Sabe-se que enquanto manifestação artística, o teatro existe desde a Antiguidade. Datado desde o teatro de sombras japonês e na Grécia, esta forma de expressão adentrou ao longo dos séculos e documentando o sentimento de vários povos e populações nos palcos, ruas e espaços públicos. No Brasil, estima-se que com o objetivo de catequizar povos indígenas, os jesuítas foram os vanguardas do teatro no país.
Porém, com a chegada de Dom Pedro I, um decreto para a criação dos teatros foi feito e este tipo de arte se alastrou. Até mesmo, criticando os colonizadores que a popularizaram em território brasileiro. Hoje o teatro brasileiro é forte e até reconhecido internacionalmente. No Acre, o teatro ganha cor, corpos e discursos diariamente através de artistas que embebedam os palcos com sua força.
Para celebrar o Dia Mundial do Teatro, que acontece na próxima quinta (27), Brenn Souza, 27, e Écio Rogério da Cunha, 59, conversaram com o ContilNet sobre as glórias, histórias e sonhos dentro do ofício da atuação em Rio Branco.
O (pulo do) “Gato”
Écio Rogério da Cunha é professor do curso de teatro da Universidade Federal do Acre (Ufac) e desenvolveu o roteiro da peça “O Gato” em 2014. A peça, que foi apresentada em fevereiro deste ano na Ufac, é fruto do seu grupo de teatro, o Grupo Macaco Prego da Macaca Colorida. Com fortes ligações no teatro experimental, o grupo também escreveu “O Organismo” e “Blond: O Vampiro Banguela”.
“É uma dramaturgia que está pautada no fim de relacionamento em que o Roberto, o sujeito mais velho, é que tem problemas emocionais fortes e não entende que André não quer mais. Então é uma relação bastante tóxica, onde ele vai manter essa relação a força. De modo que o André tenta escapulir e o Roberto vai criando artimanhas e mecanismos para atrair para o seu convívio”, explica Cunha sobre o desenvolvimento da peça.
Écio Rogério começou a fazer música e teatro em 1979, aos 14 anos. Formado em música pela Universidade de Brasília (UnB), Cunha se desenvolveu de forma empírica no teatro, escrevendo e desenvolvendo dramaturgias sobre sua vivência como homem gay.
Sobre estes corpos e sua ocupação em espaços de teatro aqui em Rio Branco, Cunha afirma que:
“Eu acho que este espaço está sendo culpado de forma lenta, mas muito precisa. Ontem, por exemplo, assisti o espetáculo Brenn Souza que trata, basicamente, sobre isso, sobre o silenciamento das pessoas LGBTQIAP+ não somente neste espaço, mas em todos os espaços sociais. Na escola, onde é discriminado, um acesso ao trabalho, que também é discriminado, e no acesso ao ensino superior, que são raros pelo menos no nosso curso [de teatro]”, ressalta.
Brenn Souza, atriz, é a idealizadora e protagonista de “Faces Distópicas”, apresentado na primeira etapa do Festival “Fetac em Cena”, da Federação de Teatro do Acre, que começou na última sexta-feira (22).
As faces distópicas
“Foi e ainda está sendo um experiência incrível, o corpo se encontra êxtase, digerindo o que foi a apresentação do espere Faces Distópicas”, afirma Souza sobre a apresentação do espetáculo.
A peça joga o questionamento: : “O que pode um corpo decodificado estranho? O que permeia uma corpa travesti viva?”. Motivada após o assassinato brutal de Fernanda Machado, uma travesti acreana, morta a pauladas em Minas Gerais, Souza permite que o público entre na corpa de Fernanda, enquanto mantém sua memória viva.
O espetáculo tem concepção e direção de Brenn Souza, codireção e iluminação de Kika Sena, produção de Sara Bicha e sonoplastia de Bia Berkman.
“A arte me atravessa em vários aspectos, sendo uma corpa travesti, a arte vem como uma forma de externar questões e aspectos que, por muitas vezes, não são possíveis de serem ditas fora dos palcos”, reflete Brenn Souza sobre a presença da arte em sua vida fora dos palcos.
“Faces” possui um debate ao final da apresentação que coloca o público para falar sobre a experiência vista através do corpo de Brenn Souza. Como Cunha fala:
“Ela está criando esse conceito e também tentando colocar visível, o sujeito que foi assassinado, no caso a Fernanda, que era uma travesti que trabalhava em Minas Gerais e pelo desprezo pela vida, teve esse fim tão trágico”, afirmou.
Teatro no Acre
Écio Rogério afirma que não consegue viver inteiramente de teatro. Ele vive de ser professor. Algo que reflete bastante a realidade da profissão no Brasil e no Acre, algo agravado pela pandemia. Dependendo de editais, festivais e temporadas. Segundo os entrevistados, se dependessem apenas do teatro, passariam necessidade.
Porém, isso não tira a importância da quinta arte dentro de suas vidas, como afirma Brenn Souza que se abraçou como travesti depois do teatro:
“Tudo na minha vida mudou depois do teatro. Meu processo de transição de gênero ocorreu durante minha ascensão no teatro, através de uma personagem, comecei a compreender e entender que o meu corpo era e é um corpo travesti ocupando o espaço da cena teatral acreana, hackeando o sistema cis hétero imposto sobre nossos corpos desde o nascimento, entendendo que a arte, é uma ferramenta de grande potencial mutação social”, declara.
“Você nunca fala pro dentista: ‘ah, deixa eu ver aqui no seu consultório, faz um conserto dos meus dentes de graça’. Mas, o artista sempre não vão querer pagar, se você está num bar você não vai querer pagar”, afirma Cunha sobre as dificuldades de emprego e pagamento na área.
“A arte é o que ficou, a arte é a solução para todos os problemas do homem”
Os entrevistados acreditam que quando pautas sociais como da LGBTfobia, olhar para pessoas pretas, gordas, indígenas, todas as pessoas que olhamos com olhar de desdém, coloca-se um tijolo na construção contra o preconceito, contra a invisibilidade de pessoas, ditas, fora do padrão.
“Então a mediação que nós estamos fazendo, como artista, é de acesso, de produzir curiosidades e possibilidades. Mas eu penso que é uma forma da gente construir um mundo melhor. Sem arte, você não vive, não existe nenhum agrupamento humano que não tenha se manifestado através da arte. Ou seja, a arte é o que ficou, a arte é a solução para todos os problemas do homem”, finaliza Écio Rogério.