De Victor Heringer a Carolina Maria de Jesus: os desafios da publicação de obras póstumas

Edição de inéditos de escritores mortos é sempre arriscada, diz Alice Sant'Anna: 'Não dá para saber se o autor concordaria com as decisões tomadas, seja a escolha do título e da capa, seja a estrutura do livro'

O escritor carioca Victor Heringer às vezes avisava o irmão, Eduardo: “Teu livro está quase pronto”. O tal “livro” era “Noturno para astronautas”, longo poema em que “tudo evolui para a esgarçada solidão cósmica”. Victor morreu em 2018, aos 29 anos, e deixou para o irmão três versões da obra. Eduardo incluiu a última em “Não sou poeta”, lançado este mês pela Companhia das Letras. É a segunda publicação póstuma de Victor (“Vida desinteressante”, de 2021, reuniu crônicas do autor).

Autores, a partir da esquerda: Sérgio Sant’Anna, Maria Carolina de Jesus, Rita Lee, Victor Heringer, gabriel García Márquez e Roberot Bolaño — Foto: Arte de André Melo

“Não sou poeta” contém todos os poemas que ele publicou em vida e os inéditos de gaveta. Ficaram de fora alguns criados diretamente para a internet, recheados de elementos que não cabem no papel, como vídeos, músicas e pop-ups. Quando topava com diferentes versões de um mesmo poema, Eduardo optava pela mais recente. Quando não sabia qual era a última versão, escolhia sua preferida.

— Decidir que obras ele gostaria de ver publicadas e quais ele guardava como matéria prima para coisas futuras foi uma dificuldade. Mas tenho certeza de que ele confiaria na minha curadoria — diz Eduardo, que conhecia os primeiros esboços de “Noturno para Astronautas” — O fato de ter ficado permanentemente incompleto põe em destaque a crise existencial de miudeza que é esse poema, como se fosse um lembrete da fragilidade do homem. Ou como se o vácuo do universo estivesse engolindo a ambição do poema, que ficou mais noturno ainda, um noturno tanto desta quanto “de uma outra noite, maior”, para citar Manuel Bandeira, poeta favorito dele e meu.

Editores e familiares de escritores falecidos costumam se ver diante deste dilema: como decidir o que pode ser publicado postumamente e o que deve permanecer no baú?

Há autores que se preparam para a morte e determinam textos que podem ou não vir à luz. A agente literária Marianna Teixeira Soares, por exemplo, conta que Victor Heringer “desejava ser lido” e planejava reeditar seus primeiros títulos — em vida, ele lançou os poemas de “Automatógrafo” e os romances “Glória” e “O amor dos homens avulsos”.

Previsão

Morta em maio do ano passado, Rita Lee era precavida. Ou melhor: “Capricorniana”, lembra o editor Guilherme Samora. “O mito dos mitos”, recém-lançado pela Globo Livros, já estava pronto deste 2019. “Ficção misteriosa com toques de realidade”, o romance se passa num casarão paulistano onde um doutor vampiresco atende uma cantora em busca de respostas.

Rita só não viu a capa pronta, mas aprovou todo o projeto gráfico e determinou que o livro saísse um ano após sua morte. Ela deixou um baú cheio de inéditos: letras, melodias e cerca de 400 aforismos para as redes sociais nunca compartilhados. Mês passado, saiu dali uma canção inédita dela: “Voando (Nel blu dipinto di blu)”, releitura em ritmo de bossa nova do clássico italiano “Volare”.

Mas nem sempre as diretrizes do autor são respeitadas. Antes de morrer, Kafka orientou seu amigo Max Brod a incendiar seus originais. É graças à traição de Brod que conhecemos obras-primas como “O processo” e “O castelo”. No início do ano, chegou às livrarias “Em agosto nos vemos”, romance póstumo de Gabriel García Márquez. “Não presta. Tem que ser destruído”, dissera o Nobel de Literatura colombiano sobre o livro. Morto aos 50 anos, o chileno Roberto Bolaño deixou instruções para a publicação de seus romances inéditos, como “2666”. Não disse nada, porém, sobre sua poesia, que também já foi editada após a sua morte.

Redescoberta

Em geral, teme-se que publicações póstumas manchem a reputação de um escritor, em especial se forem textos inacabados ou que ele tenha rejeitado. Há casos, no entanto, em que divulgar os inéditos pode significar fazer justiça a um autor que o público pensava já conhecer. É assim com Carolina Maria de Jesus, cuja obra, praticamente reescrita por editores no passado, vem sendo publicada pela Companhia das Letras a partir dos manuscritos originais.

