“Captador de fuxico”, monumento histórico de Rio Branco, pode ser obra de arte de valor incalculável

Construída no governo Wanderley Dantas, escultura que muitos não sabem o que é e ganhou apelido jocoso, faz alusão a uma seringueira estilizada e é obra de um dos maiores artistas brasileiros do gênero

Quem transita, por qualquer razão, a passeio ou a trabalho, diariamente ou de forma esporádica, pela área central da capital, no coração de Rio Branco, certamente já parou para se perguntar do que se trata ou o que é de fato aquele monte de ferro aparentemente retorcido como jeito de monumento futurístico. À primeira vista, parece um símbolo enigmático, uma antena capaz de tentar uma comunicação com o futuro ou, noutra hipótese não menos exagerada, um símbolo terráqueo pronto para dar as boas vindas a extraterrestres dispostos a visitar essas terras seringueiras.

“Muita gente já veio aqui na minha banca perguntar o que aquilo significa e eu confesso que não sei responder”, conta um dos poucos vendedores de jornais impressos e livros físicos em atividade no mundo em tempos de mídia digital, o comerciante Antônio Augusto de Melo, dono de uma banca de revista – a Banca do Pelé – instalada nas imediações do monumento, fincada ali há pelo menos 50 anos.

Antonio Augusto de Melo, dono de uma banca de revista – a Banca do Pelé/Foto: Juan Diaz/ContilNet

Ali também está a Praça Eurico Dutra, em homenagem a um dos homens da não longínqua ditadura militar que engessou o país há 60 anos, rebatizada como “Povos da Floresta” nos tempos dos governos da chamada Era Petista, também não muito longínqua. Por isso, um dos monumentos da praça, próximo à engenhoca com ares futuristas, é uma estátua do líder seringueiro Chico Mendes abatido a tiros, em Xapuri, no ano de 1988. A propósito, naquela praça também se localiza o Bar Municipal, que já foi uma espécie de coração da boemia em Rio Branco. Agora, à noite, por causa da profusão de pessoas em situação de rua que perambulam pelo ambiente e em toda a área central de Rio Branco, virou uma espécie de terra de ninguém, com batalhas campais quase diárias, com o registro de brigas, atos de fúria com uso de ripas, paus, pedras e facas, além de outros crimes como furtos e assaltos a pedestres ou a carros cujos donos incautos teimam em estacionar nas redondezas.

Praça Eurico Dutra, também conhecida como Praça Povos da Floresta/Foto: Reprodução

Vandalismo e destruição de estátuas

O atrevimento é tamanho que nem a estátua de Chico Mendes, cuja memória é cultuada mundo afora, tem escapado dos vândalos. A estátua do acreano cuja memória foi inclusive digna de homenagem no show da pop star internacional Madonna, na noite de sábado (4), nas areias de Copacabana, no Rio, que também representa a figura de Sandino, o filho mais novo de Chico Mendes, ainda criança e segurando a mão do pai, foi violada e o roubada faz mais de dois anos. Nunca mais foi encontrada a estátua que lembra o menino.

“Acho que eles derreteram. Aqui no centro, tudo que é de cobre, ferro ou alumínio, o pessoal de rua rouba e vende para derreter. A estátua do filho de Chico Mendes já deve ter virado ter virado fumaça”, diz um dos engraxates instalados numa casa de lustradores de sapatos nas imediações do monumento. O lustrador Marcos Oliveira, o “Marquinhos”, tem entre seus clientes preferenciais ninguém menos que o governador Gladson Cameli, dono de algumas dúzias e coleções de calçados, os quais ele vai pelo menos uma vez por mês lustrá-los, par a par, em sua casa.

Estátua de Chico Mendes retornou à praça dos Povos da Floresta/Foto: Andréia Nobre/Secom

“Nunca contei, mas sei que são muitos. Engraxo na casa dele e passo um bom tempo fazendo isso. É graças a isso e a ele que tenho conseguido melhorar as condições de vida da minha família”, diz o lustrador, cuja vida profissional só não é melhor porque, segundo ele, aquela área central da cidade, virou um local de perigo e riscos para quem é obrigado a conviver ou transitar por ali diariamente.

Mas a história acima é outra, bem diferente da história do monumento que, a princípio, poucas pessoas sabem o que é. O que se sabe é que, temido ou respeitado, o monumento sobrevive no local há 50 anos, sem nenhum tipo de violação. “Ninguém ousa mexer no que não se sabe o que é”, diz o historiador Marcus Vinicius Neves, ele próprio um dos poucos estudiosos e conhecedores do que aquilo significa, como se verá mais adiante.

