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“O judiciário e o dano moral”: confira na íntegra o artigo do advogado Gilson Pescador

Por Gilson Pescador, ContilNet

Este artigo é apenas para estudantes de direito, advogados não habituados com o Juizado Especial Cível e cidadãos que pensam que a sua moral vale muito. O artigo não tem a pretensão ainda de demonstrar a evolução do conceito de dano moral e mero aborrecimento ou dissabores na doutrina e na jurisprudência – havendo vários estudos e decisões neste sentido –  consistindo, apenas, na constatação empírica de julgados recentes.

Com a Constituição Federal de 1988 e as Leis 9.099/95 e 10.259/01 as pessoas acorreram em grande número especialmente aos Juizados Especiais Cíveis, com ou sem advogado, para defender seus direitos, dentre eles a sua imagem e honra pessoal. O acesso à Justiça tornou-se mais fácil, prático e útil para a solução de muitos conflitos entre pessoas físicas e jurídicas.

O tempo foi passando, as demandas aumentado e o Judiciário foi se atulhando de processos, com causas relevantes – embora de pequeno valor econômico – e outros envolvendo até uma caixa de cerveja, levando à contratação de centenas de juízes leigos e conciliadores, para dar conta das ações, permanecendo o juiz togado para homologação das sentenças e compor Turmas Recursais (“segunda instância” dos juizados), não se podendo falar de causas complexas, porque fatos que demandam certas perícias e dilação probatória mais robusta são de competência da Justiça Comum, no Fórum, para melhor entendimento.

Não que não se demandem ações somente por danos morais ou cumuladas com danos materiais na Justiça Comum, mas a quase totalidade das lides se deduzem nos Juizados Especiais Cíveis.

O que antes era célere agora se tornou moroso também nos Juizados Especiais. E não porque se passou a trabalhar menos ou a se enxugar a máquina judiciária – muito pelo contrário – mas em razão do assoberbamento absurdo de processos desta natureza nos Juizados Especiais Cíveis, antigo Juizado de Pequenas Causas.

Advogado Gilson Pescador/Foto: Reprodução

Se a demora nos julgamentos são compreensíveis, o mesmo não se pode dizer sobre a aplicação do conceito de dano moral sofrido pela pessoa natural, alçado, ao que parece, a um outro patamar, mais acima, ou, um pouco diferente do que se entendia tempos atrás, trazendo, data vênia, certas discrepâncias e injustiças nas decisões.

Com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 14 de junho de 2005, e a cobrança de maior produtividade dos Tribunais de Justiça percebe-se uma certa jurisprudência defensiva dos tribunais, parece que para desestimular os cidadãos e reduzir o número de ações judiciais.

São as decisões que diminuem o valor da indenização por danos morais e o conceito do próprio dano moral ou extrapatrimonial, como é também denominado, reduzindo-o à categoria de mero aborrecimento e dissabor, em sua grande maioria.

No Poder Executivo equivaleria, mais ou menos, a diminuir ainda mais o número de remédios e os atendimentos no posto de saúde, para fazer o cidadão desistir de buscar a amenização de seu sofrimento, e assim parecer que está tudo bem com a população, enquanto se cuida de outras obras e serviços mais complexos.

Já no Poder Legislativo seria, mais ou menos, tornar toda a votação secreta, fechar a galeria e acabar com o princípio da publicidade, para evitar que o cidadão tenha conhecimento da atuação do seu representante e deixe de cobrar dos parlamentares uma legislatura mais produtiva e transparente.

Enfim, em todos os Poderes, seria como desestimular o cidadão a buscar e lutar pelo que entende ser seu direito, em menor ou maior grau, de uma forma ou de outra.

O enquadramento de fatos ofensivos à honra subjetiva como dano moral foi se estreitando, enquanto que os fatos considerados aborrecimentos e dissabores do dia-a-dia alargados, quase à falta de misericórdia. 

A honra subjetiva, vítima do ataque moral, padece de compreensão anacrônica e justa e um limbo se criou entre o dano patrimonial e o dano extrapatrimonial. O dano patrimonial é fácil constatar e mensurar. O dano moral lato sensu também, embora mitigado ao extremo, no momento da prolação da sentença. O dano moral stricto sensu, é mal mensurado e está relacionado à condição psicofísica que resultou do fato danoso, que envolve sentimento de frustração, dor e sofrimento, pouco  considerado ou mal avaliado nas decisões.

