A jovem indígena Corima Kulina saiu de sua aldeia na região de Envira, no interior do Amazonas, para fazer um parto de risco em um hospital de Manaus. Ela viajou acompanhada do marido, Tadeo Kulina, 33 anos. No penúltimo domingo (18/2), ela voltou à terra natal de barco, com o filho recém-nascido no colo, mas com o marido em um caixão embalado com plástico-bolha.
Enquanto Corima e o bebê se recuperavam do parto na maternidade Ana Braga, em Manaus, Tadeo desapareceu na cidade e foi espancado até a morte com golpes na cabeça. Ele morreu no Hospital Estadual João Lúcio como indigente e só foi identificado no IML oito dias depois. O hospital e a maternidade ficam a apenas 850 metros de distância.
Segundo o boletim de ocorrência, Tadeo chegou ao hospital “escoltado” por policiais. O documento não identifica os policiais nem explica o motivo do indígena da etnia Madiha Kulina ter sido encaminhado para a unidade de saúde por policiais e não por uma equipe médica.
Tadeo morreu no começo da madrugada de 7 de fevereiro, um dia antes de completar 34 anos, e só teve a identidade reconhecida no IML em 15 de fevereiro. A ocorrência com poucos detalhes só foi escrita em 16 de fevereiro, assim como o pedido para realizar exames periciais no cadáver.
De acordo com líderes de organizações indígenas, o rosto de Tadeo estava totalmente desfigurado. Entre as causas da morte na certidão de óbito estão traumatismo craniano por instrumento contundente, fratura na base do crânio e hematoma subdural, que é o acúmulo de sangue entre o cérebro e o revestimento externo.
Além do recém-nascido, Tadeo deixou três filhos entre 5 e 15 anos. Ele foi enterrado na Aldeia Macapá, localizada no Rio Acuraua, município de Envira (AM). Corima decidiu deixar a aldeia Foz do Acuraua, onde vivia com o marido, e se mudou para onde ele está sepultado.
Falta de investigação
A morte de Tadeo Kulina é cercada de mistérios, e as autoridades do Amazonas não repassam informações básicas sobre o caso, alegando sigilo da investigação. O Ministério Público Federal (MPF) informou que o MP estadual foi designado para investigar o caso, mas não havia nenhum procedimento instaurado até a tarde de quinta-feira (29/2), mais de 20 dias após o crime.
O delegado que assina o pedido de exame pericial no cadáver, Gérson Corrêa, sequer se lembrava do caso, quando questionado pela reportagem por telefone.
A Polícia Civil alegou que informações não poderão ser repassadas para não atrapalhar o andamento das diligências, e não quis dizer o nome do delegado responsável pelo inquérito, apenas que a investigação seria por meio da Delegacia Especializada em Homicídios e Sequestros (DEHS).
Desaparecimento e omissão
O boletim de ocorrência informando sobre o desaparecimento de Tadeo Kulina foi feito no fim da tarde de 7 de fevereiro no 19º Distrito Integrado de Polícia de Manaus. A família dele não sabia, mas Tadeo estava morto desde a madrugada.
Uma funcionária da Casa de Saúde Indígena (Casai), a enfermeira Saray Lasmar, ligada ao Ministério da Saúde, foi quem fez o registro. Isso porque a esposa de Tadeo não fala português. O próprio Tadeo falava pouco português.
A Frente Amazônia de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (FAMDDI) denunciou que, mesmo sendo indígenas de recente contato e que não conheciam Manaus, a família ficou sozinha na maternidade. Lideranças indígenas da região de Envira lamentam que só foram informados sobre o desaparecimento em 13 de fevereiro.
Nesse período em que a esposa e o bebê estavam internados, Tadeo teria tido um aparente surto psicótico e deixado a maternidade. A família chegou a Manaus em 1º de fevereiro, e o parto aconteceu no dia seguinte.
Visões e perseguição
Em nota, o Ministério da Saúde informou que o transporte da paciente grávida foi feito via Complexo Regulador do Estado do Amazonas e que Tadeo Kulina era considerado o acompanhante.
Além disso, segundo a pasta, equipes da Saúde Indígena realizaram visitas à maternidade, sendo uma delas em 6 de fevereiro pela enfermeira Saray, a mesma que fez o boletim de ocorrência por desaparecimento. Por volta das 12h do dia seguinte, a enfermeira foi informada de que Tadeo havia desaparecido.
“De acordo com o serviço social da unidade hospitalar, Tadeo Kulina queria sair da maternidade com a esposa e o RN (recém-nascido), que se recuperavam, e que também estava tendo visões de pessoas o perseguindo, e, segundo ele, a polícia queria prendê-lo”, escreveu a Saúde em trecho da nota.
O Ministério da Saúde pontuou ainda que servidores da Saúde Indígena chegaram a auxiliar as buscas por Tadeo nos arredores do hospital.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Saúde do Amazonas, mas não houve retorno até a publicação da reportagem.
Veja a nota completa do Ministério da Saúde:
O Ministério da Saúde informa que o transporte de pacientes que estão em hospitais não é realizado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Médio Rio Solimões e Afluentes (DSEI MRSA) e sim pelo Estado.
A paciente, que foi atendida por uma unidade de saúde do Estado, foi transferida pelo Estado e internada em unidade hospitalar, a Maternidade Ana Braga de Manaus (AM). O transporte foi realizado via Tratamento Fora do Domícilio (TFD), da Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (SES-AM), diretamente pelo hospital de referência do município, anteriormente citada. O deslocamento foi realizado via SISTER, um sistema do Complexo Regulador do Estado do Amazonas responsável pelo gerenciamento de pacientes.
Sendo assim, o acompanhamento de um profissional da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) não era possível, visto que a paciente já tinha um acompanhante, o indígena Tadeo Kulina, e o seu processo de remoção para Manaus foi realizado via SISTER.
No entanto, a equipe técnica do DSEI MRSA, que atua no CASAI Manaus, foi ao hospital visitar de acompanhamento da paciente em várias ocasiões. No dia 2 de fevereiro, o serviço social da maternidade negou a visita devido à paciente ter realizado a cirurgia cesariana e estava na sala de recuperação pós-anestésica.
Em 5 de fevereiro, o serviço social da unidade hospitalar solicitou que a equipe do DSEI enviasse uma testemunha para o registro do recém-nascido pelo genitor, o indígena Tadeo Kulina. Sendo assim, a enfermeira Saray Lasmar realizou visita à paciente e seu recém-nascido no dia 6 de fevereiro. De acordo com o serviço social da unidade hospitalar, Tadeo Kulina queria sair da maternidade com a esposa e o RN, que se recuperavam, e que também estava tendo visões de pessoas o perseguindo, e segundo ele, a polícia queria prendê-lo.
No dia 7 de fevereiro, às 12h52, a Maternidade Ana Braga entrou em contato com o CASAI Manaus informando que a paciente estava sem acompanhamento e, às 14h30, a equipe do DSEI MRSA foi a unidade de saúde e confirmou que Tadeo Kulina havia deixado o local desde o dia anterior, após a visita da enfermeira Saray Lasmar.
O DSEI MRSA realizou, por conta própria, buscas pelo indígena pelos arredores da unidade de saúde, ruas e bairros da redondeza, mas não obteve êxito. Em seguida, a equipe foi ao 19º Distrito Integrado de Polícia de Manaus (AM) para registrar o Boletim de Ocorrência (BO) do desaparecimento do indígena Tadeo Kulina. No dia 9 de fevereiro, a equipe do DSEI continuou as buscas.
É importante ressaltar que a equipe da DSEI MRSA foi comunicada quase 24h após o ocorrido.