Levou quase 30 anos desde a chegada do primeiro avião em Rio Branco para que o Acre começasse a receber aeronaves mais robustas, com capacidade de mais carga e passageiros, e comprovadamente, testadas a ferro e fogo no conflito da Segunda Guerra Mundial. Os lendários Douglas DC-3, a versão civil dos C-47, que despejavam paraquedistas nos campos da Europa sitiada por Adolf Hitler, dessa vez iriam contribuir para que o então Território Federal do Acre começasse a ser provido de todo o tipo de infraestrutura importada do sul e do sudeste do país.
Estes incríveis pássaros metálicos protagonizaram feitos extraordinários neste pedaço de Brasil, à época considerado o mais longínquo entre todas as regiões do país, como ferramenta importante para a expansão da indústria e da pecuária local.
Na reportagem, ContilNet relembra a saga desses aviões e seus operadores, abordando, por exemplo, o esforço dos governos de manter duas dessas aeronaves, de prefixos PP-ETE e PP-ENB, que permitiram ao Acre importar, acredite, até um apiário inteiro do Sul do país para impulsionar a produção de mel aqui.
Além de abelhas, foram comprados bovinos, prensas motorizadas para a fabricação de telhas de barro, tornos mecânicos para forjar peças para os automóveis locais, motores para usina de luz, além de serras e plainas para a construção de serrarias destinadas à construção de casas.
Num período em que não havia estradas ligando o Acre aos principais centros do país, os aviões Douglas DC-3 do governo local, do Correio Aéreo Nacional dos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul faziam eram fundamentais para a ponte aérea com os demais estados brasileiros.
Versatilidade permitia ao Acre importar quase tudo via aérea
Os esforços do governador Gladson Cameli de impulsionar o transporte aéreo regional, melhorando consideravelmente a infraestrutura aeroportuária do interior do estado, lembra muito a saga dos pioneiros na década de 1930.
E é a partir de 1960 que o Acre começa a receber voos de forma mais regular, tanto de cargas quanto de passageiros, e o Douglas DC-3, a aeronave a pistão comercial de maior produção no ocidente, foi o escolhido para operar, inclusive pelo Governo do Estado do Acre.
Já a Cruzeiro do Sul foi a primeira operadora desta aeronave no país e a primeira a ligar Rio Branco a várias outras cidades do país com uma malha que atendia de Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá, a Buenos Aires. O mais interessante é que até o município do Jordão, que na época era apenas uma comunidade pequena, chegou a receber os voos da Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul no Acre, embora o avião utilizado no comercial de revista da empresa fosse o alemão Junkers JU-52, e não o DC-3.
Em um vídeo de 30 minutos produzido à época por um empresa chamada Medeiros Filmes, a pedido do governador Guiomard Santos, há várias passagens mostrando, por exemplo, o apiário público em Rio Branco, que só foi possível graças a importação de abelhas do Rio Grande do Sul, de avião. Os aviões voltavam carregados de borracha para o beneficiamento em fábricas de São Paulo.
O rebanho bovino também foi ampliado gradativamente, depois que 52 cabeças de gado zebu foram transportadas em uma dezena de voos desde a cidade de Uberaba (MG). No entanto, para esse transporte de gado foram utilizados aviões C-46, Curtiss Commando, maiores que os Douglas DC-3. Os animais eram colocados em bretes improvisados dentro da aeronave.
Pelo menos 10.655 aeronaves foram produzidas, tendo o seu primeiro voo em 1935, a maioria versões militares para uso na Segunda Guerra Mundial. O objetivo era o transporte de cargas e de tropas em inúmeras missões. Foi somente com o fim do conflito que vários aparelhos, que eram utilizados pela Força Aérea dos Estados Unidos e pela Força Aérea Real, da Inglaterra, foram comercializados a preços irrisórios com as companhias aéreas pelo mundo.
