A zona rural e as ruas acanhadas do município de Feijó, interior do Acre, algumas ainda de terra batida e enlameadas praticamente do mesmo jeito que estavam na época em que a cidade foi fundada, no início do século passado, serão pontos de locação de um documentário em forma de longa-metragem que vai contar uma das histórias mais fascinantes da região, que inclui os seringais às margens dos rios Tarauacá e Envira.
Trata-se da história de uma personagem conhecida por Maria do Liberdade, morta após um caso de violência sexual, ocorrido num seringal local, transformada em santa popular pelos seringueiros e outros moradores da localidade em função de autênticos milagres registrados a cada vez que necessitados a ela se dirigem com rogações de cura de doenças e outros males, como mordidas de cobras e, lá atrás, até de ferimentos por flechadas de indígenas arredios.
A Igreja Católica ainda não reconheceu a Santa
Embora haja depoimentos de milagres alcançados por quem crê na santa popular, a Igreja Católica, a quem cabe reconhecer milagres e canonizar seus santos, não reconhece Maria do Liberdade nesta condição. Há padres, no entanto, que apoiam a iniciativa de canonização popular e a Igreja local até permitiu a construção de uma capela na qual os devotos a cultuam.
A história de Maria do Liberdade será contada no documentário pelo historiador Marcos Vinicius Neves e o cineasta pernambucano Rodrigo Campos, que roteirizaram e dirigirão a produção. O filme em forma de documentário de longa-metragem está sendo produzido pela “Celestina Produções”, financiado através do Edital de Audiovisual Nº 006/2023 da Lei Paulo Gustavo, via Fundação de Cultura “Elias Mansour” (FEM).
A FEM é o órgão fomentador da cultura do Governo do Acre, que, nesta obra, financia a “Celestina Produções”. uma produtora cultural originária do Acre, com enfoque na riqueza cultural e artística amazônica.
A produtora foi fundada em 2016, com atuação destacada em projetos que celebram os povos da floresta e os indivíduos amazônicos. É uma produtora também especializada em iniciativas ligadas à literatura, audiovisual, design gráfico e pesquisa, “trazendo à luz as diversas expressões artísticas presentes na região”.
Marcos Vinicius Neves, Rodrigo Campos e Cecília Monteiro são os idealizadores da “Celestina Produções. Neves é um historiador e arqueólogo que há 30 anos trabalha desenvolvendo pesquisas e publicações sobre diferentes temas e aspectos da arqueologia, culturas e história da Amazônia Acreana. Foi diretor de Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do Acre e presidente da Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil, em Rio Branco, capital do Estado. Recebeu os títulos de cidadão acreano e de cidadão rio-branquense e segue atuando na publicação de livros e revistas; escrevendo para jornais locais e, ocasionalmente, para revistas nacionais; produzindo vídeo-documentários, montando exposições e veiculando conteúdo em redes digitais.
O outro roteirista do filme é Rodrigo Campos, diretor de cinema e TV. Ele desenvolve linguagem com foco em como fronteiras entre documentário e ficção podem conciliar a criação de significados. Escreveu e dirigiu documentários para canais de Tv brasileiros como os da série “Caixas Mágicas” (Curta, 2020,), “Linha Aberta” (Curta, 2019) e ”República da Poesia” (Curta, 2015).
Escreveu e dirigiu também dois curtas de ficção, Solo e Orbitantes, ambos exibidos e premiados em diversos festivais. O documentário “Siron.tempo sobre tela” (2019), seu primeiro longa-metragem, foi selecionado para a 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2019, para o Festival de Cinema de Brasília – 2019 e para o festival de cinema de Goiânia de 2020.
A direção da produção executiva é de Cecília Monteiro, uma especialista em Marketing e Comunicação, que atua há 20 anos no segmento da camunicação exercendo funções como redatora, publicitária e consultora de planejamento estratégico e empreendedorismo. Atualmente, dedica-se à produção de projetos culturais, artísticos e educacionais por meio da “Celestina Produções”.
