Inhotim inaugura temporada com trabalho de Grada Kilomba inédito no Brasil

Museu a céu aberto em Brumadinho (MG) também abre coletiva com obras dos artistas Aislan Pankararu, Ana Cláudia Almeida, Castiel Vitorino Brasileiro e Zé Carlos Garcia

Em uma área de 220 metros quadrados, no interior da Galeria Galpão, em Inhotim, museu a céu aberto em Brumadinho (MG), 134 blocos de madeira queimada estão dispostos precisamente, formando uma estrutura que remete à planta de um navio negreiro. Em 18 dos blocos, estão escritos versos de um poema, em letras douradas, em seis idiomas: iorubá, kimbundu, crioulo, português, inglês e árabe. Deslocando-se por entre as toras, o público pode ler versos como “Um barco um porão”, “Uma peça uma vida”, “Uma morte uma dor”, trazendo a referência dos séculos de exploração do trabalho de escravizados trazidos de países africanos por nações europeias para suas colônias na América.

Grada Kilomba em performance na obra ‘O barco’, em Inhotim — Foto: Divulgação/Daniela Paoliello

Uma das obras mais conhecidas da portuguesa Grada Kilomba, a instalação “O barco” (2021) é um dos destaques das exposições programadas em Inhotim este ano, dentro de um novo programa artístico. No último sábado, a instituição mineira inaugurou também a individual “Esconjuro” (2024), do artista mineiro Paulo Nazareth, e a coletiva “Ensaios sobre paisagem”, com trabalhos de Aislan Pankararu, Ana Cláudia Almeida, Castiel Vitorino Brasileiro e Zé Carlos Garcia.

Montado anteriormente em cidades como Lisboa, no MAAT (Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia), e em Londres, no pátio da Somerset House, “O barco” é apresentado pela primeira vez no Brasil, onde a artista, escritora e pesquisadora integrou, no ano passado, a curadoria da 35ª Bienal de Veneza, ao lado do espanhol Manuel Borja-Villel e dos brasileiros Diane Lima e Hélio Menezes. Definido por sua autora como um “objeto vivo”, a instalação teve ativação de um grupo de 14 atores e bailarinos e três músicos, entre portugueses e brasileiros, no final de semana.

A previsão é que Grada e sua equipe realizem outras ações ao longo dos dois anos em que “O barco” ficará em Inhotim, com toda a simbologia de ter atravessado o Atlântico para ser exposto no país que foi o destino da maioria dos homens, mulheres e crianças capturados no continente africano e trazidos à força à América, por mais de três séculos.

— A arquitetura da obra é minuciosa, mostrando como os corpos das pessoas eram acomodados no fundo dos barcos. As peças são baixas porque as pessoas tinham pouco mais de 20 centímetros acima do espaço em que estavam deitadas, enquanto atravessavam o oceano — comentou Grada durante entrevista coletiva realizada na abertura da exposição. — Da mesma forma, para ler o poema, o público também tem de abaixar a cabeça, inclinar o corpo para baixo.

Paulo Nazareth na individual 'Esconjuro' — Foto: Divulgação/Ana Clara Martins

Paulo Nazareth na individual ‘Esconjuro’ — Foto: Divulgação/Ana Clara Martins

A montagem de “O barco” tem curadoria de Júlia Rebouças, diretora artística da instituição mineira, e Marília Loureiro, curadora do Instituto Inhotim. Já a individual “Esconjuro” é assinada por Beatriz Lemos, ex-MAM do Rio e atual curadora coordenadora do Inhotim, e por Lucas Menezes. A mostra de Paulo Nazareth também terá longa duração, dividida em estações, outono e primavera de 2024 e verão e inverno de 2025, e ocupa, além da Galeria Praça, outros pontos do museu. Logo na entrada, foi construída a instalação “Casa de Exu”, pequena edificação de tijolos aparentes, com um sistema que exala o aroma de cachaça. No pátio a obra comissionada “Sambaki II” é formada por uma pilha de bananas feitas de concreto, e a fruta também o levou a plantar um bananal próximo aos limites do jardim botânico local e da mata nativa da propriedade. Ao longo do tempo, a mostra será modificada em “reformas” previstas pelo artista.

— Pensei muito nos funcionários, que estão com as obras todos os dias e cuidam delas, queria que vissem uma exposição que muda ao longo do tempo. Que esse tempo fosse espiralar, como a capoeira ou o movimento que via minha mãe fazendo na panela enquanto cozinhava o angu — diz Nazareth. — Esse tempo também é o do crescimento do bananal, onde também está instalada uma bananeira de bronze, que vai adquirir a coloração verde com a oxidação e logo vai desaparecer atrás das plantas reais que vão crescer em volta dela.

Há dois meses no Inhotim, a ex-curadora chefe do MAM do Rio, Beatriz Lemos, fala sobre o novo momento da instituição mineira:

— Foi importante chegar num momento em que não só a curadoria, mas a estrutura do Inhotim vem sendo repensada. Quando cheguei ao MAM, em 2020, havia um processo parecido. E as novas exposições já mostram isso. O Paulo (Nazareth), por exemplo, é um dos artistas que abriram caminho para o que se pensa hoje como arte contemporânea brasileira, com um marcador forte em termos de geografia, raça, classe.

Escultura de Zé Carlos Garcia diante de obras de Castiel Vitorino Brasileiro, em  coletiva na Galeria Lago — Foto: Divulgação/Ícaro Moreno/Instituto Inhotim

Escultura de Zé Carlos Garcia diante de obras de Castiel Vitorino Brasileiro, em coletiva na Galeria Lago — Foto: Divulgação/Ícaro Moreno/Instituto Inhotim

Na Galeria Lago, a coletiva “Ensaios sobre paisagens”, com curadoria de Douglas de Freitas e Deri Andrade, propõe diálogos entre as obras de diferentes formatos e suportes assinadas por Aislan Pankararu, Ana Cláudia Almeida, Castiel Vitorino Brasileiro e Zé Carlos Garcia.

Presentes na abertura, Pankararu e Garcia comentaram como a interação entre as obras e suas próprias vivências são levadas ao público na exposição. Nascido em Petrolândia (PE) e formado em Medicina em Brasília (DF), Aislan retomou padrões da etnia da qual descende em pinturas feitas sobre couro caprino.

— Trago para o meu trabalho elementos da minha origem, referências do sertão pernambucano e das pinturas corporais dos pankararu. Eu cheguei a clinicar, mas senti muito essa vontade de me expressar através da arte— conta Pankararu.

Sergipano morador do bairro de Santa Teresa, no Rio, Garcia destaca como suas esculturas em madeira e outros materiais orgânicos se conectam também com o ambiente natural do museu:

— As esculturas são feitas com a coleta de espécies invasoras da Mata Atlântica, onde eu replanto espécies nativas. Isso leva a pensar nessas muitas paisagens construídas, como a do jardim botânico à volta da galeria, ou como a madeira de manejo se transforma em obras de arte.

* Nelson Gobbi viajou a convite do Inhotim

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