No Brasil, pelo menos 252 exemplares voaram com finalidade de uso civil, num total de 97 operadores, segundo o livro ‘O Douglas DC-3 e C-47 no Brasil – Frotas de Operadores Civis’.
Aeronaves do Governo do Acre tiveram um triste fim
Os dois DC-3 do Governo do Estado do Acre, que participaram ativamente da integração aérea com o restante do país, tiveram destinos bem diferentes um do outro. O primeiro, de prefixo PP-ENB, foi usado até 1968, quando o então governador Jorge Kalume sancionou decreto doando a aeronave ao Ministério da Aeronáutica, que por sua vez, repassaria à Força Aérea Brasileira, a FAB.
Mas um rastreio na internet permitiu localizar a aeronave, que até 2020 encontrava-se encostada num campo de pouso em Assunção, capital do Paraguai. O DC-3 que pertenceu ao Governo do Acre, hoje faz parte do patrimônio da Força Aérea do Paraguai, mas sem condições de voo.
A outra aeronave, de prefixo PP-ETE, que também era do governo, se envolveu em um trágico acidente em 25 de janeiro de 2001, logo após a decolagem do aeroporto de Ciudad Bolívar, na Venezuela.
De acordo com o site AerialVisuals, pelo menos 24 pessoas morreram. O voo tinha como destino a cidade de Porlamar. O DC-3 levava turistas de volta da cidade de Canaima para Porlamar, quando fez uma parada em Ciudad Bolívar para reabastecimento.
Logo após a decolagem, problemas em um dos motores obrigou o piloto a retornar para o aeroporto de Ciudad Bolívar. No entanto, enquanto tentava retornar, perdeu o controle da aeronave e o DC-3 caiu sobre um residencial do bairro El Peru.
No Acre, acidentes e incidentes com o Douglas DC-3 também eram comuns. E um dos que causaram maior comoção social aconteceu no dia 28 de setembro de 1971, causando a morte do bispo Dom Giocondo Maria Grotti, em Sena Madureira.
A aeronave, de prefixo PP-CBV, batizada com o nome ‘América do Sul’, da empresa Cruzeiro do Sul, sofreu uma pane logo após a decolagem de Sena Madureira para Rio Brancoram com 33 a bordo, entre passageiros e tripulantes. Todos morreram.
A origem da Cruzeiro do Sul, principal operadora para o Acre
A Cruzeiro do Sul foi fundada a partir da Condor Syndikat, empresa controlada por sócios alemães e austríacos que iniciou suas operações em 1924. Em janeiro de 1927, veio a autorização para voos entre o Rio de Janeiro e o Rio Grande, transportando passageiros e malas postais.
Em 1943, numa tentativa de mostrar que se tratava de uma empresa brasileira, mudou seu nome para Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, na qual teve nos seus quadros de comandantes Raimundo Ribeiro e o radiotelegrafista Rubens Saab, os dois acreanos de Brasileia e de Xapuri, respectivamente.
Saab foi um dos pioneiros da radiotelecomunicação no Acre, sendo funcionário da Cruzeiro do Sul no interior do estado. ContilNet narra o episódio de um quase acidente com uma dessas aeronaves, no município de Tarauacá (a 440 quilômetros de Rio Branco).
Sob forte chuva, imprudência de comandante ‘muambeiro’ quase causa tragédia
O dia 12 de julho de 1968 amanheceu caindo água de tal maneira que nem sapo de óculos calçando Kichutes poderiam caminhar, em Tarauacá. As densas nuvens cumulonimbus que se formaram sobre a cidade reduziram os parâmetros mínimos de segurança para qualquer piloto insano que se atrevesse a aterrissar no aeródromo, na parte alta da cidade.
A bordo do Douglas DC-3 da Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, o radiotelegrafista José Armando Gonçalves envia um sinal em código morse para a base SBTK, o código internacional pelo qual o aeroporto é conhecido até hoje.
Em terra, Rubens de Oliveira Saab, então com 21 anos, recebe a seguinte mensagem em forma de bipes curtos alternados com longos que vão formar uma sopa de letras decodificada, ao fone de ouvido na cabeça, chamada de radiotelegrafia.
