Acre completa 62 anos: entenda como foi o processo de emancipação do Território a Estado

ContilNet traz a história do Movimento Autonomista e como algumas correntes contrárias quiseram impedir essa jornada

Na tarde do dia 15 de junho de 1962, o então presidente do Brasil, João Belchior Marques Goulart, sancionava a Lei n° 4.070, que elevou o Território do Acre a Estado. De lá para cá, já se foram 62 anos, celebrados neste sábado (15), desde que este momento histórico fechou um ciclo de conquistas iniciado com a vinda dos primeiros nordestinos à Amazônia, fascinados pela proposta de uma vida melhor na exploração das seringueiras, no primeiro ciclo da borracha, em 1817.

Da esquerda para a direita, Lydia Hammes Santos, Guiomard Santos, o presidente João Goulart e o primeiro ministro Tancredo Neves, na ocasião da sanção da Lei n° 4.070, de 15 de junho de 1962, que elevou o Acre a Estado/Foto: Acervo Digital/Memorial dos Autonomistas

Se o gaúcho agrimensor, líder da Revolução Acreana, José Plácido de Castro, foi o responsável por iniciar a conquista do Acre da Bolívia – com seringueiros armados e táticas de guerra que o levaram ao posto de coronel concedido por seus combatentes –, mais tarde, nos anos 1950, coube ao militar carioca José Guiomard Santos, do Partido Social Democrático e governador do então território, a liderar o Movimento Autonomista para tornar o Acre Estado.

Importante frisar que entre as façanhas de Plácido de Castro e os feitos de Guiomard Santos, a diplomacia brasileira, com o Barão do Rio Branco, havia sido também essencial na intermediação de acordos com a Bolívia, que permitiram a anexação do Acre, oficialmente, ao Brasil.

Proprietários do Seringal Benfica, em Rio Branco (à direita) com oficiais dos vapores Arimos e Marcial e seringueiros/Foto: Revista O Malho

Explica a professora Maria José Bezerra, na sua tese de doutorado de 2006 para o Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), que Guiomard Santos lançou o Comitê Pró-Autonomia do Acre nos idos de 1956, grupo que tinha por finalidade um caráter “cívico, patriótico e ético” para persuadir os acreanos de que o Acre deveria tornar-se Estado.

Como acontece até hoje com as campanhas de cunho político e ideológico nas redes sociais, em sites e grupos de WhatsApp, na época os pró-autonomistas também utilizaram recursos de comunicação em massa, embora restritos ao rádio e aos jornais impressos, para despertar na população esse sentimento de que o Acre deveria sair das amarras do governo federal, com resultados significativamente melhores que se continuasse território.

Palácio Rio Branco na década de 1950, um dos grandes símbolos da luta pela emancipação do Acre/Foto: Acervo/Centro de Documentação e Informação Histórica (CDIH)/Ufac

Então, no dia 19 de maio de 1957, o Comitê Pró-Autonomia dispara um de seus recursos a favor do Acre Estado, publicando artigo no Jornal O Acre intitulado “Exortação Cívica”, assinado por Raimundo Sales Vital.

O Jornal O Acre era o órgão oficial de imprensa do governo constitucional e tornou-se, em 1950, um aliado ferrenho da propaganda de elevação do Acre a Estado.

Leia abaixo parte do artigo exatamente como foi publicado:

“Acre livre e Brasil mais independente. Conterrâneos de coração, saímos do berço desassombradamente e aceleramos os nossos passos em busca de uma bandeira de liberdade para nossa terra, que é minha e que é tua. Saibamos honrar os méritos daqueles que tombaram pela independência deste rincão, num ardil golpe sem medirem consequência e desprendidos de paixões materiais. […] por um Acre livre, num Brasil mais independente”.

Jornal O Acre, órgão oficial de imprensa do governo constitucional tornou-se, em 1950, aliado da propaganda pela elevação do Acre a Estado/Foto: cedida

Portanto, percebe-se que o discurso patriótico era, por assim dizer, a arma de persuasão do grupo encabeçado por Guiomard Santos.

Mas, como nem tudo são flores, neste momento, começaram os levantes contra a emancipação. “Havia também correntes partidárias divergentes à autonomia”, segundo a tese da professora-doutora, intitulada ‘Invenções do Acre: De Território a Estado – Um olhar social’.

Se do lado dos que pregavam a necessidade do Acre Estado, o mote principal era a “necessidade dos acreanos tornarem-se iguais em direito e deveres aos demais brasileiros”, ou seja, colando à sua propaganda ideológica os feitos de Plácido de Castro – de que a elevação a Estado só honraria ainda mais a façanha dos bravos heróis da ‘Revolução Acreana’ –, do outro lado, havia forças políticas que foram protagonistas do processo de luta contra a Bolívia mas que se dividiram em vários grupos depois, e com projetos distintos para a região.

