Heróis anônimos de uma época em que suas atividades profissionais eram imprescindíveis para uma economia ainda em formação, quando o Acre não tinha ponte sobre os rios e sua população dependia das catraias e dos catraieiros para o transbordo de pessoas e mercadorias de um lado para o outro, tanto na capital como em vários municípios do interior, hoje são homens esquecidos e cujas famílias sofrem o abandono do poder público.
São autênticas vítimas do progresso e do desenvolvimento. A tragédia desses homens e de suas famílias começou no Acre assim que o antigo território foi elevado à condição de Estado e foi inaugurada a primeira ponte sobre o rio Acre, a “Juscelino Kubitschek” – ou ponte metálica, como é mais conhecida a edificação, na capital Rio Branco, inaugurada no governo de Jorge Kalume, no início dos anos 60 do século passado.
Naquele tempo, o governador do Estado era “eleito” indiretamente pelos deputados estaduais na Assembleia Legislativa. Era assim chamado de “Interventor”. Eram tempos duros, quase irrespiráveis para quem defendia e dependia da democracia para viver, embora, lembrem os poetas e historiadores, como a escritora Florentina Esteves, testemunha daqueles tempos, tenham escrito que “a brisa do rio tangia poeira fina das ruas sombreadas de mangueiras”.
A poeira era parte de tudo aquilo porque não havia asfalto, nem estradas. Naqueles arremedos de ruas, o transporte terrestre numa Rio Branco de terra batida era só o “Ford de Bigode”, como era chamado um dos poucos veículos a motor (a maioria era carroças de bois e charretes puxadas a cavalo ou burros, a chamada tração animal) da Capital, pertencente ao empresário Eduardo Pinho.
No tempo em que a BR-364, que ligaria o Acre ao restante do país, não passava de um caminho de serviço enlameado na época das chuvas e esburacado e empoeirado no verão, quase intrafegável, o transporte de mercadorias para a capital era feito pelos chamados navios gaiolas. Era via fluvial que os gaiolas traziam os víveres necessários à cidade e à sua população em formação.
Havia festas na cidade quando os navios ou as chamadas chatinhas – embarcações menores – apitavam na curva da “Judia”, o igarapé que desembocava no rio Acre, ou mesmo no estirão da Cadeia Velha. Era a alegria da certeza da mesa renovada e farta, para os que podiam – os outros, aqueles sem poder aquisitivo, teriam que se virar como sempre viveram, da caça e da pesca nos rios e igarapés que circundavam a cidade e eram piscosos porque ainda não poluídos.
Tão importantes quanto as gaiolas e as chatinhas, eram as catraias na atividade diária e incessante de cruzar o rio, de um lado para outro, sem uso de motor, com os catraieiros exercitando os músculos remando com graça e praticidade, principalmente quando rio estava cheio. Eles tinham que enfrentar o aumento da correnteza e, ainda assim, se desviar dos balseiros – às vezes árvores imensas – levadas pela água pelo rio abaixo. Não há registro histórico de naufrágios de catraias naqueles tempos distantes e que as gerações atuais sequer conheceram.
Geração atual nem sabe o que são catraias ou catraieiros
À geração atual convém se explicar do que se trata: as catraias eram pequenos barcos que faziam a travessia de pessoas e suas mercadorias. Catraia ou catraio é uma embarcação de pouco calado. No começo, na ocupação do território brasileiro, eram movidas a vela, no mar. Mas, na Amazônia de ventania incerta e possivelmente também pela tradição herdada dos saberes indígenas, passaram a ser movidos a remo, na verdade dois remos movimentados simultaneamente, também chamados de faias.
O uso sempre foi empregado no transporte de passageiros, que é geralmente manobrado por uma só pessoa, o catraieiro. A atividade era quase sempre passada de pai para filho, de geração para geração. No Acre, em Rio Branco e em outros municípios, ainda há catraias e catraieiros em atividade, tentando resistir aos caprichos do desenvolvimento. Pelo menos 20 remanescentes da atividade continuam atuando em seis portos às margens do rio Acre no perímetro urbano de Rio Branco.
Um dos locais onde a catraia está presente fora da Amazônia no Brasil é, ainda, na cidade de Santos, interior de São Paulo, onde há a travessia entre Santos e Guarujá. A travessia dura em torno de 8 minutos, com embarque e desembarque nas cidades de Santos, próximo ao Mercado Municipal, e Guarujá, no distrito de Vicente de Carvalho, no litoral paulista.
