Destinos turísticos famosos como as praias de Jericoacoara (Ceará) e de Porto de Galinhas (Pernambuco) ou mesmo cidades bem visitadas no Sul do país, como Gramado (Rio Grande do Sul), têm sido ponto constante de abordagens agressivas de vendedores de cotas para a participação de quartos em resorts. Aos turistas, são oferecidos vouchers para jantares em restaurantes e até a promessa de diárias em hotéis. Tudo isso em troca de uma reunião para ser informado sobre as vantagens de comprar uma fração de um apartamento hoteleiro a ser construído.
Nesses encontros, vendedores fazem de tudo para que turistas assinem contratos de R$ 50 mil e até R$ 90 mil para a compra de parte desses imóveis. Com pouco tempo para pensar, há quem se comprometa a fechar o negócio, e, não raro, se arrependa depois. Mas aí já é tarde demais. A empresa enrola para responder e, no papel, o contrato pune quem se arrepende com multa.
Na Justiça e em canais de reclamações de consumidores, empresas do ramo são alvo de milhares de queixas pela dificuldade de rescindir contratos firmados no afogadilho após abordagens classificadas por eles como predatórias. Acumulam-se sentenças favoráveis a rescisões de contratos nos tribunais. A mais famosa do ramo, com 15 resorts em construção até 2025, no valor de R$ 6 bilhões, é a Gav Resorts, empresa que ostenta como seu garoto propaganda o cantor Gusttavo Lima.
Na prática, o que a Gav vende é muito lucrativo, sobretudo, para a própria empresa. Aos turistas, é oferecida uma fração de 26 avos de um apartamento em construção em um de seus resorts. O valor varia dos R$ 50 mil aos R$ 90 mil para cada cota. Em uma conta de padaria, se todas fossem vendidas por R$ 60 mil, com apenas um apartamento de pouco mais de 30 metros quadrados dentro de um hotel, a empresa faturaria R$ 1,56 milhão.
Ao comprador, a oferta é a seguinte: por uma cota do imóvel, ganha-se o direito de desfrutar o quarto de hotel 14 dias por ano, com datas controladas pela empresa. Também é mencionada a possibilidade de locação desse espaço pelo período ao qual se tem direito. Se as datas para uso do quarto forem ruins, ainda daria para tentar a permuta com outros donos de cotas de diferentes hotéis pelo país para aproveitar seus períodos em outras cidades.
Os empreendimentos, de fato, estão em construção, e não há execuções de fornecedores em cobranças de dívidas na Justiça. Isso mostra que, apesar dos problemas, o negócio tem parado em pé até aqui. No entanto, relatos e gravações obtidos pelo Metrópoles mostram o “lado b” da receita de tamanho sucesso.
“Retornos estratosféricos”
O Metrópoles obteve acesso a horas de vídeos que mostram abordagens da Gav Resorts nas ruas de cidades turísticas, com a oferta de vouchers, uma cervejinha e até espaços para crianças para atraí-los para os stands de venda. “Quer dar uma olhada, tomar uma cerveja e ver como é que funciona?”, indaga um vendedor a uma família com cachorro em Gramado (RS).
Assista:
Uma consultoria de investigações privadas colocou um infiltrado com câmeras para ouvir o que os corretores da empresa têm a dizer. Em meio a ofertas de cotas de apartamentos dos resorts em construção, eles prometem, segundo a consultoria, “retornos estratosféricos”. A estratégia pode esbarrar em normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que vedam a oferta de investimentos em cotas de imóveis sem devido registro e com promessa de rendimentos futuros.
Em uma dessas conversas gravadas, é ofertado um “pacote de investimentos”. Segundo o vendedor, a valorização do imóvel e a possibilidade de aluguel dariam, em tempo de vacas magras, pelo menos retorno de 2% ao mês sobre o valor do investimento, além de 16% — que podem chegar a 31% — anuais (assista abaixo). Neste cenário, o investimento no imóvel deixaria comendo poeira os índices de qualquer fundo de renda fixa. O pulo do gato está no fato de que essa promessa de retorno não consta nos contratos, preto no branco, mas é feita pelos vendedores antes de fechá-lo. Com as gravações, elas ficam evidentes.
