Documentário vai contar história da Santa Maria Liberdade, um mito dos seringais de Feijó, no Acre

Vítima de violência sexual, Maria é cultuada como santa na região desde o século passado e faria milagres aos devotos que rogam por sua ajuda; filme e financiado pela Fundação de Cultura do Governo do Acre

A zona rural e as ruas acanhadas do município de Feijó, interior do Acre, algumas ainda de terra batida e enlameadas praticamente do mesmo jeito que estavam na época em que a cidade foi fundada, no início do século passado, serão pontos de locação de um documentário em forma de longa-metragem que vai contar uma das histórias mais fascinantes da região, que inclui os seringais às margens dos rios Tarauacá e Envira.

Trata-se da história de uma personagem conhecida por Maria do Liberdade, morta após um caso de violência sexual, ocorrido num seringal local, transformada em santa popular pelos seringueiros e outros moradores da localidade em função de autênticos milagres registrados a cada vez que necessitados a ela se dirigem com rogações de cura de doenças e outros males, como mordidas de cobras e, lá atrás, até de ferimentos por flechadas de indígenas arredios.

Imagem da Santa Maria da Liberdade/Foto: Arquivo Pessoal

Entre os muitos milagres ocorridos a partir da evocação ao nome da santa está a ingestão de chá ou mesmo do barro in natura do local em que a então jovem Maria do Livramento, seu nome verdadeiro, teria sido sepultada após ser morta num caso de estupro seguido de assassinato. Quem tem fé e tomou o chá ou comeu o barro do local diz ter sido curado de doenças diversas, principalmente estomacais.

O filme terá tempo estimado em até 1h40 de duração e está batizado provisoriamente como “Maria Liberdade, a Santa do Rio dos Pássaros”.

Pequena igreja onde a santa teria sido sepultada/Foto: Reprodução

A Igreja Católica ainda não reconheceu a Santa

Embora haja depoimentos de milagres alcançados por quem crê na santa popular, a Igreja Católica, a quem cabe reconhecer milagres e canonizar seus santos, não reconhece Maria do Liberdade nesta condição. Há padres, no entanto, que apoiam a iniciativa de canonização popular e a Igreja local até permitiu a construção de uma capela na qual os devotos a cultuam.

A história de Maria do Liberdade será contada no documentário pelo historiador Marcos Vinicius Neves e o cineasta pernambucano Rodrigo Campos, que roteirizaram e dirigirão a produção. O filme em forma de documentário de longa-metragem está sendo produzido pela “Celestina Produções”, financiado através do Edital de Audiovisual Nº 006/2023 da Lei Paulo Gustavo, via Fundação de Cultura “Elias Mansour” (FEM).

A FEM é o órgão fomentador da cultura do Governo do Acre, que, nesta obra, financia a “Celestina Produções”. uma produtora cultural originária do Acre, com enfoque na riqueza cultural e artística amazônica.

A produtora foi fundada em 2016, com atuação destacada em projetos que celebram os povos da floresta e os indivíduos amazônicos. É uma produtora também especializada em iniciativas ligadas à literatura, audiovisual, design gráfico e pesquisa, “trazendo à luz as diversas expressões artísticas presentes na região”.

Historiador Marcos Vinicius Neves/Foto cedida

Marcos Vinicius Neves, Rodrigo Campos e Cecília Monteiro são os idealizadores da “Celestina Produções. Neves é um historiador e arqueólogo que há 30 anos trabalha desenvolvendo pesquisas e publicações sobre diferentes temas e aspectos da arqueologia, culturas e história da Amazônia Acreana. Foi diretor de Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do Acre e presidente da Fundação Municipal de Cultura Garibaldi Brasil, em Rio Branco, capital do Estado. Recebeu os títulos de cidadão acreano e de cidadão rio-branquense e segue atuando na publicação de livros e revistas; escrevendo para jornais locais e, ocasionalmente, para revistas nacionais; produzindo vídeo-documentários, montando exposições e veiculando conteúdo em redes digitais.

