Vacina do HPV no Acre: saiba por que é importante imunizar jovens entre 9 e 14 anos

ContilNet mostra que estado segue tendência do país de baixa procura pelo imunizante, expondo meninos e meninas ao câncer; e a desinformação é o grande vilão

A vacina contra o papilomavírus, o HPV, completa uma década este ano, preocupando especialistas em todo o país, com a baixa adesão ao imunizante. E no Acre, um evento raro teve uma parcela de contribuição muito alta para a redução da procura, quando no primeiro semestre de 2019, ao menos 86 jovens apresentaram problemas neurológicos supostamente associados à vacina.

De lá para cá, a imunização não só aqui, como em todo o país praticamente estancou porque os boatos se alastraram Brasil afora. A vacina contra o HPV existe há 10 anos e é distribuída, de graça, para meninos e meninas de 9 a 14 anos e para imunossuprimidos. Contudo, está sobrando dose nos postos de saúde por causa da desinformação.

“O combate à desinformação é o nosso maior objetivo para resgatar a confiança na vacina“, ressalta Renata Rossato Quiles, coordenadora Estadual de Imunizações no Acre.

O órgão, que funciona dentro da Secretaria de Estado de Saúde do Acre, é vinculado à Rede Nacional de Dados em Saúde. “O HPV é um vírus que está altamente associado ao câncer de colo de útero e de outros. Por isso que a vacinação é o método mais eficaz de prevenção para o câncer de colo de útero, ânus, pênis e orofaringe”, explica a especialista para a ContilNet.

Imagem representativa do vírus HPV, que é extremamente prejudicial, causando câncer; a vacinação é a melhor forma de proteção/Foto: Reprodução

Os números da Coordenadoria Estadual de Imunizações mostra queda substancial já em 2018, quando no Acre, das 9.181 doses foram tomadas para um público-alvo de 36.964 jovens, um índice de cobertura de apenas 24,84%. Para efeito de comparação, três anos antes, em 2015, esta mesma cobertura havia ultrapassado as expectativas, quando o estado conseguiu uma cobertura de 121%. Neste ano, a população-alvo de meninas de 9 a 14 anos – os meninos ainda não estavam incluídos –, era de 18.482, mas foram administradas 22.364 doses.

Em 2019, o índice de cobertura ficou menor ainda: desceu de 24,84% em 2018 para 12,69%, ao que tudo indica, puxados pelo boatos de que a vacina causava problemas neurológicos como desmaios e epilepsia. Esse fenômeno, completamente irreal, segundo os especialistas, continuou ocorrendo em 2020, quando o público-alvo era de 53.696 jovens, mas apenas 3.831 buscaram a imunização, num percentual de cobertura de 7,13%. (Confira abaixo a série histórica de 2015 a 2023)

Fonte: Coordenadoria Estadual de Imunizações – Rede Nacional de Dados em Saúde – PNI/AC)

No ano passado, a cobertura vacinal aumentou, embora tenha ficado em 31,57%. Já de janeiro a março deste ano, manteve-se em 30%, com 5.836 doses aplicadas para uma meta de imunizar ao menos 18.472 meninos e meninas entre 9 e 14 anos, até o final do ano.

Renata Quiles explica que o governo tem conseguido resgatar, aos poucos, a confiança nas vacinas. “O imunizante já salvou milhares de vidas ao longo do Programa Nacional de Imunizações. Porém, as desinformações criminosas, utilizadas de má-fé, causam danos irreversíveis à população, prejudicando a redução das doenças imunopreveníveis”, destaca ela.

USP conclui que vacinas contra o HPV não causaram problemas de saúde em jovens acreanas

No dia 29 de novembro de 2019, relatório final do Instituto de Psiquiatria, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), mostrava que a vacina contra o HPV não tinha sido a causa dos problemas de saúde no Acre nas 86 jovens imunizadas que apresentavam complicações neurológicas.

O estudo, intitulado ‘Relatório Médico de Avaliação dos Casos de Notificação de Reação Adversa Grave à Vacina contra o HPV no Estado do Acre’, fora entregue na tarde do dia anterior, 28, ao governador Gladson Cameli e ao secretário de Saúde, Alysson Bestene, pelo promotor Glaucio Oshiro, titular da Promotoria de Saúde do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC).

Vacina contra o HPV: imunizante é comprovadamente seguro. Apesar disso, baixa procura pelos jovens ainda é um problema sério/Foto: Reprodução

Oshiro havia aberto investigação a pedido das mães das meninas, assim como também fez o próprio governador, ao solicitar que o Ministério da Saúde (MS) elucidasse o problema.

No estudo foram avaliadas 74 garotas com sintomas que iam de dores de cabeça e dores nas pernas a febre, desmaios e convulsões. Dessas, 16 casos foram observados pelos médicos por quinze dias, com diversos exames específicos, incluindo a angiografia e os exames cerebrais, sendo sete dias de monitoramento intensivo.

O resultado mostrou que das 16 jovens, dez apresentaram crise psicogênica não-epiléptica, mais conhecida pela sigla CNEP, um problema de origem psicológica muito parecido com uma crise epiléptica, mas que não tem associação a descargas elétricas da epilepsia. Essas dez pacientes não têm epilepsia, nem qualquer doença neurológica de natureza orgânica (provocada por lesão ou alteração elétrica no sistema nervoso central). Mas dois casos de irmãos foram diagnosticados com um tipo de epilepsia de origem genética que costuma se manifestar na puberdade.