“No valor de construtora, a gente faz o plano de investimento. O investidor precisa comprar pelo menos quatro cotas. Isso é o que eu falei: é agora, enquanto você aguentar minha presença perto de você”, diz o vendedor. Na sequência, ele afirma ao potencial investidor que já vendeu 38 cotas para o dono de uma conhecida loja de materiais de construção e decoração em hotéis renomados e que “até o Fasano no Rio de Janeiro tá vendendo multipropriedade [cotas]”.
O vendedor ainda calcula a projeção da compra das quatro cotas do tal “plano de investimento”, que sairiam por R$ 25 mil cada uma. “Aqui, R$ 49 mil, mais 16% em quatro anos, ele vai te dar R$ 88,7 mil. Se você tirar o seu investido de R$ 25,4 mil, são R$ 63 mil quanto ele estiver pronto. Só na valorização, você já ganhou uma cota e meia”, diz. Em outra abordagem, dessa vez, em Aracaju (SE), um vendedor admite: “Trabalhei em muitas empresas. As empresas proibiam falar em rentabilidade, porque sabia que não ia ganhar nada. Na Gav, ela não tem medo. Todo treinamento eles falam: fala do aluguel, fala sem medo”.
Assista:
O problema de abordagens assim é que elas podem eventualmente esbarrar em questões legais. Anos atrás, em meio a uma febre de construções de hotéis por cotas no Rio de Janeiro com promessas de investimentos, a Comissão de Valores Mobiliários resolveu regrar o assunto. Estabeleceu que oferta pública de contratos de investimento coletivo hoteleiro “vinculada à participação em resultado de empreendimento” depende de registro no órgão, algo que a Gav não tem. Mesmo se tivesse, segundo normas da CVM, não poderia prometer rentabilidade fixa.
O pesadelo
A reportagem identificou, somente em diários oficiais de Justiça, 700 demandas contra a GAV e empresas de seu grupo. De um lado, esses processos contam a história de clientes que compraram as cotas, acabaram se arrependendo, e não conseguiam rescindir seus contratos. Firmados na rua, eles podem ser rescindidos em até sete dias com devolução do valor. Depois disso, mesmo assim, não podem ter cláusulas que retenham a maior parte dos investimentos. De outro, ex-funcionários reclamam de uma rotina de pressão para empurrar as cotas para os clientes. Em ambos, há condenações da empresa.
Em um dos casos, por exemplo, um comprador do Acre afirmou que foi abordado na praia de Porto de Galinhas, em Ipojuca (CE), por um vendedor da Gav, que lhe ofereceu uma cota de R$ 50 em combustível para que ouvisse uma palestra no stand de venda. Chegando lá, sua filha pequena ficou em uma área para crianças. Disse ele à Justiça que o vendedor era insistente e que a cada negativa pela falta de recursos aparecia um novo superior hierárquico que oferecia champagne e tentava lhe “encurralar” de todas as maneiras possíveis.
Ele acabou fechando negócio e assinando um contrato sem ler o documento. Chegando em casa, logo se arrependeu, mas percebeu que cláusulas impunham que ele perdesse o valor do sinal, além de 50% da pequena entrada que deu quando assinou. Ao determinar a rescisão de contrato, a Justiça afirmou que a Gav, em “momento algum, demonstrou a correção de suas condutas; a prestação de informações e esclarecimentos prévios indispensáveis à adesão consciente aos produtos oferecidos”. A condenação foi confirmada em segunda instância.
Em um relato no site Reclame Aqui, um consumidor contou o mesmo roteiro, com bebidas e música alta, o que dificultava a compreensão dos números apresentados pelo vendedor. Ele disse que precisava pensar mais. Então, o tempo virou: “Vi a cara de soberba dela se fechar e falar exatamente assim: ‘É melhor eu ir pegar esse voucher então’, como se fosse uma esmola. A partir daí, a intenção dela era fazer a gente se sentir mal, com a nítida intenção de humilhar”, relata.
“O negócio fica bizarro. Você tem que realizar a compra na hora, nada de levar folheto pra casa e refletir sobre esse ‘investimento’ com calma. Você tem que decidir na hora, de imediato, em meio aquele som ensurdecedor diante de duas atendentes com perguntas inconvenientes que não param de falar um só segundo, como se a gente estivesse comprando um pastel. Não, não é um pastel, é um cota de um apartamento que você vai pagar durante 70 meses e poderá usufruir por apenas durante 14 dias ao longo do ano, se por algum acaso esse empreendimento algum dia ficar pronto, diga-se da passagem”, escreveu. Abaixo do relato, a Gav respondeu com um pedido de desculpas.
