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Há quatro anos o Acre perdia “Lhé”, o homem que dedicou a vida em defesa dos oprimidos

Por Tião Maia, ContilNet

Há quatro anos, numa manhã de sábado de 16 de maio de 2020, o Acre perdia um de seus mais aplicados combatentes de suas causas sociais, o acreano descendente de sírio-libaneses Abrahim Farhat Neto, o “Lhé”, aos 78 anos de idade.

Ele estava internado no hospital da Fundação Hospitalar do Acre (Fundhacre), em Rio Branco, fazia pelo menos uma semana: era paciente renal crônico, havia contraído a Covid-19 mas morreu de parada cardíaca, deixando irmãos, filhos, netos, uma legião de amigos e aliados, além de uma vida dedicada à defesa dos mais humildes da Amazônia e da pátria de origem de sua família, a Palestina.

Era amigo pessoal do sindicalista Chico Mendes e do atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com os quais, no início dos anos de 1980, fundou o Partido dos Trabalhadores (PT). 

Lhé morreu em 16 de maio de 2020/Foto: Reprodução

Na primeira eleição e que a ditadura militar ainda vigente permitiria para governador, senador, deputado federal e vereador, Abrahim Farhat apresentou-se para a disputa. Em São Paulo, Luiz Inácio Lula da Silva apresentou-se como candidato a governador pelo PT. 

No Acre, o candidato ao governo era o sociologo Nilson Mourão. Abrahim Farhat e o teatrólogo Francisco Matias de Souza apresentaram-se como candidatos ao Senado – candidatos sem nenhuma chance de vitória, cujos nomes foram postos apenas para marcar posição.

Para Abrahim Farhat, que acabaria a eleição conquistando quase 5 mil, além das dificuldades naturais de disputar uma eleição majoritária sem quaisquer estrutura, havia outro problema, este de ordem familiar: o candidato ao Senado apoiado pelo então candidato ao governo pelo PDS, Jorge Kalume, era ninguém menos que o ex-ministro da Comunicação Social do Governo João Figueiredo, o jornalista e publicitário Said Farhat, seu tio.

Nascido no Acre, ex-prefeito de Brasiléia, Said Farhat fez carreira profissional em São Paulo e, amigo de Figueiredo, foi o primeiro acreano a chegar a um ministério em Brasilía. Em 1982, retornou ao Acre, endinheirado e buscando um mandato de senador pelo PDS, se apresentando como o “Amigo do Joçao” – uma clara referência ao general João Batista Fgueiredo, o último dos presidentes da ditadura militar no país. Aberta as urnas, o senador eleito era o médico acreano Mário Maia, do MDB, companheiro de chapa de Nabor Júior, o governador eleito.

Abrahim Farhat estava internado na Fundhacre/Foto: Reprodução

A derrota, no entanto, não fez esmorecer o combativo Abrahim Farhat Neto. Suas lutas, aliás, vinham de longe. 

Lhé, o filho mais velho de sírios libaneses nascido em Rio Branco, iniciou sua história no movimento estudantil no Colégio Acreano, na década de 1960. Anos depois passou a organizar movimentos sociais, sindicais e ajudou a criar sindicatos e cooperativas como das lavadeiras, empregadas domésticas e das prostitutas. Também ajudou a criar e manter o Sindicato Trabalhadores Rurais de Xapuri, no interior do Estado.

A história da família Farhat começa no início da ocupação do que seria o Estado do Acre, após a anexação do território ao Brasil, com o primeiro Abrahim, um libanês que não sabia falar português, se instalando no Acre como vendedor ambulante, ou camelô. As dificuldades com a língua eram resolvidas pelo comerciante com a mercadoria em cima de um tabuleiro, com ele batendo dois pedaços de madeira a fim de chamar a atenção da freguesia. Por isso, pssou a ser conhecido como ‘Abrahim do tec tec’, pois usava os dois pedaços de madeira batendo um no outro para prender a atenção dos clientes.