O outro roteirista do filme é Rodrigo Campos, diretor de cinema e TV. Ele desenvolve linguagem com foco em como fronteiras entre documentário e ficção podem conciliar a criação de significados. Escreveu e dirigiu documentários para canais de Tv brasileiros como os da série “Caixas Mágicas” (Curta, 2020,), “Linha Aberta” (Curta, 2019) e ”República da Poesia” (Curta, 2015).

Escreveu e dirigiu também dois curtas de ficção, Solo e Orbitantes, ambos exibidos e premiados em diversos festivais. O documentário “Siron.tempo sobre tela” (2019), seu primeiro longa-metragem, foi selecionado para a 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – 2019, para o Festival de Cinema de Brasília – 2019 e para o festival de cinema de Goiânia de 2020.

A direção da produção executiva é de Cecília Monteiro, uma especialista em Marketing e Comunicação, que atua há 20 anos no segmento da camunicação exercendo funções como redatora, publicitária e consultora de planejamento estratégico e empreendedorismo. Atualmente, dedica-se à produção de projetos culturais, artísticos e educacionais por meio da “Celestina Produções”.

É este o trio que vai contar a história da santa popular basicamente através de depoimentos de pessoas que conhecem a história e as lendas que a permeiam. “Não haverá alguém como protagonista. Todos os depoentes do documentário, em torno de 30 pessoas ou mais, serão protagonistas. E uma protagonização coletiva”, disse Marcos Vinicius Neves.

Gleici Damasceno e a violência contra mulheres no Acre

A atriz Gleici Damasceno, acreana ganhadora do BBB 18 e protagonista do premiado filme “Noites Alienígenas”, ganhador do último festival de cinema de Gramado (RS), que conta a história de Rivelino (Gabriel Knox), Sandra (Gleici Damasceno) e Paulo (Adanilo), três amigos de infância que cresceram em meio ao tráfico de drogas e a toda sorte de violência na periferia de Rio Branco, vai participar do documentário.

Ela será uma das depoentes que falarão no contexto da violência sexual contra mulheres no Acre, um dos estados do país mais perigosos para a vida de mulheres, seja pela violência doméstica de seus companheiros, seja por estupros praticados por estranhos mas também, e principalmente, por familiares – pais, avós, tios, irmãos, primos e outros agregados. Não é por acaso que o Acre figura nas estatísticas que monitoram a violência como um dos estados do país com os maiores índices de crimes de femicídios, aquele em que a vítima é abatida única e exclusivamente por sua condição feminina.

Gleici Damasceno/Foto: Reprodução

“Seria impossível a gente levar ao cinema a imagem de uma santa, por melhor que seja a atriz, numa personificação quase impossível, já que os registros sobre a existência da personagem são muitas confusos e com outras muitas histórias e mitologias em seu entorno”, disse Marcos Vinicius Neves.

Os mitos em torno da santa envolvem o sumiço de seu corpo, que teria sido arrancado de uma sepultura improvisada à margem do rio Envira, no Seringal Liberdade. De acordo com os depoimentos da mitologia do entorno da santa, um padre local de origem italiana, identificado como José Frisch, começou a ouvir histórias de seringueiros que relatavam terem alcançado milagres ao fazerem pedidos à santa popular.

Diziam os seringueiros que ao redor da sepultura improvisada da vítima de violência sexual, na beira do rio Envira, já nas cabeceiras do manancial, havia cheiros de rosas e que roserais ali floresciam sem que houvessem sido plantados ou cuidados por mãos humanas. O padre então resolveu verificar o caso in loco. Mandou a abrir a sepultura.

Rio Envira: O majestoso Rio dos Pássaros, cenário das histórias e milagres atribuídos a Santa Maria da Liberdade/Foto: Reprodução

Para a surpresa de todos, o corpo da sepultada estava intacto, como se ela viva ainda estivesse. Nem suas roupas, apesar de tantos anos sepultada, entre os anos de 1908 a 1913, haviam sido corrompidas ou apodrecidas. Surpreso, o padre de origem italiana teria assentido que aquilo só poderia ser mesmo um milagre e resolveu tirar o corpo daquela sepultura improvisada na beira do rio e levá-lo para Roma.