É este o trio que vai contar a história da santa popular basicamente através de depoimentos de pessoas que conhecem a história e as lendas que a permeiam. “Não haverá alguém como protagonista. Todos os depoentes do documentário, em torno de 30 pessoas ou mais, serão protagonistas. E uma protagonização coletiva”, disse Marcos Vinicius Neves.
Gleici Damasceno e a violência contra mulheres no Acre
A atriz Gleici Damasceno, acreana ganhadora do BBB 18 e protagonista do premiado filme “Noites Alienígenas”, ganhador do último festival de cinema de Gramado (RS), que conta a história de Rivelino (Gabriel Knox), Sandra (Gleici Damasceno) e Paulo (Adanilo), três amigos de infância que cresceram em meio ao tráfico de drogas e a toda sorte de violência na periferia de Rio Branco, vai participar do documentário.
Ela será uma das depoentes que falarão no contexto da violência sexual contra mulheres no Acre, um dos estados do país mais perigosos para a vida de mulheres, seja pela violência doméstica de seus companheiros, seja por estupros praticados por estranhos mas também, e principalmente, por familiares – pais, avós, tios, irmãos, primos e outros agregados. Não é por acaso que o Acre figura nas estatísticas que monitoram a violência como um dos estados do país com os maiores índices de crimes de femicídios, aquele em que a vítima é abatida única e exclusivamente por sua condição feminina.
Para a surpresa de todos, o corpo da sepultada estava intacto, como se ela viva ainda estivesse. Nem suas roupas, apesar de tantos anos sepultada, entre os anos de 1908 a 1913, haviam sido corrompidas ou apodrecidas. Surpreso, o padre de origem italiana teria assentido que aquilo só poderia ser mesmo um milagre e resolveu tirar o corpo daquela sepultura improvisada na beira do rio e levá-lo para Roma.
Como no caso de Jesus Cristo, após três dias de sua morte na cruz, no santo sepulcro, o corpo da jovem, cuja idade é estimada à de uma adolescente, também desapareceu. Com o corpo, o padre também sumiu. No lugar da antiga sepultura, outros padres, com apoio de devotos, alguns ate empresários, ergueram uma igrejinha onde Santa Maria do Liberdade é cultuada de forma popular, embora com as bênçãos de padres locais.
Historiador revela o primeiro contato com a história e seu mitos
Marcos Vinicius Neves revela que seu primeiro contato com a história da santa popular se deu faz sete anos, quando ele andava pela região do Alto Rio Envira fazendo pesquisas de campo sobre outros assuntos. Antes da colonização, o município de Feijó tinha suas terras habitadas pelas etnias Jaminawás, Kaxinawás e Chacawás. Com a chegada dos migrantes nordestinos à foz do Rio Envira, em 1879, começou-se a desbravação da região, com homens subindo os rios e igarapés, demarcando os seus lotes de terras e até seringais.
Como não poderia ser diferente, houve reação dos habitantes originários daquelas terras. Ocorreram portanto, vários conflitos na selva entre os nordestinos e indígenas por conta da desocupação dessas áreas de terras, que pouco tempo depois transformaram-se em seringais. É neste contexto que surge, à margem esquerda do Rio Envira, o Seringal Porto Alegre, que mais tarde deu origem ao município de Feijó.
Após alguns anos o seringal tornou-se um vilarejo, e em 13 de maio de 1906 foi elevado à categoria de vila sob a denominação de Feijó, em homenagem ao padre Diogo Antônio Feijó, político da época do Brasil Império que foi escolhido para ser homenageado até os dias atuais.
Cegos que passam a ver e seringueiros curados de mordidas de cobras
Marcos Vinicius pesquisava o I-uirá, como era originalmente chamado o Rio Envira, na língua dos povos originários do lugar cujo significado em português seria “Rio dos Pássaros”. Foi subindo o “Rio dos Pássaros” em busca do Porto Rubin, onde começa o rio, que segue pelos seringais Califórnia e Liberdade, de sete a cinco dias de barco a motor, desde Feijó, que o historiador começou a ouvir os primeiros relatos sobre a santa. “Contam que foi nesse seringal Liberdade que uma menina, por nome Maria, e seu irmão Dico, viveram uma tragédia que resultou na morte de Maria. Uma história que, desde sempre, guarda muitos mistérios, tantas são as histórias diferentes que o povo conta”, revelou Vinicius Neves.