Marcus Vinicius Neves é historiador do Acre/Foto: Reprodução

Um captador de fuxicadas no centro do poder

Na falta de uma definição sobre o significado daquele monte de ferro entre as sedes de dois poderes do Estado, o Executivo, com o Palácio Rio Branco, e o Legislativo, com a sede da Assembleia, os gozadores de plantão, como o falecido jornalista José Chalub Leite, o batizaram de “captador de fuxico”. Entre dois poderes com seus membros em permanente disputa, o fuxico é material de trabalho e, numa época sem redes sociais e com a comunicação sempre deficiente, captar fuxico entre poderosos, antes de qualquer tom jocoso, poderia ser mesmo uma atividade de Estado.

Mas, embora pareça uma torre com uma autêntica parafernália futurística, o “captador de fuxico” teria uma função mais nobre, até lúdica: é a evocação às artes plásticas, à beleza e à capacidade criativa do ser humano, destaca o historiador Marcus Vinicius Neves. Segundo ele, o “captador de fuxico” evoca o passado e é uma marca do Governo Francisco Wanderley Dantas, de 1971 a 1974, em cuja administração o recém criado Estado do Acre completou seu primeiro 10º Aniversário.

Caçador de Fuxico/Foto: Reprodução

Foi por conta dessa época que Dantinha, como era conhecido o professor de história de uma tradicional e membro de uma tradicional família de seringalistas do Acre transformado no 3º governador biônico do Estado durante a ditadura militar, dissera a que viera. À Dantinha, a despeito de suas origens, é atribuída às primeiras ações do movimento que abriria verdadeiras feridas na história do Acre: a ocupação dos seringais desta parte da Amazônia pelos latifundiários chamados de “paulistas”, aos quais são atribuídos crimes de violação diversas, invasões de terras, agressões e, inclusive assassinatos – era a chamada “bovinização do Acre”, com a chegada dos primeiros pecuaristas que mudariam um pouco da cultura e contribuíram para a total diversificação da economia do Acre, até aquela época baseada no extrativismo da coleta do leite da seringa para confecção da borracha, e a castanha.

A mão pesada do governador “Dantinha”

Para mudar a cultura e a economia, seria necessária a mudança da simbologia. É neste sentido que a mão pesada do então governador, do alto dos seus 1,62m de altura, que justificavam seu sobrenome no diminutivo, tornara-se o grande – senão o maior – dos aliados dos novos donos do Acre. Para chegar ao resultado esperado, era necessário mandar sinais no futuro. “Acre – Ano Dez, um Estado em Ação”, dizia o governo Dantinha, cujo apelo publicitário, para atrair pecuaristas dispostos a investir no Acre, era patrocinada pelo jornalista Amaral Neto – nome e sobrenomes os quais, na maldade, seus colegas na época, por certo com algum exagero, faziam o infame trocadilho de “amoral nato”. Graças a Amaral Neto ou Amoral Nato, no centro do sul do país o Acre era vendido como uma espécie de Jardim do Éden nos trópicos, com terras férteis que lembravam “um Sul sem geada e um Nordeste sem seca”, diziam as peças publicitárias ilustradas com imagens das belas fauna e flora da Amazônia.

Wanderley Dantas foi governador do Acre entre 1971 a 1974/Foto: Reprodução

Não por acaso, além dos preços baixos da terra, que podiam ser comparados a um hectare de área verde vendida ao preço de uma palma de banana, o Acre foi adquirido e ocupado por milhares de fazendeiros e outros interessados logo batizados “paulistas” face ao contraste da pele clara desses indivíduos em relação à morenice cabocla dos acreanos natos.

O jornalista e publicitário autor de tais peças, que afinal fora batizado com o nome de Fidelis dos Santos Amaral Neto, nascido em Niterói (RJ) em 1921 e falecido também no Rio em 1995, sempre à serviço da então ditadura militar vigente, obteve pelos menos oito mandatos de deputado federal, dos anos de 1960 até 1991, pelo extinto estado da Guanabara e depois pelo Rio de Janeiro.. Coincidência ou não, seu mote de campanha era a defesa da pena de morte. Mas isso também é outra história.

Para garantir imagens verdadeiras do que Amaral Neto ou Amoral Nato exibia na TV, o então governador mandou mudar a imagem da área central da cidade na frente do poder estadual, o Palácio Rio Branco, tirando dali a fonte luminosa e o obelisco. A fonte luminosa foi doada ao governo local pelo Vaticano como presente pela sagração do sacerdote Dom Giocondo Maria Grotti como bispo da Prelazia Acre e Purus. Seu projeto arquitetônico foi elaborado pelo arquiteto alemão Alberto Massler, inspirado nas edificações gregas com suas colunas de ordem dóricas e jônicas na fachada principal. Iniciada em 1930, a obra só foi concluída no Governo de José Guiomard dos Santos, em 1948, com o Acre ainda na condição de Território Federal.