“A anexação do Acre como Território já não havia encontrado a simpatia das forças políticas responsáveis pela ‘Revolução’, então, o que dirá pela ‘Elevação’. Eles não aceitavam por terem objetivos diferentes do que pensavam os autonomistas”, explica a professora-doutora.

Casarão de seringalista em Sena Madureira; eles eram contra a elevação do Acre a Estado/Foto: Acervo/CDHI

“Havia aqueles, como Galvez, que defendiam a instauração de um regime republicano, porém subordinado à ‘mãe-pátria’ [o próprio Acre]. E alguns outros, mais ousados, com suas ideias separatistas, que também propunham a separação do Acre do território nacional, formando um novo país”, lembra Bezerra.

E como exemplo prático, é “neste contexto que se insere o levante de 1910 em Cruzeiro do Sul, quando os seringalistas e comerciantes de maior peso econômico se rebelaram e depuseram as autoridades constituídas”, relata. Nesta perspectiva, a instituição da condição de Território pelo governo federal torna-se um freio ao mandonismo das forças políticas locais ante o poder nacional.

Vista panorâmica de Cruzeiro do Sul nos anos 1950/Foto: IBGE

Causa autonomista não empolgava o Vale do Juruá

Para reforçar seus ideais de um Acre elevado à condição de Estado, Guiomard Santos, então, organizou um bloco pró-autonomista de políticos locais que, em 1953, ele mesmo municiava com discursos, artigos na imprensa, abaixo-assinados, correspondências particulares, telegramas e relatos de debates sobre a luta pró-autonomista no âmbito do Território. Mas o que pensava-se ser uma causa do Acre como um todo acabou não incendiando todas as mentes, sobretudo os pensadores do Juruá.

Instituto Santa Terezinha, em Cruzeiro do Sul, na década de 1950/Foto: IBGE

“No Vale do Juruá, em documento publicado em O Juruá, o jornalista João Mariano enfatiza que os governos territoriais, incluindo o próprio Guiomard Santos, só investiam em Rio Branco – por ser capital –, e nos municípios vizinhos”. Dessa forma, a causa autonomista não empolgava os moradores do Juruá, por conta do contexto de miséria a que estavam inseridos, segundo a leitura da pesquisadora da USP.

“O Vale do Juruá não está em condições de fazer parte do Estado autônomo do Acre, pois além da falta de vida própria, há de encarar o fator capital: de todos os proprietários e comerciantes do Juruá, somente um, o sr. Raimundo Quirino Nobre está em condições de carregar, por duas vezes ao ano, navio de quatrocentas toneladas de mercadorias, em Belém, para os seus armazéns nesta cidade. Isso indica pobreza da região. […] Faça-se o Território do Juruá. Incentiva-se a sua lavoura e pecuária, organizem-se algumas pequenas indústrias, extraia-se o petróleo do Moa, eis o caminho a seguir”.

Do artigo Autonomia do Acre, no jornal O Juruá, por João Mariano da Silva, publicado no dia 3 de março de 1957.

Colonos e seringueiros com o governador Guiomard Santos/Foto: Acervo Digital/Memorial dos Autonomistas

Segundo a tese de Maria José Bezerera, a oposição, representada pelo deputado federal Oscar Passos, líder do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), também advogava contra o projeto de elevação do Acre a Estado por considerá-lo eleitoreiro, já que no entendimento de Passos, o Território não tinha ‘sustentação econômica’.

“Os brasileiros do Acre demonstram, há mais de meio século, capacidade, decisão e bravura para repelir violentamente a dominação estrangeira. Se essas qualidades tivessem sido convenientemente aproveitadas e orientadas na paz, como o foram na guerra, já que o Acre, por sem dúvida, estaria a brilhar na constelação dos Estados brasileiros, rico e próspero, hospitaleiro e feliz. Não houve este cuidado por parte de muitos dirigentes, impuseram-lhes o garrote da dominação dos homens pelos homens. Um feudo foi o que resultou de tanta bravura e esforço. […] Acorrentados pelo governo pela inevitável dependência econômica dificilmente poderão essas populações manifestar livremente a sua preferência política ou sequer a sua opinião sobre os detentores do poder local. Politicamente, o Acre e sua população nada lucrariam. […] A eleição do governador e da Assembleia Legislativa seria uma farsa. […] No momento presente como é público, a União entrega ao Acre mais de 300 milhões de cruzeiros por ano e arrecada, através das Mesas de Renda e Coletorias, apenas 3 ou 4 milhões. Com a emancipação do Território, a União não fornecerá mais essas verbas. […] Os 300 milhões terão que ser arrancados do próprio povo acreano”.

