões de quilômetros espaço afora, aqui embaixo, em plena selva amazônica entrecortada por rios e igarapés, moradores de Rio Branco, às margens do Rio Acre, vivem um dilema cujo cerne é se essa grande artéria que singra as florestas até chegar à capital está mesmo morrendo por falta de políticas de conservação ou se é resultado dos impactos da crise no clima que cada vez mais se acentua em todo o planeta.

No Dia Mundial da Água, celebrado nesta sexta-feira (22), ContilNet traça um panorama sobre as dificuldades de se viver quase sem água numa região em que teoricamente, ela deveria ser abundante, sobretudo, porque tem um dos maiores aquíferos da Amazônia.

ContilNet traça um panorama sobre as dificuldades de se viver quase sem água numa região em que teoricamente, ela deveria ser abundante/Foto: Juan Diaz/ContilNet

De depoimentos de pesquisadores a gestores e ambientalistas, eis um diagnóstico de um problema que se agrava a cada dia – seja pela falta de organização do poder público, seja pelo crescimento desordenado da cidade, seja pela crise climática, pela desorganização na captação e no abastecimento ou pela insensibilidade dos próprios consumidores no desperdício de água e inadimplência com a conta.

Foram consultados relatórios técnicos e obras históricas mostrando, por exemplo, que desde os anos 1900, a estiagem prolongada do Rio Acre já preocupava os administradores da época. Entre eles, acredite, até o personagem principal da Revolução Acreana que tomou o estado da Bolívia para o Brasil, o gaúcho José Plácido de Castro.

Em um de documentos quando então prefeito interino do Alto Acre, o coronel Plácido de Castro demonstrou esforço para sensibilizar o governo federal à época, apresentando ao ministro da Justiça justificativas que promovessem melhorias na calha do rio. O ofício foi publicado na íntegra pelo irmão Genesco de Castro na obra ‘O Estado Independente do Acer e J. Plácido de Castro’.

O Rio Acre é um dos mananciais mais importantes do estado/Foto: Juan Diaz/ContilNet

Na lista de carência de obras públicas no Alto Acre se incluía, por exemplo, a desobstrução do leito do rio, segundo o qual ele dizia estar “interrompido por enormes madeiros, pedras e embarcações naufragadas”. Pedia ainda a “abertura de caminhos terrestres para facilitar não só as comunicações entre diversos pontos do departamento, durante o tempo de estiagem, mas também a entrada de gado vaccum procedente da Bolívia”. (Leia o texto na íntegra mais abaixo)

Voltando aos dias de hoje, o desapontamento, em menos de um ano, de milhares de famílias depois de uma estiagem severa e de duas inundações colossais evidencia uma mudança climática que tende a impactar cada vez mais os acreanos. Trata-se de um desafio para os novos prefeitos que serão eleitos neste pleito de 2024, em boa parte dos 22 municípios acreanos.

A capital castigada: plano de redução e adaptação ao clima nunca saiu do papel

As cenas lastimáveis de pessoas, todos os anos, sendo socorridas em barcos transportando eletrodomésticos para abrigos e perdendo colchões e móveis nas inundações são reflexo de um conjunto de fatores que envolvem, sobretudo, falta de vontade do poder público, dificuldades financeiras e estruturais e entraves burocráticos que impedem de estancar o problema em definitivo.

O velho ditado acreano de que ‘aqui, alagação é igual a Carnaval: todo ano tem’ encontra respaldo na lentidão com que as instituições públicas tratam do tema ou sequer tratam.

Enchente em 2024 foi a segunda maior e considerada o maior desastre ambiental do Acre/Foto: Juan Diaz/ContilNet

Quatro anos atrás, em 2020, Rio Branco ganhou um documento importante: o Plano Municipal de Mitigação e Adaptação às Mudanças do Clima, desenvolvido pela prefeitura em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia e com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, numa iniciativa dos Governos Locais Pela Sustentabilidade para América do Sul, o ICLEI.

No entanto, apesar do planejamento detalhado e do cronograma estabelecido para alcançar 100% dos objetivos acordados até 2040, nada de concreto se fez até agora para que ações definitivas começassem a ser executadas. O plano está engavetado, enquanto crises climáticas não deixam de botar a cara de fora.

Secas e inundações cada vez mais severas

Neste ano de 2024, pelo menos 23 mil pessoas foram desabrigadas ou desalojadas no Acre – a primeira situação é quando elas precisam de apoio em abrigos coletivos e a segunda, quando são acomodadas na casa de amigos e parentes. Das 22 cidades, 17 decretaram situação de emergência, com o transbordamento de rios e igarapés. Em Rio Branco, nos abrigos da Prefeitura de Rio Branco, no Parque de Exposições e nas escolas, foram mais de 4,3 mil pessoas desabrigadas, segundo a Defesa Civil Municipal.

Enquanto isso, secas e inundações cada vez mais severas serão uma tendência a partir de agora, num ciclo de destruição e de gastos paliativos milionários e milhares de acreanos ancorados por planos de contingências provisórios e limitados.

