Cantoras e compositoras se cercam apenas de mulheres para novos álbuns

Juliana Amaral e Verônica Ferriani seguem os passos de Teresa Cristina que, desde 2015, procura dar protagonismo às mulheres

Juliana Amaral ouviu de uma das instrumentistas que a acompanham no recém-lançado álbum “Cartas de marear” uma queixa sobre o que vê no meio musical: “Não adianta pôr mulheres no palco e quem estar mandando em tudo ser um homem”.

— A partir de 2017, trabalhar só com homens começou a me incomodar. No meu projeto anterior, “Margens da palavra” (que não virou álbum), já foram só mulheres. A gente não tem que se envergonhar do que fez. Mas não é mais possível fazer como fazia antes — afirma ela.

Erica Navarro, Naloana Lima e Florencia Saraiva, na fileira de cima; e Martinha Soares, Juliana Amaral e Naruna Costa: participantes do álbum “Cartas de marear” — Foto: Divulgação/Marcelo Dacosta

Verônica Ferriani escalou mulheres para mais de 90% das funções de seu álbum duplo “Cochicho no silêncio vira barulho, irmã”. Ela também via “mulheres sendo colocadas para cantar, eventualmente para tocar instrumentos, mas não como protagonistas”.

— No meu disco “Porque a boca fala daquilo do que o coração tá cheio” (de 2013), as músicas eram 11 histórias vividas e contadas por uma mulher, mas não tinha mulher tocando comigo e em nenhuma função. Faço quase um mea culpa. Eu me coloco no mesmo lugar em que coloco a sociedade — diz.

“Gênero não é um ponto para você escolher quem vai tocar no seu disco”, diz Verônica Ferriani: “Espero que, daqui a dez anos, não faça mais sentido mesmo” — Foto: Divulgação/Thais Taverna

“Gênero não é um ponto para você escolher quem vai tocar no seu disco”, diz Verônica Ferriani: “Espero que, daqui a dez anos, não faça mais sentido mesmo” — Foto: Divulgação/Thais Taverna

Sem manifesto

As cantoras e compositoras paulistas são mais duas artistas a entrar nas batalhas identitárias. Acreditam que, se resolveram falar de temas femininos, é melhor que falem as mulheres. Juliana diz que não teve a pretensão de fazer do seu disco um manifesto.

— Meu compromisso inegociável é o de não repetir a lógica colonial. Trabalhei apenas com mulheres e numa busca ativa por mulheres negras — diz ela, referindo-se, por exemplo, à contrabaixista Larissa Oliveira e à trompetista Lua Bernardo. — Sou pessoa política. Para mim, não existe fronteira entre política, poética e ética.

Já Verônica enxerga feições de manifesto em seu novo trabalho.

— Vemos muitas mulheres competentes com menos oportunidades, simplesmente porque não somos habituados a entregar papéis de protagonismo a mulheres — afirma. — É como se nos tivessem ensinado a nos sentir menos seguras quando uma mulher pilota um avião, faz uma cirurgia em nossos filhos e até mesmo quando produz um disco. Este disco é também um manifesto neste sentido: quando contratamos mulheres, mostramos ao mundo que confiamos em nós mesmas.

Ela destaca, porém, que pretende voltar a trabalhar com homens. Deseja que, em breve, opções como a que fez agora não sejam mais necessárias.

— Gênero não é um ponto para você escolher quem vai tocar no seu disco. Isso não faz sentido para mim. E eu espero que, daqui a dez anos, não faça mais sentido mesmo — acredita.

Teresa Cristina e o samba

No caso de Teresa Cristina, ela passou a maior parte da carreira à frente de músicos homens, como os do Grupo Semente. Há nove anos, porém, é acompanhada apenas por mulheres.

— Quando comecei, em 2015, minha intenção era simplesmente dar o merecido espaço para as musicistas — diz. — Por ser uma cantora de samba, um ambiente tão masculino, sei da dificuldade de ocupar esses espaços, mesmo sendo plenamente capacitadas. Agora tenho percebido que as mulheres estão ocupando lugares de protagonismo no samba.

Juliana, de 50 anos, elegeu como motriz de “Cartas de marear” o envelhecimento das mulheres. Já há algum tempo escreve sobre o assunto no Instagram. Antes de gravar o disco, distribuiu os textos para outras compositoras — como Erica Navarro e Thais Nicodemos — e pediu que elas criassem melodias, editando o material como quisessem. Quatro das 16 músicas são só de Juliana.

— É uma pesquisa minha para extrapolar um pouco os limites da canção, mas de modo modesto — explica. — Virou um trabalho colaborativo entre nós. Seria difícil entregar para homens. Sei que meus parceiros, que me conhecem bem, não se sentiriam confortáveis.

O tema principal de Verônica é a maternidade. Ela tem 46 anos e duas filhas, uma de 4 anos, outra de 1 ano e 8 meses. O título do álbum e da primeira faixa, “Cochicho no silêncio vira barulho, irmã”, expressa o desejo de que as mães possam falar mais das dificuldades da maternidade sem que se sintam culpadas, como se gostassem menos dos seus filhos.

Das 20 faixas, 17 são dela. Para interpretá-las ao seu lado, ela convidou, entre outras, Áurea Martins, Mônica Salmaso, Assucena e Alessandra Leão.

— Eu me pergunto por que algo cotidiano e marcante como o impacto da maternidade na vida adulta foi tão pouco abordado nas canções até hoje. Por que eu não consegui pensar em referências diretas, dentro do nosso cancioneiro, para compor esse disco? Por que as canções para ou sobre filhos trazem, ainda, geralmente um aspecto romântico, sem relatar as outras realidades? — diz.

PUBLICIDADE