O filme ainda inédito “Homem com H” — que recompõe parte da trajetória artística do cantor Ney Matogrosso, com o ator Jesuíta Barbosa no papel principal — deverá resgatar a passagem do artista pelo Acre e sua experiência com o Santo Daime ou Ayahuasca, que ele ingeriu em Rio Branco e Cruzeiro do Sul, onde também usou a chamada vacina do sapo Kambô. O filme e outros documentos, como sua biografia em livro, celebram os 82 anos do artista e ícone da MPB (Música Popular Brasileira), que tem envolvimento com a causa de combate à hanseníase, doença registrada à época de Jesus Cristo, já extinta em vários países no mudo mas que no Brasil e no Acre, em particular, continua a fazer vítimas – sozinho, o Brasil representa mais de 90% dos diagnósticos no continente americano e é o segundo país do mundo com maior quantidade de registros da doença.
Em 2022, por exemplo, no Acre, foram registrados 124 novos casos de hanseníase; três casos da doença em adolescentes menores de 15 anos. Em todo o território, durante 2022, mais de 17,2 mil pessoas foram identificadas com a infecção.
Informado do envolvimento do artista com a causa de combate à doença, o então senador e médico Tião Viana trouxe o artista ao Acre para homenagens e conhecer de perto a realidade dos hansenianos acreanos, em outubro de 2007. Em abril daquele ano, Ney Matogrosso acompanhou um grupo de pessoas portadoras de sequelas da doença num movimento no Senado federal, em Brasília, quando elas pressionaram os parlamentares pela aprovação do projeto de lei de autoria do então senador Tião Viana (PT-AC), prevendo o pagamento de pensão vitalícia, no valor de dois salários mínimos, aos hansenianos que foram obrigados a se isolar em hospitais-colônia, conhecidos antigamente como “leprosários”.
Também participaram do encontro os deputados Pepê Vargas (PT-RS) e Cida Diogo (PT-RJ), além do cantor Ney Matogrosso. O ato foi organizado pela diretoria nacional do Movimento de Reintegração das Pessoas atingidas por Hanseníase (Morhan), e teve a participação de representantes de 17 estados.
Na época, o senador Tião Viana se encontrou com o grupo e afirmou que o “projeto não é favor nenhum; é uma obrigação do Estado reparar um erro do passado”.Já aprovado na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, o projeto agora aguarda aprovação na Câmara dos Deputados. O projeto foi aprovado e o benefício hoje é pago em todo o país.
Segundo Selmo Lopes, integrante da comitiva e filho de portadores da doença que estiveram em Brasília, a pensão “não pode reparar o que já foi feito, mas simplesmente dar uma vida melhor para essas pessoas daqui pra frente”. Também chamada de “lepra”, termo que caiu em desuso por abranger uma série de doenças distintas, a hanseníase é causada pelo contato com o bacilo de Hansen. Ela ataca o sistema nervoso periférico, a pele, e alguns órgãos como o fígado. A doença é contraída pelas vias respiratórias, quando uma pessoa contaminada libera o bacilo no ar. Porém as chances de se contrair hanseníase em um simples contato social são muito remotas, sendo necessário um contato íntimo e frequente para haver risco de contágio. O tratamento é gratuito e bastante eficaz se a doença for diagnosticada em seu estágio inicial.
A partir daí, Tião Viana convidou o cantor para vir ao Acre. Ney Matogrosso esteve na casa onde viveu o fundador nacional do Morhan (Movimento de Reintegração dos Hansenianos), Francisco Vieira Nunes, o “Bacurau”, morto em janeiro de 1977. Além da casa de “Bacurau”, no Conjunto Bela Vista, em Rio Branco, Ney Matogrosso também visitou a colônia Souza Araújo, que cuida de hansenianos desde os anos de 1930, também na Capital do Acre.
O artista também quis conhecer os hansenianos abrigados em colônia do mesmo tipo de em Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá. No Juruá, além de ingerir o Santo Daime ou Ayahuasca, lá ele também tomou a chamada vacina do sapo, que consiste numa técnica de origem indígena largamente utilizada pelos índios da Amazônia brasileira e peruana, que usa a secreção de tipo específico de sapo aplicada sob a pele do usuário.
O filme biográfico do artista deve trazer essas experiências, já que abordará diversas fases da carreira do cantor, passando por sua infância, adolescência, vida adulta e maturidade. O filme deverá resgatar a história do rapaz de origem humilde que se libertou das opressões e figuras de autoridade paterna, um militar da Aeronáutica, para se tornar um dos artistas mais influentes de sua geração no Brasil e em várias partes do mundo.
Em recente entrevista sobre o filme e sua história pessoal à revista Breeze, Ney falou de sua experiência com o Daime e disse que levou o falecido cantor Cazuza, seu então namorado, para tomar ayahuasca. O cantor e compositor Cazuza, que morreu em julho de 1990 por complicações decorrentes do HIV, cujo vírus Ney Matogrosso não pegou, ao ingerir a bebida, teria se recolhido um pouco e depois, segundo relator o artista, indagou: “É só isto?”.
– “O Cazuza estava muito doente já, foi na época em que nós começamos a ensaiar o último show dele”, contou. “Ele dizia: ‘Ney, você está com um aspecto tão bom, o que você anda fazendo?’ Eu disse ‘Olha, Cazuza, eu tô tomando daime”.
Segundo o músico, nesse momento, Cazuza pediu para experimentar. “Então nós fomos lá. Levaram ele pra fazer uma estrela [alta dosagem em um lugar fechado] no meio da floresta”, contou. “Eles davam muito pra ele porque ele tava tomando muita droga, e o daime não ultrapassava aquela coisa das drogas que ele tomava”.
Nas declarações, Ney Matogrosso não revela se Cazuza veio ao Acre. “Aí teve um momento em que eu vi um raio de sol batendo no rosto dele, aí ele abriu os olhos e disse assim ‘é só isso?”. Aí eu entendi que ele tinha captado, e eu disse ‘Sim, é só isso, Cazuza, é só aceitar, entende e aceita o que você tá entendendo porque é verdade'”, prosseguiu. “Aí, quando acabou, ele disse ‘quero chegar em casa rapidamente porque eu quero conversar muito com meu pai e minha mãe'”. Contudo, Ney diz que não sabe se Cazuza chegou a realizar esse desejo.
Na entrevista, o ex-Secos & Molhados também revelou que tem uma relação espiritual com drogas psicodélicas. “Nas vinte viagens que eu fiz com ácido, a minha meta era só essa”, contou.
“Eu já conversei com um médico amigo meu [e disse]: ‘Olha, se eu estiver morrendo, bota o ácido da melhor qualidade na minha boca e me deixe morrer. Não tente me manter vivo artificialmente e me dê um bom ácido e pronto, deixa eu ir’. Eu convivo com muita tranquilidade com essa ideia”, declarou.