No Acre, o fim da atividade iniciou-se com a edificação da ponte metálica, no governo de José Augusto de Araújo, em 1963, como já se viu. Inaugurada após a queda de José Augusto e ascensão do governador Kalume como o primeiro de uma série de cinco governadores/interventores nomeados pela ditadura militar que assaltaram a democracia do país em 1964, a construção da ponte consumiu recursos públicos na casa dos milhões, mas o Governo de então não investiu nenhum recurso em relação os trabalhadores que faziam a travessia de pessoas e mercadorias antes daquela obra.
Não se sabe ao certo quantos trabalhadores haviam em atividade naquela época, mas a grande maioria ficou desempregada, incluindo aquele catraieiro convidado pelo governador para participar do descerramento da fita inaugural da ponte, conhecido por José da Rocha.
Catraeiro sem camisa ou de bermuda não trabalhava; todos tinham que estar uniformizados em dias de festas na Tentamen. É o que revela, aos 85 anos de idade, dona Gilcélia da Luz, neta de Pedro da Rocha. Ela se casou também com um catraieiro, Pedro da Luz, que exerceu a atividade até a inauguração da ponte metálica. Sem os passageiros do passado, seu Pedro e tantos outros que trabalhavam ao longo do rio, em vários portos da cidade, tiveram que procurar novas atividades. No caso de seu Pedro, ele virou pescador. Mas, conta hoje, à medida que o rio foi ficando poluído e os peixes sumindo, mais uma vez, ele teve que buscar nova atividade para sustentar a família: migrou para a construção civil, por onde se aposentou. Hoje tem 85 anos também, como a esposa.
A história de dona Gilcelia e de seu Pedro não são diferentes do que conta dona Ires Ferreira, ela que descende de uma família na qual todos os homens foram catraeiros. Aliás, a atividade parece eminentemente masculina, mas há registros, segundo moradores antigos do 2º Distrito, como Paulo Maia Sobrinho, de que pelo menos uma mulher exercia a atividade no porto entre os bairros 6 de Agosto e Cadeia Velha.
Os catraieiros que agora com a “modernização” da cidade e a construção das pontes não são mais necessários, onde a política de valorização da história acreana não se interessou em contar as experiências desses sujeitos sociais, já tiveram na cidade uma praça para homenageá-los. Era a Praça dos Catraeiros, nas imediações do Mercado dos Colonos, que já não existe mais.
Um texto publicado pelo extinto jornal “O Rio Branco”, intitulado “Catraieiros, vidas que se confundem com a história do Acre”, publicado nos anos 80, já descrevia o cotidiano de trabalho desses profissionais que resistiram ao tempo e à modernização da cidade. O texto relatava que “nos dias de festas na Tentamen”, os antigos catraieiros “tinham que estar vestidos com um uniforme de gala (camisa branca e calça de tergal na cor azul) e seus barcos também tinham que estar limpos mais do que o de costume para assim recebem as damas da sociedade com seu vestidos de seda e seus maridos vestidos à rigor”.
Os catraieiros que não fossem uniformizados voltavam para casa e os que ficavam também tinham que ficar de plantão até o final das festas, já que o fino da sociedade frequentadora daqueles bailes morava no outro lado, já apontado como 1º Distrito, uma vez que ali já estavam funcionando o Palácio Rio Branco como sede do governo e residência oficial do governador, a matriz da Igreja Católica, além das sedes dos demais poderes. O 2º Distrito embora tenha sido o local por onde a cidade começou e se desenvolveu, era apenas uma parte que servia de entreposto para abastecer o 1º Distrito.
Quando havia sepultamentos no principal cemitério da cidade, o “São João Batista”, no 1º Distrito, também não eram aceitos catraieiros trajando bermudas e mesmo sem camisa, apesar do sol escaldante. Era preciso haver respeito ao caixão e à família do defunto – respeito que os catraieiros, entre mortos e os que ainda vivem, nunca conheceram.
Jornalista enxerga os profissionais invisíveis em que foram transformados os homens que ajudaram a desenvolver o Acre
Apesar de importantes para a história da cidade mas invisíveis nos dias atuais, a situação dos catraieiros e de seus familiares foi percebida pela jornalista e cineasta acreana Alcinete Damasceno. Ela fazia um documentário sobre a ponte metálica, quando precisou entrevistar remanescentes da antiga atividade no rio e familiares de José da Rocha, aquele catraieiro que participou da solenidade de inauguração da ponte metálica ao lado do então governador Kalum, inclusive descerrando a fita da placa inaugural.