A estimativa dos médicos é a de que 20% dos pacientes atendidos como epiléticos nas clínicas especializadas têm crises psicogênicas não-epilépticas.

Problema atingiu a credibilidade do imunizante

Conforme o médico Júlio Croda, diretor do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde do MS, que também esteve na reunião, à época, com o governador Gladson Cameli, “a situação é muito complexa”, porque o problema afetou a confiabilidade na vacina de boa parte dos pais das crianças e adolescentes do estado.

Julio Croda, do Ministério da Saúde, em novembro de 2019, quando explicou que jovens estavam com doença psicogênica não decorrente da vacina/Foto: Neto Lucena/Secom

“Não vamos conseguir resolver facilmente [a recuperação da confiança na vacina]”, diz ele. “É uma desinformação muito grande e esses movimentos já ocorreram em outros lugares, como na Colômbia, por exemplo, que acabou impactando na cobertura vacinal no Chile”, destaca o especialista.

‘Gatilho de medo’ teria desencadeado problemas

Para Lely Gusman, representante da Organização Pan-Americana de Saúde, duas das estratégias mundiais mais eficazes contra doenças são justamente ter o hábito de lavar as mãos e a vacinação. De naturalidade colombiana, ela diz que o Acre viveu mais ou menos o que a cidade de Carmen de Bolívar, na Colômbia, passou. “Lá, não foi nada fácil contornar essa situação, mas conseguimos”.

Um dos entraves, conforme Julio Croda, é que “a população, e até os profissionais de saúde, desconhecem totalmente o assunto, sendo que alguns deles se aproveitam disso [para disseminar informações falsas ou preconceituosas]”.

“As meninas do Acre tiveram uma doença e isso é inegável, mas é algo de origem psicogênica e para que isso acontecesse, houve um ‘gatilho’. Um evento de massa pode disparar esse gatilho [que é o medo da vacina] e que pode se perpetuar, inclusive, quando o profissional de saúde também não ajuda, reafirmando que o jovem não está doente”, ressalta o especialista do Ministério da Saúde.

Em outras palavras, segundo Croda, as meninas precisavam de um tratamento psicológico-social e não de medicamentos anticonvulsões, porque os exames mostraram que elas não tinham epilepsia orgânica. “Se tivessem [epilepsia], o medicamento para o problema surtiria o efeito, algo que não aconteceu”.

Amparo às adolescentes vítimas e reforço na comunicação

O governador Gladson Cameli autorizou à época que o então secretário de Saúde, Alysson Bestene, procedesse com todos os protocolos recomendados pelos técnicos do MPAC, após o relatório da USP.

Entre eles a assistência às jovens vítimas da crise CNEP, e de uma ampla campanha de comunicação para combater a desinformação das pessoas. Desde então, as marcas daquele tempo ainda reverberam nos dias atuais.

É necessário acolher e acalmar os jovens

As crises psicogênicas não são mentirosas. Elas são reais e o objetivo é reorganizar o protocolo, revisando o atendimento e preparando os profissionais que não estão prontos para atender a esse tipo de situação, incluindo os médicos. O entendimento é o de que é preciso acolher e acalmar as crianças, os adolescentes e as suas famílias.

Segundo Maria Tereza Costa, representante da Organização Mundial de Saúde em Washington, em média 35 milhões de mulheres morrem no continente americano por ano, vítimas de câncer no útero.

Paciente infectada com o papilomavírus, o HPV, na gengiva. Risco é de câncer também no útero/Foto: Reprodução

“E a vacina veio para eliminar essa doença nefasta, uma vacina altamente eficaz e segura, e que, pela repercussão que teve no Acre, passou a ser instrumento importante de esclarecimento nas américas e no mundo”, assevera ela.

Doença tem cunho emocional e reação é automática

Coordenador do projeto de neuropsiquiatria do instituto que realizou os estudos, o psiquiatra Renato Luiz Marchetti, lembra em reportagem publicada no Jornal da USP que “a doença está associada a estresse emocional, que desencadeia uma reação psicológica automática do sistema nervoso”.

De acordo com o cientista, além do medo de tomar a vacina, situações como membros desempregados na família, pais ausentes na criação dos filhos e até participação de movimentos contra a vacina, aliadas a hostilização de profissionais de saúde que não conseguiram diagnosticar o problema, podem desencadear a doença.

Há casos, por exemplo, de epidemias de doença psicogênica após o ataque às torres gêmeas, nos Estados Unidos, em 2001, quando as pessoas acreditavam estar doentes pela contaminação por antraz ou gás sarin.

MS cobrou dos Conselhos de Medicina sanções contra profissionais equivocados

A assessoria jurídica do Ministério da Saúde acionou os Conselhos Regionais de Medicina para que imponham sanções contra profissionais de saúde que venham a difundir informações inverídicas.

Este seria o caso de uma médica convidada a participar de audiência na Comissão de Saúde, da Assembleia Legislativa do Estado do Acre na época. Segundo o MPAC, ela não teria encontrado respaldo científico para afirmar que a vacina é prejudicial.

“Essas pessoas devem ter em mente que esse tipo de comportamento, que é político e não científico, compromete a imunização das pessoas e pode causar prejuízos irreparáveis às famílias, que ficam desprotegidas. Não podemos permitir um recrudescimento do câncer e de outras doenças, cuja proteção se dá por vacinas, às custas da irresponsabilidade de profissionais desinformados”, diz Maria Tereza Costa.

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