O sofrimento, o estresse, o constrangimento e até o desânimo psicológico não são considerados reflexos diretos da agressão aos direitos da personalidade e nem são patrimônio material. E, quando assim raramente são considerados, como consequência da agressão moral,  o valor da indenização não passa de uma cibalena jurídica, sem caráter punitivo e nem pedagógico para o ofensor, que se sente confortável com o ilícito praticado, posto que compensador, isto no âmbito do direito consumerista.

Fica uma sensação de impunidade. É aquele velho ditado de que “o crime compensa”, neste caso, o ilícito compensa. Se colhe mais do que se perde, na recorrente prática do ato ilícito ou na omissão de bem cumprir com sua devida e adequada obrigação, por parte das empresas prestadoras de serviços ou que vendem diversos tipos de mercadorias

Se houvesse uma régua para medir o que são dissabores e aborrecimentos ou danos morais, entendidos e considerados nas decisões judiciais, até o nível 8 (oito) entram os aborrecimentos/dissabores e de 8 (oito) a 10 (dez) os danos morais. Até bem pouco tempo se mediam os aborrecimentos até o nível 5 e os danos morais do nível 5 até o nível 10. 

A inflação, neste caso, corroeu os danos morais e supervalorizou o conceito de dissabor do di-a-dia da vida de um cidadão, abalroado e machucado por todos os lados.

O entendimento parou na famosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que teve a Eminente Ministra Nancy Andrighi como relatora: “Dissabores, desconfortos e frustrações de expectativas fazem parte da vida moderna, em sociedades cada vez mais complexas e multifacetadas, com renovadas ansiedades e desejos, e por isso não se pode aceitar que qualquer estímulo que afete negativamente a vida ordinária configure dano moral” (REsp 1.641.037-SP).

A vida em sociedade torna-se cada vez mais difícil e estressante para quase todas as pessoas naturais, e o fato, do qual surge o direito, precisa ser cada vez mais contundente e impactante, para gerar algum direito à reparação pelos danos morais sofridos, pelo que se percebe em vários julgados.

As expressões que mais se encontram nas sentenças de indeferimento das ações que buscam a reparação por danos morais são de que o fato que aconteceu “são meros dissabores do dia-a-dia”, ou, “simples aborrecimento”, que todos devem suportar, o que não autoriza a indenização por danos morais.

Observa-se, ainda, que o juiz leigo, que realiza a audiência de instrução e prolata a sentença, a ser homologada pelo juiz togado, ou seja, aquele que ouve e vê as partes e testemunhas e sopesam as provas, parece estar mais perto do justo do que o próprio juiz togado, que, na homologação da sentença, raramente aumenta o valor atribuído a título de reparação por dano moral, mas parece ser automático reduzir em até oitenta por cento o valor fixado, considerando-o suficiente, baseando-se somente na sentença rápida que o juiz leigo apresentou, não nas provas constantes dos autos e tudo o mais que se colheu na audiência de instrução e julgamento. 

Isto é compreensível também por ser uma questão já modorrenta – sempre a mesma e simples – para o juiz togado mais velho, experiente, com muitos anos de judicatura, talvez até cansado da mesmice, o que pode, em tese, levar a tomar decisões rápidas e não muito justas, valendo isto para o primeiro e segundo pisos dos Juizados Especiais Cíveis.

E se fundamenta o indeferimento ou redução com jurisprudência no sentido de que a vida em sociedade está cada vez mais difícil, multifacetada, complexa, aborrecedora, por isso o cidadão simples, de bem, tem que suportar ainda mais, respirar fundo, contar até cem antes de decidir se socorrer do juízo.

É preciso fazer um esforço ainda maior, hercúleo, não se enforcar, tomar antidepressivos, compreender que a empresa prestadora de péssimo serviço ou que lhe vendeu o eletrodoméstico com problemas, ou, que lhe fez perder o voo e/ou conexão, que não disponibilizou o médico ou exame do plano caro que o cidadão há tantos anos paga, em tempo razoável, que deixa no escuro justamente no final de semana ou na hora do jogo da seleção, que vende um pacote de férias que se torna um pesadelo, que clona o seu celular e lhe aplica golpes, tem suas razões, como se isto não gerasse sofrimento, estresse e repercutisse na falta de saúde do cidadão que, cada vez mais,  tem nos fatores morais e psicológicos a origem da suas doenças.

