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Entre a culpa e a autoestima: os riscos causados pelos transtornos alimentares

Por Correio Braziliense

Olhar-se no espelho e não sentir orgulho da própria aparência. Dedilhar a tela do celular e se comparar com outras pessoas e idealizar corpos que nunca foram reais. Essa sensação de não pertencer dentro da própria pele, que mal dá espaço para tentar ter um pouco de amor-próprio. Assim é viver com algum tipo de transtorno alimentar, condição que afeta 70 milhões de pessoas em todo o mundo.

O nutricionista avalia o estado nutricional do paciente por meio de exames antropométricos, laboratoriais e históricos dietéticos/Foto: Freepik

Os transtornos alimentares (TAs) são quadros caracterizados por alteração persistente da alimentação ou de comportamentos relacionados a ela, que resulta no consumo ou absorção alterada de alimentos, prejudicando significativamente a saúde física ou o funcionamento psicossocial. Segundo o doutor em psiquiatria Adriano Segal, os distúrbios podem ou não estar associados a uma alteração do modo pelo qual o corpo ou o peso corporal são percebidos.

De acordo com o Ministério da Saúde, a anorexia nervosa e a bulimia são os quadros mais identificados entre os jovens. As mulheres são as mais acometidas por tais distúrbios, sendo a anorexia nervosa de maior incidência no público de 12 a 17 anos. A bulimia, por outro lado, aparece com mais frequência no início da vida adulta. No entanto, além desses, existem outros transtornos pouco conhecidos, mas com riscos e perigos para toda a sociedade.

Na anorexia nervosa, há três aspectos principais presentes dentro do distúrbio. “Restrição persistente da ingestão calórica, com peso abaixo do normal para a idade e a altura; medo intenso de ganhar peso ou de engordar ou comportamento persistente que interfira no ganho de peso; e alteração na autopercepção do peso ou forma corporal, conhecida por distorção de imagem corporal”, explica o psiquiatra.

Em relação à bulimia nervosa, episódios recorrentes de compulsão alimentar (ECA) e comportamentos compensatórios inadequados frequentes para evitar o ganho de peso fazem parte do transtorno. “Para se qualificar para o diagnóstico, os ECAs e os comportamentos compensatórios inadequados devem ocorrer, em média, pelo menos uma vez por semana durante três meses”, ressalta Adriano Segal, que também é vice-coordenador da Comissão de Transtornos Alimentares da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria)

Além disso, Adriano destaca que a autoavaliação exageradamente influenciada pela forma e pelo peso corporal também é um dos fatores associados ao diagnóstico e à presença da bulimia nervosa. As causas exatas desses quadros, entretanto, ainda não são totalmente conhecidas. Mas, segundo o psiquiatra, acredita-se que haja uma interação entre fatores biológicos (por exemplo, fatores genéticos), psicológicos e sociais, especialmente para os quadros de anorexia nervosa, bulimia nervosa e transtorno de compulsão alimentar.

Capa de revista em 1509/Foto: Reproduçao

Preço pela autoestima

“Lembro de sempre ter um problema com meu corpo”, revela Lucas Camargo, 30 anos. Desde criança a aparência sempre foi um enigma. Não se sentia bem consigo mesmo, mal conseguia se olhar no espelho. Em uma dessas viagens de férias para a praia, recorda de não querer, de jeito nenhum, tirar a camiseta para dar um mergulho no mar. O motivo: pensava estar gordo demais e sentia vergonha do porte físico.

Tantas dificuldades e barreiras se colocaram no caminho durante toda a vida de Lucas. Na escola, relembra a fase em que o bullying o colocava para baixo. Ainda assim, sua questão com a autoestima estava além disso. “Quando alguém não sabia meu nome, me referenciava como ‘ai, aquele gordinho lá, sabe?’, isso me pegava muito. Com a adolescência chegando, recebia elogios de que era bonito, mas nunca tinha ninguém me querendo. Neuras de adolescente, mas que, para mim, pesou, com certeza.”

Aos 19 anos o diagnóstico de anorexia do tipo purgativa atípica apareceu. Lucas não comia e, quando comia, era muito pouco. O humor começou a mudar drasticamente, estava mais depressivo, arisco e ranzinza. “Mas cada vez que subia na balança e via um número a menos, era uma vitória”, recorda. No local onde trabalhava, as pessoas que o viam diariamente comentavam que Lucas estava emagrecendo. Entretanto, parecia abatido e pálido. Na cabeça do jovem, esse era o preço que deveria ser pago para perder peso.