Como no caso de Jesus Cristo, após três dias de sua morte na cruz, no santo sepulcro, o corpo da jovem, cuja idade é estimada à de uma adolescente, também desapareceu. Com o corpo, o padre também sumiu. No lugar da antiga sepultura, outros padres, com apoio de devotos, alguns ate empresários, ergueram uma igrejinha onde Santa Maria do Liberdade é cultuada de forma popular, embora com as bênçãos de padres locais.

Registro de batismo com o nome do padre que teria dado sumiço ao corpo/Foto: Arquivo Pessoal

Historiador revela o primeiro contato com a história e seu mitos

Marcos Vinicius Neves revela que seu primeiro contato com a história da santa popular se deu faz sete anos, quando ele andava pela região do Alto Rio Envira fazendo pesquisas de campo sobre outros assuntos. Antes da colonização, o município de Feijó tinha suas terras habitadas pelas etnias Jaminawás, Kaxinawás e Chacawás. Com a chegada dos migrantes nordestinos à foz do Rio Envira, em 1879, começou-se a desbravação da região, com homens subindo os rios e igarapés, demarcando os seus lotes de terras e até seringais.

Como não poderia ser diferente, houve reação dos habitantes originários daquelas terras. Ocorreram portanto, vários conflitos na selva entre os nordestinos e indígenas por conta da desocupação dessas áreas de terras, que pouco tempo depois transformaram-se em seringais. É neste contexto que surge, à margem esquerda do Rio Envira, o Seringal Porto Alegre, que mais tarde deu origem ao município de Feijó.

Após alguns anos o seringal tornou-se um vilarejo, e em 13 de maio de 1906 foi elevado à categoria de vila sob a denominação de Feijó, em homenagem ao padre Diogo Antônio Feijó, político da época do Brasil Império que foi escolhido para ser homenageado até os dias atuais.

Neste local, há mais de um século, as margens do rio Envira testemunharam a transformação de uma área selvagem em uma próspera comunidade/Foto: Reprodução

Cegos que passam a ver e seringueiros curados de mordidas de cobras

Marcos Vinicius pesquisava o I-uirá, como era originalmente chamado o Rio Envira, na língua dos povos originários do lugar cujo significado em português seria “Rio dos Pássaros”. Foi subindo o “Rio dos Pássaros” em busca do Porto Rubin, onde começa o rio, que segue pelos seringais Califórnia e Liberdade, de sete a cinco dias de barco a motor, desde Feijó, que o historiador começou a ouvir os primeiros relatos sobre a santa. “Contam que foi nesse seringal Liberdade que uma menina, por nome Maria, e seu irmão Dico, viveram uma tragédia que resultou na morte de Maria. Uma história que, desde sempre, guarda muitos mistérios, tantas são as histórias diferentes que o povo conta”, revelou Vinicius Neves.

“Depois da morte de Maria, as pessoas de todo Envira, começaram a rogar por ela nos momentos de dificuldade e foram atendidos. Tantas, que nem dá de contar… Seringueiro flechado por brabo, na mata, que pediu à alma dela e, de repente, as flechas saíram de sua perna, o sangue engrossou, até chegar na colocação. Mulher cega que voltou a enxergar no momento em que avistou, lá no fim do estirão, o lugar do túmulo de Santa Maria do Liberdade. Tantas e tantas meninas nascidas e batizadas como Maria da ou do Liberdade desde então, porque não teriam sobrevivido ao parto, sem sua intercessão. Histórias de fé, muita fé”, acrescentou.

De acordo com o historiador, em torno da santa, “são tantos mistérios bonitos naquele lugar do seringal Liberdade: flores ao redor do túmulo sempre verdes, mesmo quando a seca queima tudo em volta; aquela samaúma bonita que fica, também, junto ao túmulo e onde, de vez em quando, se diz ver a Santa; um perfume forte e doce que se espalha desde a terra por todo aquele alto, à margem do rio, e enche o coração de quem sente; um lugar que traz paz a quantos por lá chegam, aflitos, em busca de auxílio. E mesmo quando vem a quebradeira dos barrancos, que toma conta do Rio Envira em todos os períodos invernosos, e quebra tudo em redor, nada quebra no barranco do túmulo de Santa Maria do Liberdade. É o que conta o povo de lá”, conclui o historiador.