“Corredor polonês”
Na Justiça do Trabalho, há uma série de processos de ex-funcionários que pedem reconhecimento de vínculo empregatício porque eram contratados como pessoas jurídicas (PJs). Até aí, uma demanda corriqueira nos tribunais. Só que nos processos, eles também afirmam que trabalharam como corretores imobiliários sem sequer terem registro para tal atividade. Os relatos vão além e dizem que havia uma incessante pressão para empurrar as cotas a clientes.
O mais bombástico de todos resultou em uma condenação de R$ 112 mil a título de danos morais. Nele, o funcionário mostrou à Justiça vídeos de um suposto “corredor polonês” promovido por seu chefe para “punir” quem se atrasava para o trabalho. O superior mandava áudios com xingamentos à equipe. Disse ainda que os vendedores, compelidos por xingamentos e maus tratos, acabavam até fazendo pequenos pagamentos a garçons e barbeiros das cidades onde atuavam para tentar direcionar potenciais compradores.
“Dá um gás lá Ramon e se você ver algum captador intocado, na sombra ou na porra do celular boiando, me avisa [sic]. Quero muito mandar uns dois pra casa pra servir de boi de piranha”, disse o chefe em um dos áudios. Em mensagens nos grupos de WhatsApp, o mesmo chefe dizia uma série de outros palavrões. Em outro processo, a pressão também motivou a condenação da empresa a indenizar uma ex-funcionária em danos morais.
Gav diz que vendedores são autônomos
Procurado pelo Metrópoles, o Grupo Gav afirmou, por meio de nota, que “desconhece o teor dos elementos mencionados” pela reportagem e que, “em linhas gerais, esclarece dedicar-se à incorporação imobiliária nos termos da Lei 4.591/64, e venda dos imóveis respectivos em regime de multipropriedade, instituído pela Lei 13.777/18”. A empresa afirma que “não exerce atividade inerente a valores mobiliários”.
“Não vende cotas como investimento mobiliário, tampouco com rendimento fixo. Os empreendimentos são destinados à segunda moradia, férias, lazer familiar, e não têm como premissa especulação imobiliária. A intermediação de venda é realizada por profissionais liberais corretores imobiliários, não empregados, que
não estão autorizados a ofertar ou garantir qualquer característica mobiliária ao negócio”, afirma a empresa.
Segundo a empresa, “eventuais desvios de conduta, não são de conhecimento da direção, que irá promover apurações pertinentes e tomar as medidas cabíveis”. “O Grupo Gav não incorre em práticas abusivas em relação aos seus clientes e responde a todas menções no Reclame Aqui e resolve consensualmente à quase totalidade das reclamações e questionamentos que recebe, tendo um percentual muito reduzido de judicialização em relação à comercialização”, disse.
O Grupo GAV afirma ainda que “as pessoas envolvidas no processo são seu maior ativo” e que “não admite qualquer forma de assedio moral”. Ela diz manter “canais de comunicação de condutas inapropriadas, averiguação e providências necessárias” e que “há um índice ínfimo de demandas judiciais com tal contexto, em face do
contingente de colaboradores e prestadores de serviço na atividade”.
Em processos judiciais, a empresa tem defendido que as cláusulas de seus contratos não são abusivas e que dá ciência a todos os compradores em potencial de seus detalhes. Tem defendido a legitimidade da assinatura dos contratos e afirmado que não há provas de abordagem predatória. Nas ações na Justiça do Trabalho, a empresa rechaça que haja assédio moral e afirma que, em parte, ex-funcionários inventaram situações e até mesmo anexaram mensagens “montadas” aos autos.
No Reclame Aqui, a empresa tem pedido desculpas a consumidores que se sentiram vítimas de abordagens predatórias e se compromete a fazer “mudanças”. “Estamos revisando internamente os procedimentos adotados em nosso processo de apresentação e vendas para garantir que situações como essa não voltem a ocorrer. Faremos os ajustes necessários para garantir que todas as interações com nossos clientes sejam baseadas na honestidade, integridade e respeito mútuo”, disse a empresa, em uma das respostas.