Seca extrema registrada em 2023/Foto: Juan Diaz/ContilNet

Na última quarta-feira (20), a reportagem da ContilNet contatou Enoque Pereira, diretor-presidente do Serviço de Água e Esgoto de Rio Branco, o Saerb, para saber o que há de concreto sobre o plano. Ele consentiu em conceder entrevista, recebeu as perguntas via WhatsApp, mas não respondeu aos questionamentos até a tarde de quinta-feira (21). O espaço, no entanto, segue aberto para o gestor do Saerb.

Na maior cidade do estado, o Rio Acre agoniza, principalmente por causa das toneladas de esgoto e lixo despejados todos os dias no seu leito. Se no período das cheias, o gracejo do boto cor-de-rosa ou da arraia gigante são atrações à parte para curiosos no Calçadão da Gameleira e na praça do Novo Mercado Velho, na estiagem, o clima é de desolação, quando a água fica turva, fétida e de cores bege e esverdeada.

Enchente em 2024 em Rio Branco/Foto: Juan Diaz/ContilNet

Desde a boca do Riozinho do Rola até a região do Panorama, a 5 quilômetros de Rio Branco em descida, observam-se sacos plásticos e garrafas pet enganchados nas canaranas e nas demais vegetações típicas de beira de rio. O lixo é produzido, em sua maioria, por banhistas que ocupam as praias por diversão na época do verão.

Na capital, mais de 190 mil não têm acesso à água potável

Às vésperas desta sexta-feira (22), o Instituto Trata Brasil, junto à empresa GO Associados, soltou a 16ª edição do Relatório Ranking do Saneamento, que se baseia em dados de 2022 do Ministério da Cidade, mostrando que Rio Branco está na lista dos 10 municípios com os piores serviços de saneamento básico, de uma relação de 100.

No país, a falta de acesso à água potável atinge 32 milhões de brasileiros/Foto: Juan Diaz/ContilNet

Ainda de acordo com o levantamento do Trata Brasil, o acesso à água potável também é insuficiente, alcançando apenas 53,50% da população. Pelo censo demográfico do IBGE de 2022, a capital acreana tem 366.756 moradores. Portanto, ao menos 195 mil pessoas não têm água tratada diretamente nas torneiras, considerando os índices do Trata Brasil e do Ministério das Cidades. Sobre o indicador de acesso à coleta de esgoto, aparece em 93º lugar, com 20,67%.

No país, a falta de acesso à água potável atinge 32 milhões de brasileiros. Mais de 90 milhões não têm acesso à coleta de esgoto.

Aquífero poderia fornecer água para 800 mil rio-branquenses por ano

Plataformas de bombeamento quebrando na inundação, água faltando nas secas (e também nas cheias), vazamentos nas adutoras, gatos na rede, água que não chega nos reservatórios dos bairros e o constante desperdício por parte de consumidores insensatos são os principais gargalos hoje do sistema.

Em outubro de 2012, o governo do Estado do Acre, por meio do Departamento de Pavimentação e Saneamento de Rio Branco, o Depasa, contratou uma empresa para um estudo de viabilidade de exploração do Aquífero Rio Branco, com capacidade para abastecer cerca de 800 mil pessoas todos os anos. O número é maior numa proporção de mais do que o dobro da quantidade de moradores relatados pelo Censo do IBGE/2022 (são 366.756 moradores).

Na época, o Depasa assegurava que, com a exploração do aquífero, a tarifa de água poderia ter uma redução significativa de mais de 40%.

Desde então, não se ouviu mais falar sobre isso até esta semana, quando o tema retornou à baila, dessa vez com o prefeito Tião Bocalom anunciando novos estudos. O objetivo é ‘desafogar’, por assim dizer, o trabalho de captação e abastecimento, hoje voltado exclusivamente para o rio Acre, que já não suporta mais a demanda por água, com o crescimento da cidade e os poucos recursos investidos.

Estiagem afeta a fauna de forma severa nas cabeceiras

Se há décadas, piranambu, mandis e filhotes eram abundantes nas cabeceiras do Rio Acre, o período de seca extrema de 2023, que teve seu ápice em outubro do mesmo ano, escasseou as espécies em Assis Brasil (cidade a 340 quilômetros de Rio Branco, na fronteira com a Bolívia e o Peru). O município é o primeiro do estado a ser banhado pelas águas do rio, no seu percurso de mais de mil quilômetros até desembocar no Purus, em Boca do Acre, Amazonas.

O período de seca extrema de 2023, que teve seu ápice em outubro do mesmo ano, escasseou as espécies de peixes/Foto: Juan Diaz/ContilNet

Naquela região, os relatos são de que os poucos peixes que povoam o lugar continuam morrendo na estiagem, provavelmente pela falta de oxigênio. Há evidências de mortandade, por exemplo, no igarapé São Pedro, localizado a duas horas de Assis Brasil, em descida pelo rio Acre de batelão.

Ali, tanto o São Pedro quanto o rio Acre, em períodos de intenso calor, viram uma fina lâmina de somente uns dois ou três centímetros, com bancos de areia praticamente soterrando a calha.