E a devoção à santa se espalhou rio abaixo e rios acimas, pelo Jurupari, Tarauacá, Muru, Juruá e outros. Os seringueiros até ergueram um cruzeiro e uma capela em torno do túmulo de Maria. Primeiro de madeira e palha, anos depois de alvenaria, Um homem que pediu discrição quanto à sua identificação e que teve socorro da santa numa grande aflição, deu à ela muito gado, que ficou por ali mesmo no campo em volta da capela e serviu de alimento a todo o povo daquelas beiras de rio e de floresta, num período em que os animais de caça começaram a sumir até ficarem escassos.

Um milagre da multiplicação dos bois, mais uma semelhança com os milagres de Jesus Cristo.

Histórias Sagradas: Marcos Vinicius compartilha relatos sobre a vida e os milagres atribuídos a Santa Maria da Liberdade/Foto: Reprodução

“Mas, isso eu só ouvi dizer, não sei se foi verdade. O que eu sei mesmo é que teve um tempo em que se juntaram e construíram, lá por trás da capela, uma hospedaria para abrigar o povo, que vinha de tudo quanto era canto, pra pagar suas promessas, ou pedir bênçãos, à Santa Maria do Liberdade. Foi muita gente que fez, cada um com o pouco que podia, mas fez. História bonita: tem tempo isso”, disse ao ContilNet o historiador.

Quando a história parece clarear, de acordo com o historiador, “aparece uma espécie de balseiro de histórico, tornando a história a ficar mais difícil de ser desvendada, “porque muita gente conta, também, que o corpo de Maria ficou incorrupto”. “Mesmo tendo passado muito tempo de sua morte. Aliás, têm várias narrativas que lembram que as roupas dela também estavam intactas, outras acrescentam as flores vivinhas que estavam sobre seu corpo. Mas, sobre isso, as versões variam tanto que não dá para saber ainda em que circunstâncias se depararam com o “corpo santo”.

Corpo da Santa, assim como o de Cristo, desapareceu

E é exatamente nesse ponto, que entra em cena a Igreja, já que o povo afirma que o corpo da Santa Maria do Liberdade foi levado, em segredo, para Roma. “Curiosamente, muitas das narrativas que ouvi, sobre isso, são tão ricas em detalhes e afirmações testemunhais que aumentam a desconfiança de que realmente algum sacerdote católico tenha exumado e levado o corpo dela. Se para Roma, na Itália, ou para Alemanha, se por ordens superiores ou não, com quais intenções e objetivos, não sei. Essas já são outras histórias, mais difíceis de confirmar. Sei que as narrativas falaram de um Monsenhor, de Bispos e de soldados levando o corpo. E três, ou quatro, pessoas falaram de um tal padre Fritz, Fites, José Fliutes”, disse Vinicius Neves.

Nesse tempo, os rios do alto Juruá já pertenciam aos padres espiritanos da província francesa que, entre 1900 e 1930, ficavam baseados nas cidades de Cruzeiro do Sul e Tarauacá e, mais tarde, também na vila Feijó. A partir das cidades, os padres de diferentes nacionalidades, subiam os rios, fazendo as desobrigas, celebrando os sacramentos e cobrando o cumprimento das leis e taxas da Igreja, num tempo em que sacerdotes católicos tinham enorme influencia e poder na sociedade. “E, vejam só, que coincidência! Entre esses espiritanos, havia mesmo um Monsenhor Miguel Barrat e o padre José Victor Fritsch”, revelou o historiador.