“Ao conversar com membros da família daquele catraieiro e com outros que ainda insistem em se manter na atividade, apesar das pontes sobre o rio Acre, percebi o abandono histórico e material daquelas pessoas sem aposentadoria, sem reconhecimento ou uma pensão para que possam seguir suas vidas e ajudar seus familiares ou mesmo ter uma velhice tranquila. Decidi que alguma coisa precisava ser feita por eles”, contou a jornalista e documentarista.
Articulada, ela procurou técnicos do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC), além da Delegacia Regional do Trabalho e políticos como o senador Sérgio Petecão (PSD-AC).
“Procurei os senador porque, como antiga jornalista do Acre, sei da relação que o pai dele tinha com os catraieiros, já que era um dos fornecedores de combustível para as embarcações que singravam o rio e também apoiava aqueles condutores de barco que não tinham motor, como os catraieiros”, revelou a jornalista.
O pai do senador era o comerciante João de Oliveira Cunha, conhecido por “Pelado”, que acabou assassinado por um ex-empregado. Na época, o atual senador, o mais velho de cinco irmãos, tinha apenas 14 anos de idade e teve que assumir a responsabilidade do sustento de sua família ao lado de dona Raimunda, sua mãe, também já falecida.
Em documento ao gabinete do senador, em Brasília, Alcinete Damasceno conta a história como travou conhecimento da atual situação dos catraieiros ou de seus descendentes e pediu ajuda. “Em contato com esses personagens que contaram a história da Ponte sob suas próprias perspectivas, ficou evidente que se trata de uma categoria profissional que vem perdendo importância. O trabalho já não rende mais o suficiente para prover as necessidades básicas; muitos catraieiros abandonaram a profissão por idade ou problemas de saúde e, no entanto, poucos gozam de uma aposentadoria com dignidade; aqueles que ainda estão economicamente ativos não têm perspectiva de se aposentar – quando adoecem ou em época de baixíssima temporada (como o período de férias escolares, por exemplo), ficam totalmente sem renda. É importante mencionar que as catraias ainda contribuem na mobilidade, como transporte coletivo, não somente em Rio Branco, mas em outros municípios do Acre que são cortados por rios, tanto na área urbana, quanto na área rural”, escreveu Alcinete Damasceno.
“Embora a atividade econômica esteja em franca decadência, em razão do fluxo natural dos processos de desenvolvimento, as catraias e os catraieiros, por se tratar de um ofício secular transmitido entre familiares, possuem outros atributos de valor histórico, cultural, ambiental e paisagístico que podem favorecer a atividade turística, caso a mesma venha a ser fomentada”, acrescentou.
Ao Contilnet, a jornalista disse que incluir o senador neste projeto é também uma forma de homenagear o seu pai, tão tragicamente assassinado. O senador recebeu bem a proposta e sua assessoria logo informou que a atividade de catraieiro consta da lista de Classificação Brasileira de Ocupação, após consulta ao Ministério do Trabalho e Emprego (TEM), que cuida da Classificação Brasileira de Ocupações, também chamada de CBO.
A CBO foi instituída por portaria ministerial nº. 397, de 9 de outubro de 2002 e tem por finalidade a identificação das ocupações no mercado de trabalho, para fins classificatórios junto aos registros administrativos e domiciliares. Os efeitos de uniformização pretendida pela CBO são de ordem administrativa e não se estendem às relações de trabalho. Já a regulamentação da profissão, diferentemente da CBO, é realizada por meio de lei, cuja apreciação é feita pelo Congresso Nacional, por meio de seus deputados e senadores, e levada à sanção do Presidente da República.
Atividade não tem registro no Código Brasileiro de Ocupações do Ministério do Trabalho
Se a atividade não existe formalmente como profissão, quem a exerce, logo, em razão disso, está excluído dos diversos programas da política de trabalho do País. Esse apagamento impossibilita até mesmo a luta por uma aposentadoria adequada, já que o trabalho é considerado de alto risco. “Nesse sentido, buscamos o apoio do MTE/Acre, a fim de pedir a inclusão da ocupação na CBO”, diz o documento enviado ao gabinete do senador Petecão pela jornalista Alcinete Damasceno.