Dias melhores

São dias e dias. É assim que Lucas gosta de pensar. Às vezes, de forma natural, se sente esgotado. Em outros, gosta de ser otimista e acreditar que tudo vai melhorar. Durante esses 10 anos convivendo com transtornos alimentares, acredita que toda a sua vida e a maneira de se relacionar com as pessoas foram impactadas. “Um dia, quis comer uma tapioca de chocolate e algo interno não me deixava, e foi uma luta muito grande. Entrei em um conflito interno tão intenso que comecei a chorar, porque estava com muita vontade de comer tapioca, mas não conseguia”, conta.

Após tantos episódios similares, Lucas resolveu buscar ajuda profissional. Depois da anorexia, foi diagnosticado com bulimia nervosa — quadro com o qual vive hoje. Para tentar travar uma luta contra o transtorno, entrou na academia e buscou conviver com uma alimentação mais saudável. Ganhou peso e massa corporal, mas a autoestima continuou oscilando e dificultando o árduo processo. Os elogios, ainda que apareçam, não florescem com tanta facilidade no coração de Lucas. “Não gosto muito de falar sobre porque, para as pessoas, pode parecer frescura. Mas é algo dentro de mim que não me deixa acreditar”, acrescenta.

Hoje, ele consegue compreender melhor o transtorno e lidar bem quando “a voz” que tenta o colocar para baixo aparece. Apesar disso, a compulsão e a culpa permanecem, menos que antes, mas permanecem. Os treinos e a dedicação de Lucas são os pilares para que o jovem continue se saindo bem. Todos esses fatores, é claro, aliados ao otimismo que carrega. Desistir, para ele, não é e nunca foi uma opção. “Por mais que eu recaia às vezes, sei que o dia seguinte pode ser melhor.”

Lucas começou a treinar e se dedicar na academia/Foto: Arquivo pessoal

Outros tipos 

Picacismo: a característica essencial do picacismo é a ingestão persistente de uma ou mais substâncias não nutritivas e não alimentares (durante pelo menos um mês).

Transtorno de ruminação: a característica essencial desse quadro é a regurgitação repetida de alimentos, que ocorre após a alimentação ou a ingestão, por um período de pelo menos um mês.

Transtorno alimentar restritivo evitativo (TARE): evitação ou restrição da ingestão de alimentos que pode levar a perda de peso significativa, deficiência nutricional significativa (ou impacto relacionado à saúde), dependência de alimentação enteral ou suplementos nutricionais orais ou interferência acentuada no funcionamento psicossocial.

Transtorno da Compulsão Alimentar (TCA): pode ocorrer em pessoas com ou sem obesidade. Mas, na população de pacientes com obesidade (aquelas que buscam por tratamento), há aumento da prevalência de TCA. Contudo, o transtorno da compulsão alimentar não é sinônimo de obesidade, nem obesidade é sinônimo de TCA. Obesidade não é um quadro psiquiátrico. A prevalência ao longo da vida varia de 0,85% a 2,8% (1,25% a 3,5% em mulheres e de 0,42% a 2% em homens). Em nosso meio, ela pode ser ainda maior.

Acompanhamento multidisciplinar

Aliada à importância de buscar ajuda psicológica ou psiquiátrica, um acompanhamento nutricional também é crucial para o tratamento contra transtornos alimentares. A nutricionista Danielle Luz Gonçalves, coordenadora do curso de nutrição do Centro Universitário Uniceplac, afirma que o nutricionista desempenha um papel essencial na identificação e no diagnóstico de transtornos alimentares, como anorexia nervosa, bulimia nervosa e transtorno de compulsão alimentar.

“Sua atuação envolve a avaliação nutricional detalhada. O nutricionista avalia o estado nutricional do paciente por meio de exames antropométricos, laboratoriais e históricos dietéticos. Isso inclui a identificação de padrões alimentares desordenados e a análise de carências nutricionais”, destaca Danielle. A educação alimentar, nesses casos, também se enquadram como um pilar na hora de reeducar o paciente sobre a importância de uma alimentação saudável e equilibrada, desmistificando crenças distorcidas.

De acordo com a profissional, o nutricionista também desenvolve planos alimentares personalizados, levando em conta as necessidades nutricionais, o estado clínico e psicológico do paciente. “O foco é restaurar o equilíbrio nutricional de forma gradual e sem causar estresse. O especialista trabalha em conjunto com psiquiatras, psicólogos e outros profissionais de saúde para garantir que o paciente receba o cuidado integral necessário”, completa.

O tratamento dos transtornos alimentares requer uma abordagem multidisciplinar e individualizada, envolvendo terapia nutricional, na qual o foco é reintroduzir uma alimentação balanceada e gradativa, corrigir deficiências nutricionais e trabalhar a relação emocional do paciente com a comida. Isso inclui a criação de planos alimentares flexíveis e de fácil adesão.