Oscar Passos. Considerações sobre a Autonomia do Território do Acre. In: BEZERRA, Maria José. Dossiê – Acervo: Guiomard Santos (Acre). Elevação do Acre a Estado. Rio Branco: Globo, 1982, p. 61-65

Balsas de borracha descem o Rio Acre, próximas da Gameleira/Foto: Arquivo/Museu da Borracha

Para Bezerra, o pensamento liberal de Oscar Passos, ao criticar o projeto de elevação do Acre a Estado, é pertinente: “Em primeiro lugar, nos anos 1950, com a crise da borracha pós-guerra, o Acre dependia quase que inteiramente dos recursos financeiros do governo federal, sendo o governo, como ainda é na atualidade, o maior empregador”.

“Porém, embora o projeto do Guiomard Santos tenha sido gestado de cima para baixo, ele buscou o referendo popular a partir da compreensão de que cabia aos representantes do poder político ‘guiar e instruir o povo’. Este era o papel do intelectual, do Estado, das instituições. A sua visão ideológica e política não admitia o conflito e a sociedade deveria ser harmônica e integradora”, completa a pesquisadora.

Charge de jornal da época criticando ação do governo federal; na legenda acima, o anúncio de que o “governo expediu ordens terminantes para que sigam batalhões do Exército para o Acre, com fim de sufocar o movimento revolucionário n’aquela região”. Foto: Redalyc.org

Jovem cruzeirense, professor e ex-militante da União Nacional dos Estudantes, José Augusto de Araújo era eleito para o cargo de primeiro governador do Acre constitucional. Paralelo a isso, “a elevação do Acre a Estado significaria, naquela conjuntura, a possibilidade de viabilizar um projeto de desenvolvimento para a região”, acrescenta.

Em 1957, como parlamentar da Câmara dos Deputados, Guiomard Santos incorporaria, por meio de um projeto de lei, as discussões que começaram lá em 1954, dentro do Congresso Nacional e fora dele. Esta seria a segunda proposta de Santos, já que que a primeira tinha sido em meados de 47, enquanto governador do Território.

Sede do Congresso Nacional nos anos 1950/Foto: Acervo/Câmara dos Deputados

Foi a partir de 1956 que os defensores do projeto de lei de Santos, que ganhara ainda mais visibilidade em nível nacional, começaram a se reunir com os mais diversos segmentos sociais e tornaram comum a elaboração e divulgação de manifestos, sobretudo de autoria do Comitê Pró-Autonomia do Acre, que abre esta reportagem.

Contudo, em 1958, os debates seguiriam ainda mais acalorados, com a oposição ao projeto de Santos – capitaneada por Oscar Passos –, sendo projetados também pela imprensa nacional. De um lado, a Associação dos Seringalistas do Acre e a Associação dos Seringueiros do Território Federal do Acre criticavam com veemência a possibilidade de uma elevação a Estado. O pensamento dos integrantes dessas instituições era o de que deixando de ser território, o Acre sofreria impactos muito negativos. “Uma desordem à vida econômica, mormente com a criação de impostos estaduais, além dos já existentes”, afirmavam.

Vista aérea da área onde hoje é a Praça da Revolução, o quartel da Polícia Militar do Estado do Acre e a Prefeitura de Rio Branco/Foto: Acervo/CDIH/Ufac

Do outro lado estavam outras instituições como a Sociedade Beneficente Operários de Rio Branco, a Sborba, que cumprimentava Santos, do PSD, por acreditar que seu gesto possibilitaria um passo decisivo para a independência econômica do estado muito em breve.

Relata ainda Bezerra que no dia 5 de junho de 1962, o projeto de lei foi finalmente encaminhado ao presidente João Goulart, pelo presidente do Senado Federal, Auro Moura Andrade, depois de meses de peregrinação pelos corredores do Congresso Nacional para análises e aprovações nas várias comissões. Neste mesmo dia, João Goulart “reconheceu o mérito do projeto e a sua importância para o desenvolvimento do Acre”, embora tenha apresentado veto parcial sobre algumas questões.

Dez dias depois, em solenidade no Palácio do Planalto, numa tarde do dia 15 de junho de 1962, o presidente João Goulart assinava a Lei n° 4.070, que elevaria o Território. Naquele momento, o Acre tornava-se mais um Estado brasileiro.

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