Dois livros já saíram do baú da autora: “Casa de alvenaria”, os diários de Carolina de agosto de 1960 a dezembro de 1963 (o texto da edição de 1961 fora selecionado pelo jornalista Audálio Dantas) e o romance inédito “O escravo”. Ambos mantêm a ortografia própria da autora, que desvia da norma padrão e incorpora arcaísmos, neologismos e “mineirês” — Carolina nasceu em Sacramento (MG), onde está parte de seu acervo. As publicações são supervisionadas por um conselho editorial formado pela filha da autora, Vera Eunice de Jesus, pela escritora Conceição Evaristo e pelas pesquisadoras Amanda Crispim, Fernanda Felisberto, Fernanda Miranda e Raffaella Fernandez”.

Em nota, o “conselho editorial” de Carolina de Jesus explica que “quase toda a obra dela permanece inédita”. Dos 15 cadernos que compõem “Quarto de despejo”, apenas uma pequena parte foi publicada. No baú, restam ainda oito romances, cinco dramaturgias, mais de cem poemas, cartas, contos, textos humorísticos e provérbios.

“Acessar os originais de Carolina é uma oportunidade de conhecer o projeto estético, político e literário de uma intérprete do Brasil, longe das limitações do Canindé (favela paulistana onde ela viveu)”, afirmam as conselheiras. A obra da autora, dizem as pesquisadoras, é “vasta e diversa” e “reflete sua ânsia não só por narrar acontecimentos ou denunciar situações, mas por criar personagens e enredos, expor sentimentos e emoções”. Seus poemas inéditos, por exemplo, relatavam “diversos temas excluídos de projetos de edição anteriores”, como erotismo, autocensura, “temas metafísicos como a vida e a morte” e meditações sobre “ser uma escritora negra em um país racista e sexista”.

Poeta e editora da Companhia das Letras, Alice Sant’Anna pondera que publicações póstumas são sempre arriscadas, “porque não dá para saber se o autor concordaria com as decisões tomadas, seja a escolha do título e da capa, seja a estrutura do livro”. Nesses casos, diz ela, a regra deve ser o “respeito” e a “admiração” pela obra, e “a vontade de mostrar um material novo e espetacular, que merece ser lido por mais gente”.

Heranças e dilemas

Quando morreu, de Covid-19, em 2020, o escritor Sérgio Sant’Anna (sem parentesco com Alice) deixou contos inéditos em seu computador. Seis estavam visivelmente finalizados e foram incluídos em “A dama de branco” (organizado por Gustavo Pacheco), ao lado de 11 narrativas já publicadas em papel e na internet. Também entrou a novela inacabada “Carta marcada”.

— Ficamos uns dias resolvendo o que fazer com essa novela. Meu pai não teve tempo de revisá-la, havia inconsistências na cronologia da história. Achamos melhor não mexer — explica o escritor André Sant’Anna. — Não sei se meu pai teria gostado disso, porque ele era um carpinteiro, trabalhava cada frase. Talvez ele ainda fosse mexer um pouco nos contos que já estavam prontos. Ele sofria muito para escrever, dizia que a literatura só era boa quando tinha a ideia e quando saía o livro.

Sant’Anna deixou ainda um acervo de 11.400 folhas, organizado pela escritora Cláudia Fares. Tem de tudo ali: rascunhos e versões de contos já publicados, narrativas inéditas, peças de teatro, textos críticos e aforismos. O escritor que emerge do acervo, comenta Cláudia, não é diferente daquele que seus leitores já conhecem: nesses papéis inéditos “não faltam sexo, morte e angústia”, temas que são recorrentes em seus contos e romances.

— Está quase tudo organizado para montarmos um livro que será de grande interesse dos leitores, porque abre as portas da oficina do mestre — diz Cláudia, que enviou ao GLOBO alguns aforismos inéditos de Sant’Anna.

Um destes pequenos textos afirma: “Começar amanhã por ler todas as folhas anotadas. Ter paciência com esse primeiro capítulo. Dar uma geral nas folhas”. “Voltar sem preguiça ou hesitação, com fé cega e sem pensar nos outros, críticos ou leitores”, diz outro.

Não parecem conselhos a quem se dispõe a revirar o baú de escritores mortos atrás de joias inéditas?

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