A bióloga Nadir de Souza Dantas, que colaborou com o estudo ‘Expedição Rio Acre 2016’, explica que um rio segue a mesma dinâmica encontrada no sangue do corpo humano. “Ele troca oxigênio e recolhe agentes indesejáveis das células. Então, quanto maior é a drenagem das águas de um rio, infelizmente maior também será a diversidade de fatores negativos interferindo na qualidade das águas superficiais”, ressalta a cientista.

O Rio Acre está entre os chamados ‘rios nervosos’, segundo especialistas consultados por ContilNet. Isso se deve por causa dos volumes das chuvas amazônicas e de suas características físicas. Com relação a este último fator, estão incluídos o uso do solo, a sua geologia e a área de captação da bacia.

Rio Acre durante cheia em 2024/Foto: Juan Diaz/ContilNet

O estudo ‘Expedição Rio Acre 2016’ revela que o escoamento é rápido, sobretudo, quando acontece uma inundação, à medida que a calha principal transborda. Por outro lado, no período da vazante, o rio vem batendo recordes de baixo nível, chegando a comprometer os principais usos de suas águas, entre os quais o abastecimento de Rio Branco.

Os dois extremos – seca e inundação – como foi visto, recentemente, em menos de um ano, também aconteceu em 2015, quando no mesmo período hidrológico, o rio superou a marca dos 18 metros na capital, baixando a níveis de alerta, na vazante.

“O romantismo não salvará o rio Acre”

Para o professor Ecio Rodrigues, da Universidade Federal do Acre, especialista em Manejo Florestal e doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília, “alarmar a população diante da ameaça de racionamento no abastecimento d’água, insuflando um suposto senso de responsabilidade em relação à necessidade de economizar água, como se isso representasse até mesmo compromisso cívico ou patriótico, não ajuda na discussão para encontrar soluções”.

Conforme o cientista, “carimbar com a denominação errada de ‘educação ambiental’ a participação de crianças em atividades como recolher lixo e plantar mudinhas no barranco, motivadas por professores e patrocinadas pelo poder público com o objetivo de ocupar os noticiários também não ajuda na discussão para encontrar soluções”.

“O romantismo não salvará o rio Acre”, disse o especialista/Foto: Juan Diaz/ContilNet

Na sua opinião, o romantismo não cabe na salvação do rio Acre. “E se o romantismo não resolve mesmo, o que se deve fazer em contextos como o atual, quando a crise ecológica é em razão do desequilíbrio do ciclo hidrológico de toda a bacia do rio Acre? A resposta é: “Compreender que esse problema não se resume à quantidade de água que corre – para menos ou para mais – no leito do rio, mas sim de fatores como o tamanho do desmatamento”.

A solução, Rodrigues responde com outro questionamento: “O que fazer para estabilizar o ciclo hidrológico da bacia hidrográfica do rio Acre é a pergunta certa a ser feita”.

Relatos de Plácido de Castro ao governo federal apontam perigos com obstáculos

Sobre a Viação Fluvial

Durante cinco meses do anno é o rio Acre perfeitamente navegável, sendo fácil o transito ás embarcações a vapor dos mais variados tamanho; não assim, entretanto no período de estiagem, sempre muito longo, durante o qual a viação fluvial se torna impraticavel mesmo ás lanchas de pequeno calado, e algumas vezes, como aconteceu este anno, até as canoas. Tão grande dificuldade de navegação não é somente devida á falta de agua, como se poderá suppôr, senão aos múltiplos obstáculos creados ora por enormes madeiros, ora por pedras e torrões (rochas fiaveis), ora, finalmente, por vapores e lanchas naufragados.

Remover semelhantes embaraços á navegação do rio, facilitando dest’arte ao commercio de toda a região os meios de exportação aos seus produtos e importação de generos de que carece, é medida que está a impor-se com urgências causas inadiaveis.

Conhecemos e citamos as seguintes embarcações naufragadas: em Caquetá, a lancha Xapuri; no Paraizo, o vapor Cidade de Marzagão; na bocca do igarapé da Judia, a lanhca Teffé, na Glória, a grande lancha Radilinda, em Campina, o vapor Carlos, em Etrerios, o vapor Aripuana; na Prainha, o vapor Elias e sobre este as lanchas Dileta e Pato. Esses pontos, e outros de que não nos lembramos, constituem passagens perigosissimas onde não raro se dão desastres lamentaveis, como ainda pouco tempo aconteceu com os vapores Cidade do Pará e Índio do Brasil, este último salvo do perigo que o ameaçava unicamente devido á grande perícia do seu comandante.

Aproveitamos a oportunidade que se nos oferece para fazer ver a V. Exª que esta prefeitura não possue meio algum de transporte, seja terrestre seja fluvial o que acarreta para seus interesses grandes prejuízos. Avalie V. Exª que quando se faz mister seguir uma diligencia para qualquer ponto do departamento, tem a prefeitura de esperar por uma embarcação, e se há urgencia na medida, vê-se ella obrigada a fretar uma lancha com o que depende no mínimo 500$000 diários.

Melhor e mais proveitoso seria que a prefeitura possuísse uma lancha apropriada para a navegação deste rio.

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