O fato de o padre Fritsch ter atuado como pároco nomeado no Tarauacá, que abrangia também o Envira e os outros rios, entre 1918 e 1934, não significa que o “padre José Fliutes” retirou mesmo o “corpo santo” de Maria, “na era de 30”, como afirmou, categoricamente um rezador nascido no seringal Califórnia, vizinho do Liberdade, em 1927.. “Mas, que aumenta muito a possibilidade, parece não haver dúvida… Ainda mais se levarmos em conta que o rezador, que vamos identificar por seu Seu M cresceu e viveu a vida toda nesse trecho de rio e deu informações muito precisas sobre os “homens de verdade” dos seringais do Envira. Tão precisas que foi possível confirmar muitas delas em mapas e fontes históricas. Absurda a memória e alegria desse homem de noventa anos.”, disse. “Penso que está claro que não estou afirmando que essas duas histórias: a do corpo incorrupto de Maria e a de sua exumação, e envio para fora do Acre, pela Igreja, sejam reais. Mas, acredito que é preciso saber mais a esse respeito. Por respeito, até”.

De acordo com Marcos Vinicius, de um jeito ou de outro, a devoção à Santa Maria do Liberdade seguiu forte entre o povo das beiras dos rios e da matas. Nas cidades mesmo, Feijó e Tarauacá, ficou sempre mais velada a conversa sobre aquela santa cheia de segredos e mistérios e milagres.

“Chegaram os anos 70 e tudo mudou no Acre. O tempo da borracha estava acabado de vez e a vida nos rios nunca mais seria a mesma. A chegada de novos personagens, a maioria sulistas, só confirmava as mudanças. Entre estes, chegou Padre Alberto, marista, outra ordem de origem francesa. Aliás, o primeiro e único sacerdote a ter sido ordenado padre em Feijó, até hoje. E, de alguma maneira que ainda não consegui saber, ele se envolveu com a devoção popular à Santa Maria do Liberdade e decidiu construir uma capela dedicada a ela na cidade, em Feijó. Origem de outra infinidade de histórias. A capela de padre Alberto se tornou uma igreja, que se tornou uma paróquia. Muitas mulheres da cidade, avós e mães e filhas, que já cantavam suas orações e benditos em louvor de Santa Maria da Liberdade, há tempos, passaram a rezar lá. Muitas que continuavam a subir o Envira todos os anos, para cumprir sua devoção à Santa, agora também podiam pagar suas promessas na cidade. Então surgiu um quadro. Uma imagem de Santa Maria do Liberdade. Uma menina de mãos espalmadas, em cima do mundo, emanando luz, com uma cruz por detrás. Uma imagem que ainda está na Igreja da cidade, onde recebe os pedidos e preces à Santa. Mas, também está espalhada, em tamanho menor, em muitas casas das senhoras de Feijó. E está posta, como tinha que ser, na capela/túmulo de Maria no Liberdade”, acrescentou.

Devitas no interior da igreja da Santa, popular em Feijó/Foto: Arquivo pessoal

Uma imagem misteriosa: Santa Catarina Labouré ou Maria do Liberdade?

O historiador disse que fez perguntas sobre a imagem. “Só ouvi duas meias frases: “quem pintou, acho que foi a irmã do Padre Alberto” e “parece que é inspirada numa santa de Paris”. Sobre a primeira meia frase, temos a assinatura, Maria Humih SND, no quadro e a informação de que ela era, na verdade, uma Irmã de Notre Dame, uma ordem de raízes francesa e alemã que chegou no Acre, a partir dos anos 70, junto com os maristas. Mas, sobre a segunda questão, encontrei um pouco mais”, disse Vinicius Neves.

“A santa de Paris parece se referir à Santa Catarina Labouré que, em 1830, teve um encontro com a Virgem Maria, como Nossa Senhora da Conceição. Nesse encontro Catarina foi avisada de tempos difíceis que iriam se abater sobre a França e que só o poder da fé poderia enfrentar e vencer. Surgiu, das revelações de Maria à Catarina, a medalha milagrosa de Maria, que se espalhou pelo mundo inteiro, como uma bênção dela para vencer as dificuldades. A imagem que inspirou o quadro de Feijó, na verdade, não retrata a santa de Paris, Catarina, mas sim Santa Maria como foi vista por Catarina: sobre o mundo, com raios de luz saindo das mãos espalmadas”.