Acionado pelo próprio senador Sérgio, o delegado regional do Trabalho e Emprego no Acre, Leonardo Lani disse que a não inserção dos catraeiros na CBO decorre sobretudo do baixo nível de escolaridade dos profissionais, o que dificulta sua organização coletiva e impossibilita que obtenham o reconhecimento social a que fazem jus. “O processo administrativo para inclusão já está em andamento e em breve essa lacuna será sanada”, disse o delegado ao anunciar que a assessoria de Petecão informou que o parlamentar vai apresentar um projeto de lei no Senado formalizando a atividade como profissão.
Para o delegado local do MTE, os catraieiros não são vítimas do desenvolvimento. “Eu não diria que eles são vítimas do desenvolvimento, até porque o progresso é uma marcha irresistível. Acho, sim, que esses profissionais sofrem em virtude de uma estrutura social que não os aparelhou, fazer face às transformações dos novos tempos. Eles vivem uma espécie de crise identitária. A identidade profissional é o modo socialmente reconhecido para os indivíduos se identificarem uns aos outros, no campo do trabalho ou do emprego. Ela nunca é dada em definitivo, mas varia em função de determinações históricas, tais como a reconfiguração do trabalho e as transformações tecnológicas.
De acordo com o delegado, as pesquisas de Alcinete Damasceno apontam que nos dias atuais ainda há catraieiros atuando no Acre, notadamente em Rio Branco. Na Capital, há, ainda, seis pontos de catraia ativos, em que trabalham 20 profissionais. “Outros 80 já se aposentaram da atividade. Em nível de Estado, ainda não há nenhum levantamento”, admitiu Leonardo.
Com sua a proposta apresentada ao senador Sérgio Petecão, Alcinete Damasceno avalia que seria possível não só buscar uma pensão do Governo Federal às famílias daqueles que atuaram no passado como seria possível revitalizar a atividade nos dias atuais, revitalizando os portos “como espaços turísticos de Rio Branco, a partir de um novo conceito arquitetônico e paisagístico, incluindo a construção de escadarias acopladas à praças com quiosques, realização do conhecido festival “Catraiadas” (festejo que era realizado junto a programação do aniversário da cidade), promoção de educação ambiental e campanhas voltadas à promoção do turismo cultural regional”.
De acordo com a jornalista, o valor da proposta é de R$ 2 milhões – R$ 1,2 milhão para investimentos e R$ 800 mil para custeio. “A execução da proposta poderá ser efetivada em parceria do Governo do Estado e Prefeitura de Rio Branco, com a participação dos catraieiros”, estabelece o documento.
Caso venha de fato apresentar uma proposta de lei neste sentido, o senador Sérgio Petecão e outros parlamentares que se interessarem pela ideia podem se inspirar, inclusive, no que já foi em Santarém, no Pará. A ideia é que o restante do Brasil, com a futura lei, siga o exemplo paraense, onde os catraieiros já são reconhecidos como Patrimônio Histórico e Cultural Imaterial de Santarém e em Alter do Chão até compõem a cena turística da Vila Balneária, a partir de lei já sancionada pelo prefeito Nélio Aguiar, de Santarém, no oeste do Pará, que declara os Catraieiros de Alter do Chão como Patrimônio Histórico e Cultural Imaterial do município.
Além disso, os profissionais que levam os banhistas às águas quentes do Rio Tapajós, fazem parte da identidade local, com suas embarcações transportando pessoas em catraias da Orla de Alter do Chão para a Ilha do Amor e vice-versa. No período do Sairé, as pequenas embarcações são enfeitadas e fazem uma bonita procissão fluvial. Os trabalhadores vivenciam o sobe e desce das ondas do Rio Tapajós e dependem do rio para realizar um trabalho que para eles é de fundamental importância para sua sobrevivência, como fonte de renda.
Restaurar a atividade no Acre, buscando benefícios para quem já se aposentou ou faleceu deixando suas famílias em dificuldades, não só ajudaria a uma categoria esquecida, como levaria à população que desconhece a importância desses profissionais a visitarem o passado e assim suas futuras lideranças possam buscar um futuro melhor. Sem visitar seu passado, as populações, de qualquer época, de acordo com a História, em qualquer lugar do mundo, continuam a preparar um futuro incerto ou injusto, como se depreende com o exemplo dos catraieiros acreanos.