– Boa tarde, TK. O comandante quer saber se chove muito e quais as condições da pista.
– Boa tarde. Pista molhada, escorregadia e impraticável. Chuva forte nas últimas 24 horas – responde Saab.
– O comandante pergunta se está descendo pau – replica Gonçalves em tom de brincadeira.
– Não. Não está descendo pau. Só muita chuva. Pista molhada, escorregadia e impraticável. Chuva forte nas últimas 24 horas – repete Saab, a primeira mensagem.
– Vamos usar então os 200 metros pavimentados, declara o aviador –, para dizer que vai aterrissar mesmo sem condições climáticas para isso.
Com a aeronave no interior da intensa massa de ar chuvosa, ainda não se podia vê-la a partir do solo. Ouvia-se apenas o ronco inconfundível dos dois motores radiais de 14 cilindros Pratt & Whitney, de 1.200 h.p., indicando que a aeronave estava a baixa altura.
Dentro do DC-3, oito passageiros, algumas malas e muitos sacos de calças jeans da marca Lee, relógios Seiko, perfumes importados e outras quinquilharias de propriedade do comandante da aeronave e endereçadas aos comerciantes de Tarauacá.
A “carga extra” servirá de bico, um dinheiro por fora para o capitão, uma prática oficialmente desconhecida da companhia aérea, não se sabe se ela não tinha conhecimento do que ocorria ou se ignorava a conduta, na maioria dos voos ligando o sudeste do país às cidades mais remotas da Amazônia.
De repente, os potentes faróis de pouso cravados na barriga do Douglas DC-3 são vistos no horizonte. A aeronave está aproada para a cabeceira 15 e lentamente se aproxima do chão até tocar no primeiro centímetro de asfalto, a fim de correr somente as duas centenas de metros prometidas pelo capitão destemido.
Se ir um pouco mais além, o aparelho está fadado a varar a pista se espatifando no terreno acidentado onde até hoje há um barranco para fora da plataforma de pouso.
Caranguejando, o bólido metálico toca os trens principais nos primeiros metros da pista com o nariz arredondado para cima numa manobra chamada em aviação de pré-estol que visa evitar ao máximo correr muito sobre a pista.
Mas, em vez de reduzir a velocidade, a aeronave começa a saltar sobre o solo com a espessa lâmina d’água que não deixa os pneus aderirem ao asfalto. O avião desliza como se estivesse sobre cascas de banana em direção ao barranco. O trem da bequilha, o menorzinho que fica na ponta da cauda, voa sobre o prédio do aeroporto ao bater bruscamente contra o solo. Enlameado por completo, a máquina se assenta na grama. Um rombo de mais de meio metro de diâmetro na parte traseira da fuselagem é o saldo principal da imprudência da tripulação. Afora o susto, ninguém ficou ferido.
Por três meses, o Douglas da Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul ficou encostado no aeroporto de Tarauacá, até que mecânicos da empresa terminassem os reparos. Descobriu-se depois que o capitão da aeronave queria pousar em Tarauacá a qualquer custo para entregar a muamba que transportava.
“Sobre o boletim informando as condições da pista, que era retransmitido a Rio Branco para ciência da própria empresa, o comandante me pediu para falar com a capital para modificá-lo. A ideia era retirar o termo “impraticável” e deixar apenas “pista molhada e escorregadia”. Assim foi feito, pois se não acontecesse, daria demissão para ele”, diz o radiotelegrafista Rubens Saab, hoje com 77 anos.
Aposentado pelo já extinta Viação Aérea São Paulo, a Vasp, Saab é contemporâneo de um tempo em que a aviação no Acre, assim como em por toda a parte do Brasil e do mundo, era extremamente deficitária de tecnologias de proteção ao voo e regulamentos aéreos mais consistentes para coibir a indisciplina das tripulações de aeronaves comerciais.