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Saúde mental: Crianças traumatizadas se tornam adultos doentes

Por Correio Braziliense

Gritos, agressões, assistir a cenas assustadoras ou presenciar uma briga, situações como essas marcam o cérebro de uma criança. Segundo a ciência, viver traumas na infância pode causar problemas muito mais profundos, que permanecem até depois da vida adulta. Novas pesquisas destacam a importância dessa fase para uma vida longeva e saudável.

Ilustração de Valdo Virgo/Foto: Valdo Virgo/Arte/CB

Um estudo recente da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA Health), nos Estados Unidos, revela que experiências traumáticas na infância podem aumentar o risco de desenvolvimento de 20 doenças graves ao longo da vida. As conclusões, publicadas na revista Brain, Behavior and Immunity, oferecem uma análise abrangente sobre os efeitos de estressores infantis, destacando diferenças significativas entre homens e mulheres.

Embora haja um crescente consenso na literatura científica sobre as consequências duradouras de adversidades na infância, investigações anteriores não haviam explorado adequadamente como diferentes tipos de estressores afetam funções biológicas específicas e riscos à saúde. O estudo da UCLA se destaca por fornecer uma das análises mais completas sobre as consequências biológicas e clínicas das experiências adversas.

O autor sênior do estudo, George Slavich, diretor do Laboratory for Stress Assessment and Research da UCLA, enfatizou em comunicado a importância da pesquisa: “A maioria das pessoas que passaram por estresse significativo ou trauma na infância nunca são avaliadas. Essas descobertas destacam a importância crítica da triagem de estresse em ambientes clínicos.” Ele ressalta a necessidade de uma abordagem mais personalizada no tratamento, considerando o sexo do paciente e o perfil de estresse individual.

A equipe analisou dados de mais de 2.100 participantes do estudo longitudinal Midlife in the United States. Os participantes relataram experiências adversas, como dificuldades financeiras, abuso e negligência, além de fornecer amostras biológicas que permitiram a medição de 25 biomarcadores de doenças. Os resultados mostraram que os indivíduos que relataram baixo estresse apresentaram menos problemas de saúde, enquanto o risco aumentava com a gravidade das experiências vividas.

Ambos os sexos nas classes de alto estresse mostraram pior saúde metabólica e níveis elevados de inflamação. No entanto, os efeitos foram mais pronunciados nas mulheres, especialmente em relação aos biomarcadores de saúde metabólica. Para os homens, condições de abuso emocional e negligência tiveram um impacto mais significativo.

Slavich acrescentou que “o estresse está implicado em 9 das 10 principais causas de morte nos Estados Unidos hoje. Já é hora de levarmos essa estatística a sério e começarmos a fazer exames para estresse em todas as clínicas pediátricas e adultas no país”. As implicações clínicas dos achados levantam questões sobre o papel das experiências adversas em contextos sociais mais amplos, sublinhando a necessidade de políticas de saúde pública voltadas à prevenção de traumas na infância e promoção de ambientes familiares saudáveis.

O psiquiatra sócio-fundador do CBI of Miami e Primium Educação Médica, Gustavo Teixeira, destaca que mulheres que passam por eventos traumáticos apresentaram maior vulnerabilidade a inflamações e distúrbios metabólicos. “Enquanto os homens mostraram mais problemas cardiovasculares e comportamentais. Essas diferenças são atribuídas a fatores biológicos, hormonais e sociais que modulam como o corpo lida com o estresse durante a infância.”

Além das conclusões da UCLA, um editorial liderado pela Sam Houston State University (SHSU), sintetizou evidências de quase 100 meta-análises sobre experiências adversas na infância (ACE). Detalhado no Journal of Child Psychology and Psychiatry, a publicação encontrou diferenças significativas nos efeitos dependendo das abordagens utilizadas. “Nossas descobertas destacam a complexidade e a natureza variada da influência dos ACE no desenvolvimento individual e no bem-estar social”, frisou, em nota Bitna Kim, líder da pesquisa e professora da SHSU.

Conforme a revisão, ACEs incluem eventos traumáticos que ocorrem desde o nascimento até os 17 anos, como abuso, testemunhar violência e crescer em um ambiente familiar com problemas de saúde mental, por exemplo. Fabiana Fonseca, pediatra, em Brasília, destaca que são consideradas experiências adversas a violência mental e física que geram traumas, incluindo episódios de negligência.

“Precisamos mudar isso, esse trauma pode acompanhar a pessoa pela vida inteira, gerando muitos problemas. Essas questões são difíceis de lidar e demandam muita terapia. A criança fica mais suscetível a adoecer, ter doenças infecciosas e crônicas. Na fase adulta têm mais chances de apresentar obesidade, hipertensão e diabetes porque ela já tem um comportamento de risco e uma dificuldade de estabelecer relações sociais saudáveis.”

Os pesquisadores avaliaram o impacto desses eventos em seis domínios: desregulação biológica, deficiências neuropsicológicas, complicações de saúde física, condições de saúde mental, desafios sociais e comportamentais, e envolvimento com a justiça criminal.