“Depois da morte de Maria, as pessoas de todo Envira, começaram a rogar por ela nos momentos de dificuldade e foram atendidos. Tantas, que nem dá de contar… Seringueiro flechado por brabo, na mata, que pediu à alma dela e, de repente, as flechas saíram de sua perna, o sangue engrossou, até chegar na colocação. Mulher cega que voltou a enxergar no momento em que avistou, lá no fim do estirão, o lugar do túmulo de Santa Maria do Liberdade. Tantas e tantas meninas nascidas e batizadas como Maria da ou do Liberdade desde então, porque não teriam sobrevivido ao parto, sem sua intercessão. Histórias de fé, muita fé”, acrescentou.
De acordo com o historiador, em torno da santa, “são tantos mistérios bonitos naquele lugar do seringal Liberdade: flores ao redor do túmulo sempre verdes, mesmo quando a seca queima tudo em volta; aquela samaúma bonita que fica, também, junto ao túmulo e onde, de vez em quando, se diz ver a Santa; um perfume forte e doce que se espalha desde a terra por todo aquele alto, à margem do rio, e enche o coração de quem sente; um lugar que traz paz a quantos por lá chegam, aflitos, em busca de auxílio. E mesmo quando vem a quebradeira dos barrancos, que toma conta do Rio Envira em todos os períodos invernosos, e quebra tudo em redor, nada quebra no barranco do túmulo de Santa Maria do Liberdade. É o que conta o povo de lá”, conclui o historiador.
E a devoção à santa se espalhou rio abaixo e rios acimas, pelo Jurupari, Tarauacá, Muru, Juruá e outros. Os seringueiros até ergueram um cruzeiro e uma capela em torno do túmulo de Maria. Primeiro de madeira e palha, anos depois de alvenaria, Um homem que pediu discrição quanto à sua identificação e que teve socorro da santa numa grande aflição, deu à ela muito gado, que ficou por ali mesmo no campo em volta da capela e serviu de alimento a todo o povo daquelas beiras de rio e de floresta, num período em que os animais de caça começaram a sumir até ficarem escassos.
Um milagre da multiplicação dos bois, mais uma semelhança com os milagres de Jesus Cristo.
Uma imagem misteriosa: Santa Catarina Labouré ou Maria do Liberdade?
O historiador disse que fez perguntas sobre a imagem. “Só ouvi duas meias frases: “quem pintou, acho que foi a irmã do Padre Alberto” e “parece que é inspirada numa santa de Paris”. Sobre a primeira meia frase, temos a assinatura, Maria Humih SND, no quadro e a informação de que ela era, na verdade, uma Irmã de Notre Dame, uma ordem de raízes francesa e alemã que chegou no Acre, a partir dos anos 70, junto com os maristas. Mas, sobre a segunda questão, encontrei um pouco mais”, disse Vinicius Neves.
“A santa de Paris parece se referir à Santa Catarina Labouré que, em 1830, teve um encontro com a Virgem Maria, como Nossa Senhora da Conceição. Nesse encontro Catarina foi avisada de tempos difíceis que iriam se abater sobre a França e que só o poder da fé poderia enfrentar e vencer. Surgiu, das revelações de Maria à Catarina, a medalha milagrosa de Maria, que se espalhou pelo mundo inteiro, como uma bênção dela para vencer as dificuldades. A imagem que inspirou o quadro de Feijó, na verdade, não retrata a santa de Paris, Catarina, mas sim Santa Maria como foi vista por Catarina: sobre o mundo, com raios de luz saindo das mãos espalmadas”.
