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De ricaça na Forbes a falência: a face oculta da herdeira da Suzano

Por Metrópoles

“Não, não, não, eu não vou falar sobre isso! Já faz muito tempo. Está nas mãos de advogados. Tchau!”, disse a professora aposentada Sonia Regina Guimarães, de 68 anos, antes de desligar o telefone quando questionada pelo Metrópoles sobre uma denúncia que fez há mais de 20 anos à Polícia Civil de São Paulo.

No início dos anos 2000, ela procurou a delegacia de Botucatu, no interior do estado, para relatar que havia sido notificada a dar esclarecimentos à Receita Federal sobre uma dívida tributária milionária da Mercante de Papeis. Tratava-se, à época, de uma empresa parte do império da família Feffer, dona da Suzano, maior fabricante de celulose do mundo. Sem nunca ter ouvido falar da empresa, Sonia constava em seu quadro de sócios.

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O relato dela aos policiais é parte de uma grande trama de brigas, fraudesdívidasfalência e uso de laranjas que alimentaram duas décadas de investigações criminais e levaram ao desmoronamento do principal braço de distribuição de papel da Suzano. No centro dessa história está Lisabeth Sander (foto em destaque), de 74 anos, uma das herdeiras da família Feffer.

Fundada nos anos 1920 pelo ucraniano Leon Feffer, a Suzano começou com um comércio de papel e virou uma multinacional nas décadas seguintes. Só no primeiro trimestre deste ano, a companhia, que mantém operação em 60 países, teve receita de R$ 9,4 bilhões e lucro de R$ 220 milhões.

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Lisabeth é neta de Leon e filha de Fanny Feffer. Em 1986, quando tinha 36 anos, ela abriu com seu marido à época a Telex Sander Bobinas de Papel, uma distribuidora de produtos de papel que, anos mais tarde, viria a se chamar Mercante de Papeis. Naquela época, a empresa cresceu a reboque de sua prestação de serviços à própria Suzano. Após a morte da mãe, em 2017, Lisabeth herdou as ações da Suzano e se tornou bilionária, com direito a integrar a lista dos 100 mais ricos do país feita pela Revista Forbes em 2022.

Denúncias de laranjas

À beira dos anos 2000, membros da família começaram a abandonar a sociedade e a empresa foi desativada. Logo depois, Lisabeth constituiu, sozinha, a Nova Mercante, com a mesma atuação. A antiga Mercante virou apenas um CNPJ abandonado com um passivo tributário e trabalhista. Curiosamente, após a saída do clã bilionário, os livros de sócios da antiga Mercante foram preenchidos com nomes de pessoas humildes, incluindo funcionários do chão de fábrica da própria empresa e pessoas que desconheciam a companhia.

Uma delas foi Sonia Guimarães, personagem do início desta reportagem. Em março de 2002, ela fez um boletim de ocorrência no 1ª Distrito Policial de Botucatu, onde morava, para dizer que havia sido notificada pela Receita Federal para o pagamento de R$ 1,5 milhão em impostos atrasados. Ela disse que “sequer conhece a empresa e que indivíduos desconhecidos usaram seu nome para a constituição de sociedade comercial”.

Em dezembro de 2004, uma administradora de empresas também foi à polícia denunciar que havia descoberto que a Mercante estava em seu nome, após ter tido os documentos roubados anos antes. No mesmo período, outro sócio formal enviou uma declaração por escrito, registrada em cartório, na qual dizia que queria “desmentir categoricamente” sua relação com a empresa. “Nunca assinei qualquer contrato formal nem dei procuração para que outro o dissesse com a finalidade de adquirir esta ou qualquer outra empresa”.

Um inquérito foi aberto na Delegacia de Polícia de Santana do Parnaíba para investigar o crime de estelionato. Intimada, Fanny Feffer, mãe de Lisabeth, afirmou que teve participação na antiga Mercante por um curto período de tempo e que desconhecia Sonia, a professora que aparecia como laranja. O mesmo disse o ex-marido de Lisabeth, que relatou ter deixado a companhia em 1997. O nome de Sonia foi retirado do quadro societário posteriormente.

Entre os funcionários antigos da Mercante que foram incluídos como sócios após a abertura da nova empresa estava Joaquim José da Rocha, que havia sido contratado como pedreiro, como mostra um livro antigo e desgastado pelo tempo com o cadastro de cada funcionário da empresa. Responsável pelo inquérito à época, o delegado Luis Hellmeister disse não se lembrar do caso. Um relatório dele obtido pelo Metrópoles, de dezembro de 2005, mostra a descrição de todos os depoimentos sem qualquer conclusão da investigação.