A equipe notou que, mesmo quando classificado como de pequeno a moderado, a complexidade do evento só é evidente ao considerar as interações entre diferentes abordagens e resultados. Além disso, a análise centrada em maus-tratos infantis mostrou grandes efeitos em todos os domínios avaliados, incluindo maior envolvimento com a justiça criminal e problemas sociais.

DUAS PERGUNTAS PARA…

CARLOS GUILHERME, VICE-PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA DE BRASÍLIA (APBR)

Quais são as implicações desses resultados para as práticas clínicas relacionadas à avaliação do estresse e à medicina personalizada?

A investigação da história pregressa do indivíduo assume um papel ainda mais importante durante a avaliação clínica. Uma análise mais abrangente das experiências adversas na infância pode trazer informações cruciais para identificação de fatores de riscos para doenças ou condições de saúde, possibilitando intervenções personalizadas e otimizando o manejo e tratamento específico.

Carlos Guilherme, vice-presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr)/Foto cedida

Carlos Guilherme, vice-presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr)(foto: Imagem cedida)

Como pesquisas nessa área podem influenciar nos cuidados de crianças e jovens traumatizados?

Os resultados deste estudo podem impactar significativamente os cuidados de crianças e jovens que viveram traumas ao enfatizar a importância de reconhecer e abordar as diferentes formas de adversidade. Profissionais de saúde e educadores podem receber informações precisas sobre como essas experiências podem afetar o desenvolvimento biológico e psicológico, permitindo intervenções mais eficazes e direcionadas que visem mitigar os efeitos adversos a longo prazo. Garantir políticas públicas que previnam os diferentes tipos de abuso, além de fornecer abordagens específicas e monitoramento contínuo para crianças que sofreram traumas precoces, pode reduzir significativamente a incidência de doenças crônicas e impactar positivamente o bem-estar físico, mental e social dessas crianças ao longo de toda a vida.

Brincar é essencial

Estimular a criatividade e a confiança é indispensável na educação de crianças, segundo a ciência. Em um editorial publicado na revista Neuroscience and Biobehavioral Reviews, David F. Bjorklund, professor de psicologia na Florida Atlantic University, nos Estados Unidos, descreve a brincadeira de faz de conta como um “multivitamínico metafórico” para o desenvolvimento infantil.

Bjorklund ressalta que essa prática está intimamente ligada à aquisição de habilidades sociocognitivas. “A brincadeira de faz de conta está associada a uma série de habilidades cognitivas aprimoradas, como função executiva e linguagem,” afirmou ele, enfatizando a importância de resgatar o valor do brincar.

Com a evolução das demandas sociais e educacionais, a estrutura das pré-escolas mudou. De acordo com Bjorklund, a educação pré-escolar frisa a instrução direta, em vez de um aprendizado baseado em brincadeiras. Essa alteração gera uma incompatibilidade entre as formas naturais de aprendizado das crianças e as exigências da educação formal atual. O resultado é uma diminuição das oportunidades para os pequenos explorarem e aprenderem de forma lúdica.

O professor detalha que o ‘faz de conta’ não só é uma forma de expressão criativa, mas também um processo que prepara o cérebro para o aprendizado. “As habilidades envolvidas vão além da imaginação e da imitação; elas também incluem a capacidade de pensar sobre possibilidades diferentes da realidade.” Para a ciência, essa ludicidade é vital para o desenvolvimento das habilidades psicológicas.

A brincadeira de faz de conta está associada a uma série de habilidades cognitivas aprimoradas, como função executiva, linguagem e tomada de perspectiva, que são importantes para a educação/Foto: Florida Atlantic University

A brincadeira de faz de conta está associada a uma série de habilidades cognitivas aprimoradas, como função executiva, linguagem e tomada de perspectiva, que são importantes para a educação(foto: Florida Atlantic University)

Pesquisas demonstram que abordagens pedagógicas baseadas em brincadeiras oferecem benefícios significativos a longo prazo, superando os ganhos imediatos da instrução direta. “Estudos mostraram que, embora a instrução direta possa trazer benefícios iniciais, esses efeitos diminuem ao longo do tempo,” ressalta Bjorklund.

A psicóloga infantil Claudia Melo, afirma que na prática clínica observa uma maior capacidade de expressão de sentimentos e mais facilidade de lidar com situações adversas e habilidades de comunicação e interação em crianças que brincam de faz de conta. “Recomendo que os pais reservem um tempo e incentivem essa atividade em casa, proporcionando tempo e espaço para a livre expressão criativa das crianças. É importante disponibilizar materiais e objetos diversificados como tintas, lápis de cor, jogos, tecidos, bolas e bonecos. Todos esses processos incentivam a participação ativa nas brincadeiras e a valorização da imaginação e da espontaneidade.”

“Brincar é essencial, e a diminuição do tempo de brincadeira livre está associada ao aumento de problemas emocionais e comportamentais em crianças. Isso porque a brincadeira é fundamental no crescimento e no desenvolvimento saudável, no fortalecimento das habilidades sociais, na regulação emocional e no bem-estar infantil”, ressaltou a especialista. (IA)

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