Além disso, o apoio psicológico, por meio de terapia cognitivo-comportamental (TCC) ou outras abordagens psicoterapêuticas, é essencial para mudar padrões de pensamento disfuncionais e ajudar o paciente a lidar com os fatores emocionais e comportamentais que desencadeiam o transtorno alimentar.

“Em casos de transtornos mais graves, o uso de medicações prescritas por psiquiatras pode ser necessário para controlar sintomas de ansiedade, depressão ou outros distúrbios mentais associados. Envolver a família no tratamento é fundamental para criar um ambiente de apoio ao redor do paciente, especialmente no que se refere à recuperação de hábitos alimentares saudáveis”, comenta Danielle.

Corpos idealizados

Poeta contemporânea, Rupi Kaur é popularmente conhecida pela poesia e por ser uma voz importante para tantas questões. Sobretudo, claro, em problemáticas que estejam relacionadas ao universo feminino. No livro O que o sol faz com as flores, um trecho da obra faz menção importante sobre corpos idealizados e padrões sociais: uma indústria de um trilhão de dólares estaria arruinada se acreditássemos que já somos lindas.

Clara Ferreira (nome fictício), 24 anos, acredita que a internet foi um grande gatilho para que ela desenvolvesse transtornos alimentares. No início, ela demorou alguns meses para se dar conta da proporção e da seriedade do que a doença significava. “Acredito que a vaidade por um corpo bonito era bem maior que tudo”, relembra a jovem.

A comida era o grande vilão. Ao mesmo tempo que comer descontroladamente dava um alívio, logo em seguida era o fundo do poço. Para Clara, sempre vinha a pergunta: por que eu comi tudo isso? E a resposta nunca chegava. A jovem se importava muito com o que os outros pensavam. O corpo e aparência nunca estavam bons o suficiente. “Era um vício constante comer e logo depois vir a culpa absurda”, acredita.

Ser diagnosticada com bulimia, ainda mais na adolescência, não foi um dilema fácil de lidar. Clara conta que não queria que as pessoas soubessem, com medo de palpites ou de julgamentos desnecessários. “Ali era eu e eu mesma”, lembra. À medida que o tempo passou, tentou trabalhar consigo mesma os pensamentos e as distorções de imagem que sofria.

Embora a culpa aparecesse em cada refeição, permanecer no mesmo lugar não era a vida que Clara sonhava. “Acredito que foi algo que consegui ir trabalhando dentro de mim aos poucos, com algumas ajudas (de fora), mas não foi nada fácil. Um processo lento e psicologicamente cansativo. Hoje em dia eu olho pra trás e consigo sentir orgulho de mim mesma por ter passado por mais uma fase que me fez mais forte.”

Complicações física e nutricionais 

Desnutrição e desequilíbrios eletrolíticos: a privação alimentar ou os ciclos de compulsão e purgação podem levar a carências severas de vitaminas e minerais, além de distúrbios no equilíbrio de eletrólitos, como sódio e potássio, que são essenciais para a função muscular e cardíaca.

Perda de massa muscular e óssea: a falta de ingestão adequada de proteínas e nutrientes pode resultar em perda de massa muscular (sarcopenia) e desmineralização óssea (osteopenia ou osteoporose), aumentando o risco de fraturas.

Distúrbios cardíacos: desequilíbrios nutricionais e desidratação severa podem afetar o ritmo cardíaco, resultando em arritmias, pressão arterial baixa e, em casos graves, insuficiência cardíaca.

Alterações hormonais: transtornos alimentares podem causar disfunções hormonais, como a amenorreia (ausência de menstruação) em mulheres, devido à baixa disponibilidade de energia para a produção hormonal.

Problemas digestivos: A bulimia, em particular, pode causar danos ao trato digestivo devido aos episódios repetidos de vômito, levando à inflamação do esôfago, refluxo gastroesofágico e erosão dentária.

Medos e pesadelos

No início, a atriz e influenciadora Dora Figueiredo, 30 anos, queria ser como as meninas que via nos filmes e nas revistas. Durante boa parte da adolescência, usou personagens do mundo cinematográfico como referência de um perfil mais padronizado, em busca do que acreditava ser “belo”. Assim, permaneceu acreditando que aquele biotipo de mulher mais magra era o melhor para si. Dessa forma, apesar de comer muito, não gostava tanto de ser esquelética, como Dora descreve.