Recuperação judicial

Constituída por Lisabeth após seu divórcio, a Nova Mercante foi vendida em 2010 a Antonio Puchinelli, que vinha de uma carreira com cargos de direção e executivos em bancos. Formalmente, ela permaneceu por alguns anos com 1% da sociedade, com o compromisso de quitar dívidas trabalhistas e tributárias que a empresa acumulara. Àquela altura, a Nova Mercante era a maior distribuidora da Suzano.

Em janeiro de 2013, contudo, a Nova Mercante pediu recuperação judicial, com dívidas de R$ 77 milhões. No pedido, a empresa fez uma descrição de si mesma como se ela e a antiga Mercante fossem uma coisa só e deu duas razões para a crise que a fez pedir recuperação: a crise financeira mundial de 2008 e a as “questionáveis decisões comerciais de seus antigos sócios”. A empresa não aguentou e, anos depois, faliu.

Foi Pulchinelli quem denunciou à Justiça que a empresa se confundia com a antiga Mercante e que Lisabeth deixou um rastro de dívidas não quitadas para trás e não declaradas quando repassou a sociedade aos seus novos donos. Segundo ele, além de não arcar com esses pagamentos, havia até mesmo um empréstimo de R$ 5 milhões da Mercante para Lisabeth quando ela ainda era sócia.

Ele relatou que Lisabeth exerceu controle de ambas as empresas quando já havia deixado a anterior. “A Sra. Lisabeth, em verdade, contraiu volumosa dívida tributária, ainda quando figurava como sócia da empresa Mercante de Papéis Ltda. ME., tendo constituído a Nova Mercante de Papéis Ltda. para a continuidade das atividades, contudo, sem herdar a priori o legado negativo da primeira empresa, mas após contrair as mesmas dívidas na segunda empresa”, afirmou Pulchinelli, por meio de seus advogados.

Com a empresa em mãos, Pulchinelli encontrou, em um de seus galpões, caixas de documentos que contêm trocas de e-mails entre uma antiga advogada de Lisabeth e a cúpula da antiga Mercante. Parte deles demonstra sua estratégia no passado para tentar pôr panos quentes no inquérito sobre os laranjas que ocupavam cargos de sócios na empresa. Em um deles, de 2005, ela menciona tratativas “desenvolvidas para que o inquérito fique um pouco esquecido com tratamento moroso”. Não há referências a nomes de delegados e houve mais de um inquérito na Polícia Civil sobre o caso.

Atestados e Facebook

Entre as trocas de e-mails, havia até mesmo uma recomendação da advogada para como esconder Lisabeth de audiências judiciais de credores que processavam a Mercante. Em um desses e-mails, de 2014, a advogada afirma: “O juiz da audiência de hoje, que a Lisa não foi, e entregamos o atestado médico, remarcou para a próxima sexta-feira de Carnaval… Se a Lisa for viajar no Carnaval… melhor já preparar um novo laudo e atestado, pois devemos entregá-lo até o dia 21 de fevereiro para termos tempo de saber se o juiz vai deferir novo pedido de ausência de Lisa”.

Em outra mensagem, de 2015, a mesma advogada escreve para a secretária de Lisabeth que “é melhor colocar que ela está em casa, repouso sem stress nenhum e não no hospital, pois tenho medo das fotos de Facebook”. Esses e-mails constam, assim como outros documentos, em um baú encontrado em um galpão da Nova Mercante e foram em grande parte parar na batalha judicial travada por credores.

Confusão patrimonial

Com base na denúncia de Pulchinelli, a Brasil Trustee, administradora judicial da Nova Mercante, pediu uma investigação para apurar se a falência da empresa deveria ser estendida à Mercante e mesmo ao patrimônio da bilionária. No pedido, constam, por exemplo, coincidências entre os quadros de sócios, advogados e até mesmo de funcionários, o que evidenciaria uma confusão patrimonial entre as empresas. Ela ressaltou ainda que, na época de Lisabeth na sociedade, a Mercante contraiu uma grande dívida tributária e realizou “operações revestidas de caráter nebuloso”.

Nesse caso, o juiz Leonardo Fernandes dos Santos julgou o pedido procedente e estendeu a falência da Nova Mercante à antiga empresa. “Tais fatos comprovam a relação das duas empresas, revelam a ausência de autonomia entre elas, bem como a influência de um grupo societário no outro”, escreveu na sentença, de janeiro de 2023. O magistrado ainda abriu caminho para possível responsabilização dos sócios, o que inclui a própria Lisabeth Sander.