Já o obelisco foi erigido em 1937 em homenagem aos herois da Revolução Acreana. O Monumento era circundado por corrente de ferro, em alusão à corrente limada no Rio Acre, no combate mais épico da Revolução Acreana, quando os combatentes teriam a erguido de um lado a outro do rio para impedir a navegação de lanchas e batelões bolivianos trazendo suprimentos de munição, armas e homens para combater os brasileiros do exército seringueiro de José Plácido de Castro.

Mas, para Dantinha, a fim de atrair os novos donos do Acre, a história que se lixasse: a fonte luminosa foi enviada para a Praça da Revolução, onde ficou anos sem funcionar e só foi recuperada com a chegada ao poder dos governos petistas, que a devolveram ao local original, mas ainda assim ficou de novo sem funcionar e só foi recuperada pelo atual governador Gladson Cameli.

O obelisco retornou ao local original nos governos do MDB, mas os dormentes da corrente de aço que ornamentavam o monumento também desapareceram. Anos depois, se descobriu que os pedaços da corrente histórica tornavam o majestoso jardim da mansão de um empresário da comunicação em Porto Velho (RO), um dos amigos do governador de plantão na época. O “captador de fuxico”, no entanto, a tudo assiste, impotente mas resistente e não violado.

Na nova estratégia, sobrou até para os Benjamins

Na estratégia do governador Dantinha de dizer aos pecuaristas a que viera e que o Acre do extrativismo chegará ao fim, sobrou até para a quadra de esportes onde jogavam bola os meninos de cujas peladas surgiram craques do futebol acreano como ‘Dadão”, apelido do jogador Eduardo Rodrigues da Silva Filho, que morreu aos 67 anos em 2018, após um AVC, em Brasília. “Daquela quadra saíram muitos craques. Eu mesmo joguei muito ali e acho que se a quadra permanecesse, outros craques teriam surgido ali. Afinal, era no centro da cidade e vinham meninos de toda a cidade se encontrar para jogar ali”, conta o jornalista Antônio Carlos Batista, 69 anos, o “Malvadeza”, que também foi um craque amador do futebol local.

Na mudança da paisagem do centro de Rio Branco, sobrou também para os pés de Benjamins (Ficus benjamina ), que enfeitaram e serviam de sombra à Avenida Getúlio Vargas naquele trecho que vai da Praça Eurico Dutra ou Povos da Floresta até uma das entradas do Palácio Rio Branco. Na época, a justificativa para a matança das árvores e a transformação do local em imagem de terra arrasada foi de que as plantas atraíam o percevejo, um tipo de inseto que, ao pousar nas pessoas, deixam um odor nada agradável.

Para justificar a nova imagem, o então governador manda erguer a escultura que está incólume até hoje, mais de 50 anos depois. E não é uma escultura qualquer. De acordo com o historiador Marcus Vinicius Neves, trata-se de um monumento que na época deve ter custado uma pequena fortuna, embora o acreano comum não saiba o que é e o tenha batizado com aquele apelido jocoso. Mas o próprio historiador, que não é versado nessas coisas de escultura, se exime de debater o assunto e dá dicas de quem tenha bagagem para tanto.

O artista plástico Danilo de S’Acre, de 60 anos, acreano que na juventude cruzou o Atlântica e foi beber e embriagar-se de cultura e arte na Europa, mais precisamente na Itália, em cujas cidades, como em Roma, por exemplo, ainda é possível se encontrar estátuas quase perfeitas da época gloriosa de escultores romanas como aquelas no Monumento a Vittorio Emanuele II da Piazza Venezia, na Cidade Antiga romana, onde há, ainda, tributos a Settimio Severo ou a Marcus Aurelius. Como os romanos, na interpretação de Danilo de S’Acre, Dantinha mandou fazer não um “captador de fuxico” mas uma seringueira estilizada, uma evocação aos seringais do futuro e à memória de uma época em que as árvores batizadas botanicamente de hevea brazilienses davam leite e por isso alguns também veem naquele monumento a evocação feminina da criação de Deus na terra. “Quem olhar a escultura também pode ver uma santa naquela escultura, para mim uma das mais belas e importantes do Acre”, diz o artista.

Danilo de S’Acre é o artista responsável pela obra/Foto: Reprodução

É de Danilo a informação de que o monumento é uma das criações de Caciporé de Sá Continho da Lamare Torres, um escultor, desenhista e professor brasileiro, um artista premiado pelas mais célebres instituições do país e que participou de importantes mostras internacionais e reconhecido como um dos mais relevantes artistas pelos historiadores e críticos de arte. Uma artista tão profunda que, segundo Danilo de S’Acre, ainda há necessidade de um estudo aprofundado que o eleve a sua verdadeira importância, num claro sinal de que o “captador de fuxico” do centro de Rio Branco pode ter um valor artístico e cultural incalculável. “É preciso que o governo e a sociedade saibam preservar aquela preciosidade”, disse Danilo.

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