“A diferença é que Santa Maria do Liberdade foi pintada como uma menina e tem uma cruz atrás de si o que remete de novo para imagem da medalha milagrosa. A imagem da medalha foi vista, em todos os seus detalhes por Catarina. E a medalha tem Nossa Senhora da Conceição de um lado e a Cruz do outro. Portanto, no quadro de Santa Maria da Liberdade vemos a frente e o verso da medalha milagrosa ao mesmo tempo, como se ela fosse translucida, com Maria à frente da cruz”, revela Vinicus Neves.
O que foi feito de Dico, o irmão de Maria?
As romarias de barco até o Seringa Liberdade, ao longo do tempo, se tornaram grandes, acrescenta o historiado. “E, mesmo com a morte de padre Alberto, em 1983, a igreja de Feijó continuou crescendo. Hoje é bonita, bem construída e mantida. A única coisa que mudou foi que passou a ser chamada de Paróquia Comunidade Maria do Liberdade”, disse.
A bem da verdade, para a fé do povo, tanto faz se o corpo de Maria está ou não em seu túmulo/capela, no Liberdade do Alto Envira, ou em Roma. No dizer dos que têm fé nela: “podem ter levado o corpo, mas não levaram o poder de Deus!” Talvez seja por isso que os devotos consideram que a terra do túmulo de Santa Maria da Liberdade é milagrosa, ao ponto de o digerirem in natura ou em forma de chás.
“Desde o inicio dessa história toda, me atraiu a origem, a ponta do fio da meada. Quem foram Maria e Dico? Eram só os dois? Não tinham outros irmãos? Como eles viviam? É possível ainda saber o que aconteceu? E o Dico, depois de tudo? E eu quis saber sobre a vida deles porque me pareceu que, na medida em que vamos nos envolvendo na história da Santa Maria do Liberdade, vamos apagando, mesmo sem querer, a história de uma menina chamada Maria e seu irmão Dico. O que seria injusto”, acrescenta o pesquisador.
“Por isso, não consegui esquecer a história dos dois, singelo olho d’água d’onde brolhou um igarapé cristalino, rico de histórias sagradas e sentimentos antigos. Dois jovens comuns. Apenas mais dois que teriam passado por nosso mundo, feroz e injusto, ontem como hoje, de maneira invisível e anônima, como quase todos nós, não fosse terem vivido uma história tão extraordinária e poderosa, daquelas que parece poder tocar a eternidade, que deu origem a tantas histórias, mistérios e milagres. Tantas, que é difícil demais… parar de contar”, disse.
De acordo com Vinicus Neves, esta é mesmo uma história rara. “Não é para ser esquecida. É como prece, precisa ser falada, dita, contada, cantada. E, como o leitor pode ver, falta muito ainda para entender e para contar… Mas, sempre chega a hora de voltar. Mesmo nas viagens mais difíceis ou longínquas, em que nos jogamos de corpo e alma, sempre chega a hora de voltar pra casa. Graças a Deus! Sinto que vou continuar a pensar e rezar por Santa Maria do Liberdade, sempre, e, toda vez, que for de necessidade”, diz o pesquisador fugindo do roteiro pronto segundo o qual todo o historiador, por formação, é ateu.
Marcus Vinicius Neves revela ainda uma curiosidade sobre o assunto. “O que me pareceu ainda mais curioso, foi o fato de que, 57 anos depois da morte de Santa Catarina Labouré, seu corpo foi retirado para ser transferido para a igreja onde ela havia tido a visão de Maria e ele ainda estava incorrupto e flexível, com um grau de conservação espantoso. E, continua assim até hoje, a julgar pelas imagens e informações da Internet. Ou seja, a meia frase que me foi dita poderia significar que a imagem de Santa Maria da Liberdade foi inspirada na imagem da Virgem Maria vista pela Santa de Paris, que tem o corpo incorrupto, como nossa Santa Maria do Liberdade. Será que Padre Alberto e a irmã Maria sabiam de algo, além do que pudemos saber, sobre o “corpo santo” de nossa Maria do Liberdade, por isso a referência na imagem?”, pergunta o historiador.
As respostas estão sendo buscadas nos depoimentos que começam a ser gravados ainda este mês. Não há data para lançamento do filme.