Após a extensão da falência, o administrador judicial foi enviado pela Justiça à sede da antiga Mercante com o objetivo de arrecadar seus bens para serem posteriormente leiloados e lacrar a empresa. Antes uma gigante do ramo de distribuição de papel, a companhia estava sediada, em maio deste ano, em uma pequena casa no bairro do Belém, na zona leste de São Paulo. Quem atendeu disse que a empresa não ficava lá. Em uma nova pesquisa, encontraram outra casa no bairro de Santa Maria, onde um contador disse que a sede ali era apenas para cumprir uma “formalidade” e que não sabia do paradeiro de Lisabeth Sander.

Condenação e denúncias criminais

Além do inquérito que apurou a inserção de laranjas, investigações por crimes fiscais sobraram para todos os lados na guerra da Mercante. O Ministério Público Federal (MPF) denunciou Lisabeth por sonegação de R$ 9 milhões, referentes ao ano de 2008. Durante o processo, ela tentou se defender sob a alegação de que havia feito uma injeção milionária na empresa antes de repassá-la.

Em uma dura sentença, o juiz Silvio Cesar Arouck Gemaque entendeu que Lisabeth não juntou qualquer prova de que injetou capital na empresa para quitar débitos sob sua responsabilidade e condenou a empresária a três anos de prisão em regime aberto. Ela tem recorrido da decisão. Já Pulchinelli tem responde a duas ações penais movidas pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) em razão de suposta sonegação de impostos junto ao fisco estadual. Ainda não houve sentença. Ele também nega as acusações.

Uma secretária de confiança de Lisabeth também acabou condenada a sete anos de prisão em razão do uso de procurações para desvio de dinheiro. O caso foi denunciado pela própria herdeira da Suzano. Antigo braço direito de Lisabeth, essa secretária é a mesma que aparece em trocas de e-mails com advogados no caso dos atestados médicos com o suposto fim de escapar de audiências judiciais.

O que dizem os envolvidos

Procurada pelo Metrópoles, a defesa de Lisabeth Sander não se manifestou. Nos processos criminais e de falência da Nova Mercante, ela afirma que a situação relativa aos laranjas no quadro societário da empresa terminou com arquivamento das investigações. Segundo ela, essas “pendências que existiram há quase 20 anos, envolvendo tais pessoas acham-se pontual e regularmente resolvidas e fora de questão”.

Sua defesa também afirma que ela não é alvo de “nenhuma ordem de prisão” e que, “obviamente, está em liberdade”. No processo, Lisabeth afirma que a Mercante “está aberta apenas para pagar pontualmente o parcelamento das dívidas tributárias residuais”.

Ela afirma que Pulchinelli é o real responsável pela falência da Mercante e que não há “nenhuma prova apresentada” por ele “que traga elementos comprobatórios de má gestão ou confusão patrimonial das duas empresas, Mercante e Nova Mercante de Papéis Ltda”.

Já a Suzano afirma que “não é parte de qualquer discussão judicial ou arbitral em disputas societárias de qualquer natureza relacionadas a qualquer acionista de referência ou às empresas mencionadas, figurando exclusivamente como credora da sociedade empresarial Nova Mercante de Papéis e os seus administradores, em processo judicial próprio no qual reivindica o seu devido pagamento”.

A empresa diz ainda que “confirma a inexistência de qualquer envolvimento nas discussões societárias em curso, além de reforçar que todas as ações praticadas pelos seus acionistas foram conduzidas de forma transparente e legal, e que quaisquer alegações de atos ilícitos são infundadas e, portanto, não guardam qualquer pertinência/mérito”.

Procurada, a defesa da Mercante não se manifestou. Foi a empresa que obteve recentemente no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) uma decisão para conceder efeito suspensivo para que a falência não estenda seus efeitos à Mercante enquanto um pedido para reverter essa decisão não for avaliado pelos desembargadores. A Mercante tem a mesma versão de Lisabeth nos processos.

Segundo ela, enquanto Lisabeth esteve no quadro na Nova Mercante, não houve qualquer ato de “escoamento de ativos” de uma empresa para a outra. “Tampouco, houve desvio de patrimônio da Nova Mercante em benefício da Mercante ou da própria Sra Lisabeth”. A empresa ressalta que Lisabeth deixou a Nova Mercante com saúde financeira, o que foi corroborado pelos novos sócios que agora fazem acusações em depoimento à Polícia Federal.

“Em nenhum momento foi indicado que a Sra Lisabeth praticou algum ato apto a configurar fraude ou lesão aos credores. E, por isso, não há como se estender os efeitos da quebra à Mercante, pois o principal liame existente com a Nova Mercante é a Sra Lisabeth, que, como se demonstrou, não praticou qualquer ato fraudulento”, afirmam os advogados Gabriel de Orleans e Bragança e Rafael Ribeiro Gonçalves Miranda.

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