Visão de Catarina, 27 de nov. 1830/Foto: Reprodução

“A diferença é que Santa Maria do Liberdade foi pintada como uma menina e tem uma cruz atrás de si o que remete de novo para imagem da medalha milagrosa. A imagem da medalha foi vista, em todos os seus detalhes por Catarina. E a medalha tem Nossa Senhora da Conceição de um lado e a Cruz do outro. Portanto, no quadro de Santa Maria da Liberdade vemos a frente e o verso da medalha milagrosa ao mesmo tempo, como se ela fosse translucida, com Maria à frente da cruz”, revela Vinicus Neves.

Corpo incorrupto e flexível de Santa Catarina Labouré/Foto: Reprodução

O que foi feito de Dico, o irmão de Maria?

As romarias de barco até o Seringa Liberdade, ao longo do tempo, se tornaram grandes, acrescenta o historiado. “E, mesmo com a morte de padre Alberto, em 1983, a igreja de Feijó continuou crescendo. Hoje é bonita, bem construída e mantida. A única coisa que mudou foi que passou a ser chamada de Paróquia Comunidade Maria do Liberdade”, disse.

A bem da verdade, para a fé do povo, tanto faz se o corpo de Maria está ou não em seu túmulo/capela, no Liberdade do Alto Envira, ou em Roma. No dizer dos que têm fé nela: “podem ter levado o corpo, mas não levaram o poder de Deus!” Talvez seja por isso que os devotos consideram que a terra do túmulo de Santa Maria da Liberdade é milagrosa, ao ponto de o digerirem in natura ou em forma de chás.

“Desde o inicio dessa história toda, me atraiu a origem, a ponta do fio da meada. Quem foram Maria e Dico? Eram só os dois? Não tinham outros irmãos? Como eles viviam? É possível ainda saber o que aconteceu? E o Dico, depois de tudo? E eu quis saber sobre a vida deles porque me pareceu que, na medida em que vamos nos envolvendo na história da Santa Maria do Liberdade, vamos apagando, mesmo sem querer, a história de uma menina chamada Maria e seu irmão Dico. O que seria injusto”, acrescenta o pesquisador.

“Por isso, não consegui esquecer a história dos dois, singelo olho d’água d’onde brolhou um igarapé cristalino, rico de histórias sagradas e sentimentos antigos. Dois jovens comuns. Apenas mais dois que teriam passado por nosso mundo, feroz e injusto, ontem como hoje, de maneira invisível e anônima, como quase todos nós, não fosse terem vivido uma história tão extraordinária e poderosa, daquelas que parece poder tocar a eternidade, que deu origem a tantas histórias, mistérios e milagres. Tantas, que é difícil demais… parar de contar”, disse.

De acordo com Vinicus Neves, esta é mesmo uma história rara. “Não é para ser esquecida. É como prece, precisa ser falada, dita, contada, cantada. E, como o leitor pode ver, falta muito ainda para entender e para contar… Mas, sempre chega a hora de voltar. Mesmo nas viagens mais difíceis ou longínquas, em que nos jogamos de corpo e alma, sempre chega a hora de voltar pra casa. Graças a Deus! Sinto que vou continuar a pensar e rezar por Santa Maria do Liberdade, sempre, e, toda vez, que for de necessidade”, diz o pesquisador fugindo do roteiro pronto segundo o qual todo o historiador, por formação, é ateu.

Marcus Vinicius Neves revela ainda uma curiosidade sobre o assunto. “O que me pareceu ainda mais curioso, foi o fato de que, 57 anos depois da morte de Santa Catarina Labouré, seu corpo foi retirado para ser transferido para a igreja onde ela havia tido a visão de Maria e ele ainda estava incorrupto e flexível, com um grau de conservação espantoso. E, continua assim até hoje, a julgar pelas imagens e informações da Internet. Ou seja, a meia frase que me foi dita poderia significar que a imagem de Santa Maria da Liberdade foi inspirada na imagem da Virgem Maria vista pela Santa de Paris, que tem o corpo incorrupto, como nossa Santa Maria do Liberdade. Será que Padre Alberto e a irmã Maria sabiam de algo, além do que pudemos saber, sobre o “corpo santo” de nossa Maria do Liberdade, por isso a referência na imagem?”, pergunta o historiador.

As respostas estão sendo buscadas nos depoimentos que começam a ser gravados ainda este mês. Não há data para lançamento do filme.

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