Como nos dias atuais, com a Faixa de Gaza bombardeada por Israel, os libaneses, naqueles anos distantes, também estavam fugindo de guerras e da fome. O Oriente Médio, no centro dos três continentes de ocupação humana mais antiga e intensa do mundo, entre a África, a Ásia e a Europa, sempre foi uma zona de conflitos. Isso fez com que essa área fosse intensamente habitada e percorrida desde a pré-história até os dias de hoje, além de ser estratégica para quaisquer povos que quisessem expandir suas influências ou suas dominações. 

Lhé era amigo do jornalista Tião Maia/Foto: Reprodução

Na antiguidade o atual Líbano correspondia à Fenícia, uma das mais florescentes e importantes civilizações que a história da humanidade já conheceu. Em razão da situação geográfica das terras libanesas, compostas por uma estreita faixa de terra apertada entre o mar e as montanhas, os fenícios se viram obrigados a desenvolver o comércio em lugar da agricultura. Tornaram-se, assim, exímios navegadores do Mediterrâneo e estabeleceram diversas feitorias, através das quais chegaram a dominar boa parte da costa da África e da Europa.

Abrahim Farhat, cujo nome seria emprestado ao neto famoso no futuro, era um sobrevivente desta área de guerra. As dificuldades o faziam um comerciante nato, mesmo que do outro lado do mundo, como era comum entre seus patrícios. Muitos deles desembarcaram na Amazônia, por mais distante que pudesse parecer.

Muitos dos libaneses começaram, assim, uma milenar tradição comercial que, certamente, foi uma das referências mais importantes para o desenvolvimento de um novo modo de vida na Amazônia, onde os regatões se assemelhavam aos fenícios modernos, navegando e comercializando pelo amplo rio e seus afluentes.

Além disso, no Oriente Próximo, durante a antiguidade, desenvolveram-se diversas outras civilizações que maravilharam o mundo através de suas realizações arquitetônicas, conquistas militares, inovações técnicas, tradições religiosas e organizações sociais.

Mesopotâmia, Babilônia, Assíria, Israel, Pérsia, entre outros povos guerreiros, agricultores ou pastores, que sucessivamente dominaram os vastos desertos da Península Arábica e os vales férteis do Tigre e do Eufrates. Séculos depois, foi a vez do Ocidente levar novas formas de organização e dominação, através da grande expansão do Império Romano até a Península Arábica. No século V da nossa Era, a consolidação do Império Romano do Oriente provocou a cristianização de diversas comunidades daquela região. Foi graças à presença da famosa civilização Bizantina que boa parte da população do Líbano e atual parte da Síria passaram a professar doutrinas cristãs, algumas ortodoxas. Essa característica facilitou bastante a adaptação no Brasil, daqueles que possuíam orientação Cristã e saíram do Oriente para fazer a América Contemporânea.

Abrahim Farhat Neto narrou a história de sua família e a sua própria a pesquisadores da Fundação “Elias Mansour”, como  o historiador Marcos Vinicius Neves. Segundo ele, a partir do ano de ano de 1910, seu avô, o “Abrahim Toc Toc”, chega, a Rio Branco, em busca do ouro negro, o látex. Ele migrava em um período em que centenas de nordestinos estavam em busca de crescer na vida. “Meu avô fez parte de uma minoria que fugindo das perseguições, buscava novas terras e largando tudo, embrenhou-se na Amazônia, deixando sua esposa gestante”, contou Abrahim, o “Lhé”.

Em 1910, seu avô passou por Manaus, onde ele tinha uma prima. Àquela oportunidade, ele trabalhou como vendedor de bananas na Praça dos Remédios, nos arredores do Mercado Adolpho Lisboa. Tempos depois, resolveu imigrar para o Acre.