Ultrapassada a jurisprudência mencionada do STJ e pior ainda fica quando o julgador se atém a este entendimento de forma automática, sem levar em conta a pessoa individualmente considerada, que está a sua frente. O Judiciário passa a ser, então, um Poder cada vez “mais igual” aos outros,  decepcionante e que derruba a auto estima do brasileiro.

A depressão, resultado da sociedade moderna e multifacetada, é o motivo maior de afastamento do trabalho e do auxílio-doença e causa de internação hospitalar e de aumento de suicídios, mas para a miopia da jurisprudência sempre aplicada ao caso – negação de reparação ou redução de valor do dano moral – são muitas vezes “dissabores, desconfortos e frustrações de expectativa que fazem parte da vida moderna”, no entendimento da Eminente Ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, que todos seguem, quase que cegamente.

E a questão da idade do ofendido, da pessoa que alega ter sofrido dano moral, também não parece fazer diferença para o Judiciário, no momento de julgar, a não ser – o que já é muita coisa – receber o selo de prioridade na tramitação, na “capa” do processo. Naquele conceito todo de suportabilidade – consequência da vida moderna – entra todo mundo, independentemente de ter vinte, sessenta ou oitenta anos, como se todos tivessem ainda a mesma saúde física e psicológica e respondessem da mesma forma à afronta sofrida.

O que chama a atenção em algumas decisões pesquisadas, é de que o dano moral, para não ser considerado apenas dissabor e aborrecimento, precisa estar muito próximo do nocaute moral ou físico do reclamante, diferentemente de antes, o que não deixa de ser preocupante e um retrocesso em vários sentidos.

Aqueles que são demandados em juízo, geralmente empresas prestadoras de serviços de telefonia, energia e saúde, ou, vendedoras de pacotes turísticos e passagens aéreas, de eletrodomésticos e eletrônicos, e-commerce então nem se fala, em suas contestações, via de regra, aduzem sempre aquela famosa expressão, utilizada desde os primórdios, de que se  “trata da indústria de reparação de danos morais”, à míngua de provas e argumentos em contrário, e, às vezes, levam.

A atitude de muitas empresas, que já não temem mais o Código de Direito dos Consumidores (Lei 8.078/90) – satisfeitas que se sentem com estas decisões – e nem com a inversão do ônus da prova (na prática processual civil o que se verifica é que mesmo o ônus da prova estando invertido o hiposuficiente precisa provar o fato constitutivo do seu direito), consiste em verdadeiro bombardeio diário, contínuo e inescrupuloso, durante as vinte e quatro horas do dia, até envolver o consumidor. 

O “caráter pedagógico” de algumas condenações já não ensina mais nenhuma empresa, para as quais a propaganda enganosa, a venda da viagem que não acontece, o plano que não cobre o atendimento, o bem que não chegou ou que chegou com problemas, vale à pena e parece ser quase previsto ou planejado, em razão da certeza de que poucos buscarão o Judiciário e que a condenação pecuniária será compensadora, em relação a quantidade de consumidores lesados que não “recorrem” e ao que lucrou com a venda daqueles produtos ou serviços, na pior das hipóteses.

Já o “caráter punitivo”, então, para empresas e pessoas naturais com grande poderio econômico, é pior ainda e por demais compensador, com condenações quase sempre insignificantes ou inexistentes, em relação ao dano moral, beirando a esmola de R$ 2.000,00 a R$ 5.000,00, geralmente, quando não lhe é negada, o que demonstra, na equação para se fixar o quantum debeatur (quanto devido), como é baixa a moral do brasileiro.

O que antes era um consolo, um conforto, uma pedagogia, um senso de justiça e até uma “vindita republicana”, vai se tornando um estresse ainda maior, um desânimo, um estímulo ao descaso e indiferença, deixando o ofendido com a moral ainda mais baixa, decepcionado e indignado com os Poderes, ficando cada vez mais impunes as pessoas físicas e jurídicas – por ganância e desrespeito – que atacam a sua honra subjetiva, causando-lhes sofrimento de toda ordem.

Gilson Pescador

Advogado

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