Mas, quando a primeira menstruação veio, seu corpo, naturalmente, passou a mudar. Gorduras localizadas, inchaço corporal e hormônios à flor da pele. Tudo isso, infelizmente, aliado ao começo do que faria Dora lutar pela vida por muitos anos. “O maior pesadelo e medo que eu tinha era de ser gorda. Eu demonizava essa palavra e preferia fazer qualquer coisa do que ter mais de 60 quilos”, relata. A sociedade, de acordo com ela, influenciou bastante na maneira como enxergava padrões estéticos.

Esse receio fez com que Dora desenvolvesse hábitos para que não engordasse. Fazia dietas malucas, nas quais chegava a tomar apenas suco, durante vários dias. Para a atriz, não existia nada melhor do que a sensação de estar com o corpo vazio. Em contrapartida, uma hora ou outra, esse vazio precisava ser preenchido. A partir dessas nuances e dilemas diários, o transtorno da compulsão alimentar apareceu. “Ficava sem comer por muito tempo, depois queria comer tudo o que existia na Terra”, conta.

A família, dentro de casa, nunca reclamou da aparência de Dora. Segundo a atriz, os familiares sempre tiveram mais facilidade para ganhar peso. Os obstáculos da influenciadora estavam relacionados ao que a mente dela tomava como verdade absoluta. O ciclo repetitivo em comer e se punir por cada refeição. Dora não enxergava o que estava causando à própria saúde, tanto física quanto mental. “Para mim, só era um problema se as pessoas chegassem a vomitar por causa disso, como mostravam nos filmes. Porém, entendi, anos depois, que precisava de ajuda.”

Relacionamento, depressão e internet

Dos 14 anos até a fase adulta, os transtornos alimentares assombraram os dias de Dora. Quando entrou na faculdade, decidida a cursar nutrição na Universidade de São Paulo (USP), passou a compreender as problemáticas que vivia. “Eu era muito gordofóbica, em um claro reflexo da sociedade. Esse sempre foi o maior medo, ser gorda. Logo após estudar algumas matérias na faculdade, entendi o que era anorexia e bulimia. Antes, pensava que só seria doença se eu chegasse a pesar 30 quilos”, comenta.

Apesar do esclarecimento sobre o que enfrentava, Dora demorou até que conseguisse reagir. Dias e dias sem comer, mal tinha forças para sair da cama. Na terapia, a pauta de transtornos alimentares passou a ser debatida. As dietas, então, voltaram com força. Dessa vez, entretanto, era questão de saúde, já que a atriz teve de lidar com problemas intestinais graves. Nessa altura da vida, qualquer novo hábito alimentar mais restritivo trazia para o presente memórias do passado. Sobretudo aquelas que Dora carrega como marcas e cicatrizes até hoje.

O caminho não tem sido fácil. Há alguns anos, a atriz precisou superar um relacionamento tóxico, em que o ex-companheiro tentava regrar o que ela comia nas refeições. “Ele ficava me perguntando o que eu estava comendo, porque era uma época em que eu estava engordando”, relembra. Quando terminou o namoro, se sentiu mais livre e viva como nunca antes. Mas, entre as idas e vindas, os problemas familiares, como a perda de audição do irmão, a fizeram voltar para aquele buraco do qual tinha lutado tanto para sair.

Depressão, tristeza e a impotência por não conseguir agir. Novamente, a comida apareceu como uma válvula de escape e o corpo como uma caverna cheia de culpa. Na tentativa de tentar ter algum tipo de autocontrole, pensou em fazer lipoaspiração. Dora acreditava que esse seria o único jeito de resolver os problemas provocados pela compulsão alimentar. “Ainda bem que não fiz o procedimento, pois tenho certeza de que me arrependeria muito”, completa a atriz.

Hoje, Dora acredita que seu corpo não lhe define mais. O prazer em poder comer sem culpa voltou, algo que ela não sentia desde a adolescência. Na internet, onde tem milhares de seguidores, também tenta partilhar a importância de falar sobre padrões de beleza e transtornos alimentares. Depois de sofrer com comentários agressivos nas redes sociais sobre estar engordando, a influenciadora tem encontrado no próprio afeto uma maneira de estar em paz. “Fico feliz de ter reconquistado a minha vida.”

Dora Figueiredo possui milhares de seguidores na internet/Foto: Edu Castro

Nas telinhas 

Lançado em agosto de 2017, o filme O Mínimo para viver conta a história da personagem Ellen, interpretada pela atriz Lily Collins. No longa, a jovem de 20 anos enfrenta dilemas emocionais, psicológicos e físicos provocados pela anorexia. Em uma jornada de autodescoberta, Ellen encontra em um médico não convencional esperanças para tentar se desgarrar da doença.

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