Já instalado no Acre, como camelô, com a mercadoria em cima do tabuleiro, na loalidade conhecida como Igarapé da Cigana, onde hoje é o Bairro Belo Jjardim, também andava pela região hoje conhecida como “Cruz Milagrosa”. Nesta condição, ainda trabalhou dois anos como mascate, vendendo mercadorias. O tempo passa e, em 1912, depois de amealhar alguns recursos, ele sai da rua e monta seu comércio no Bairro do Quinze e, mais tarde, transferiu-se para a Rua Dezessete de novembro, onde começa a progredir.

Já instalado, mandou buscar seu avô o qual casou-se com uma portuguesa chamada Adelina, cujo casamento ocorreu em Belém do Pará. Em Rio Branco, trabalhava com produtos regionais, como por exemplo, couros de animais, castanha e borracha, até 1952. “Em 1910, nasceu, no Líbano, meu pai que imigra para Rio Branco, em 1927. Da união vieram os filhos Fátima, José, Alberto e Said. O comércio caminhava bem, por isso, meu avô manda buscar meu pai no Líbano. Em 1952, meu avô resolve retornar ao Líbano com a família, deixando todo comércio montado, entregando para meu pai tocar. Ao chegar no Líbano, meu avô encontrou a primeira esposa e foram todos morar juntos”, revelou Abrahim Farhat no depoimento aos pesquisadores.

No período em que a ditadura militar expõe seus tentáculos no Acre, Abrahim Farhat Neto, ao lado de aliados como o então bispo dom Gicondo Maria Grotti, sonha com algum tipo de resistência. Com a morte do religioso num acidente aéreo em Sena Madureira, em 1971, Abrahim Farhat perde também um aliado na Igreja. Para sua sorte, no entanto, o novo bispo, Dom Moacyr Grechi, tem ideias de resistência tão avançadas quanto ao bispo falecido. Os dois se aliam e se tornam, em seguida, os depositários  das queixas de colonos, seringueiros e índios vítimas da violência dos novos couaptes do Acre, os fazendeiros interessados no latifúndio das fetertéis terras acreanas.

O movimento desencadeado por Abrahim Farhat Neto, que se restringia a atividades urbanas, agora marchava rumo aos seringais. A resistência inicial iria encontrar aliados como Wilson Piero de Souza, Chico Mendes, João Maia da Silva Filho e outros tantos sonhadores que buscavam um Acre desenvolvido mas sem o deramemnto de sangue de seus filhos. É neste sentido que Abrahim Farhat se junta aos fundadores do PT achando que agora o movimento iniciado por ele tinha um Partido de massas para encabeçar as lutas.

De alguma forma, seus sonhos não foram de todos em vão. Ainda que tenha visto de perto companheiros seus serem abatidos por balsas assassinas, como nas mortes de Wilson Pinheiro e Chico Mendes, num espaço de oito anos, Abrahim Farhat testemunhou também a ascensão de um companheiro seu, que chegou a dormir em sua casa, no centro da Rio Branco, à presidência da Reública, em 2002. Viu Lula ser reeleito e ainda a fazer sua sucessora. 

Quando Lula foi preso em Curtiba, em abril de 2018, Abrahim Farhat, ainda assim, mantinha a convicção de que o então ex-presidente daria a volta or cima. “Só quem não cohece o Lula é capaz de achar que ele se deixará abater. Essa direitona não sabe que cutucou a onça com vara curta”, dizia, já doente, em sua casa, usando uma sonda já em tratamento renal, com hemodiálise, que fazia duas vezes por semana no hospital onde morreu. 

“Lhé” estava certo. Mas morreu sem ver o amigo Lula chegar à presidência para um terceiro mandato. Se há tristeza nisso, pode servir de consolo o fato de Abrahim Farhat não ter visto também o massacre atual de seus patrícios na Faixa de Gaza. Um Estado Palestino, com Gaza livre e autônoma, era outra das causas deste homem cuja vida foi toda ela dedicada à luta em defesa dos mais sofridos, um sonhador de causas perdidas o qual, no entanto, nunca se deixou abater e certamente morreu certo de que fez o bom combate.

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