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Acre avança ao inaugurar primeiro centro especializado em saúde de pessoas trans e travestis

Por Matheus Mello, ContilNet

A transição de gênero é um processo repleto de desafios e complexidades, que vai muito além da simples mudança de aparência. Para muitas pessoas trans, essa jornada é marcada por um intenso combate contra o preconceito, a busca por aceitação e o anseio por viver em congruência com sua verdadeira identidade.

O primeiro, e talvez mais doloroso desafio é a descoberta da própria identidade. Quase sempre essa é uma jornada solitária, repleta de incertezas e inseguranças. A sociedade, muitas vezes, não está preparada para acolher a diversidade de gênero. O medo de rejeição, seja na família, entre amigos ou no trabalho, é um dos momentos mais conturbados de todo o processo.

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Bandeira de representação da comunidade transexual e travesti/Foto: Reprodução

Após essa fase inicial de autodescoberta, começa o processo de transição, que pode incluir mudanças físicas, como terapia hormonal e cirurgias, além de mudanças sociais, como o uso de pronomes corretos e a alteração do nome.

É justamente nessa fase que fica claro a importância de políticas públicas consolidadas no amparo e atendimento dessa população tão invisibilizada não só pela sociedade, mas principalmente pelas instituições políticas.

Ainda no ano passado, o Acre deu um passo importante na equidade do acesso à saúde da população LGBTQIAPN+, ao inaugurar o primeiro ambulatório especializado em atendimento a Travestis e Transexuais e mostrar que compreende a importância da questão.

O espaço é o primeiro do Acre a atender especificamente pessoas trans/Foto: Juan Diaz/ContilNet

O primeiro centro foi montado no posto de saúde Ary Rodrigues, no bairro Seis de Agosto, em Rio Branco, e focou no atendimento de atenção primária.

A princípio, o centro serviu como teste para outro local que foi inaugurado dias depois, na Policlínica do Tucumã.

O centro foi montado no posto de saúde Ary Rodrigues, no bairro Seis de Agosto/Foto: Juan Diaz/ContilNet

A iniciativa foi encabeçada pelo Governo do Estado, por meio da Secretaria de Estado de Saúde do Acre (Sesacre). O ambulatório já era algo previsto em uma portaria publicada há 10 anos, mas que nunca tinha sido colocada em prática.

A secretária-adjunta de Saúde do Estado, Ana Cristina, informou que os ambulatórios têm como principal objetivo acolher a população transexual e travesti no primeiro atendimento, com o trabalho de enfermeiros e clínicos-gerais.

“A gente está trabalhando o princípio que o SUS determina, que é a equidade. Nós precisamos dar acesso a essa população. Não é um acesso diferenciado. É simplesmente ter o reconhecimento. A gente abre esse espaço para que essa população seja acolhida”.

A responsável pela pasta disse ainda que o ambulatório é uma ferramenta que vai acabar com um problema enfrentado há muito tempo pela saúde do Acre: a falta de dados relacionados à população trans e travestis.

Secretária-adjunta de Saúde, Ana Cristina/Foto: Juan Diaz/ContilNet

“Nós não temos sequer dados epidemiológicos dessa população. Então, a gente precisa estratificar esses números, precisamos conhecer essa população”.

Em uma ação conjunta, a criação do centro também cumpriu uma portaria do Ministério da Saúde, que tem como promessa o plano de ação da empregabilidade LGBTQIA+, firmado entre o governo do Acre com o Ministério Público Federal (MPF).

Ao ContilNet, a representante do Ministério Público do Acre (MPAC), Rubby Rodrigues, destacou que o ambulatório é um marco para a população LGBTQIAPN+ do estado.

Rubby Rodrigues, mulher trans e ativista, representou o MPAC no evento/Foto: Juan Diaz/ContilNet

“As pessoas confundem muito quando nós falamos que nós existimos, com direitos. Na verdade nós estamos pedindo que o direito constitucional seja garantido. Esse espaço hoje sendo estabelecido, ele traz à tona as nossas vidas, que elas existem, importam, e precisam ser representadas”.

Amparo e acolhimento

O Brasil já vem liderando há anos um índice preocupante: é o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo. Rubby lembra que além de serem assassinadas, esse público também enfrenta outros problemas relacionados à Saúde, principalmente a psicológica.

“Nós temos estatísticas de várias pessoas trans que se mutilam, se suicidam, por conta da disforia de gênero, da falta de um acompanhamento psicológico, hormonal”, destacou ao ContilNet.

Antonella Rodrigues, representante da ATTRAC/Foto: Juan Diaz/ContilNet

É justamente a precariedade no atendimento hormonal que Antonella Albuquerque, representante da ATTRAC, Associação das Travestis e Transexuais do Acre, disse ser a principal questão para a população.

“Muitas de nós procuram um atendimento público de Saúde e não somos respeitadas. Principalmente pela falta de profissionais para nos atender. Às vezes não têm endocrinologista para fazer uma terapia hormonal. Muitas de nós tomávamos o hormônio por conta. Uma ensinava a outra, passava o comprimido para a outra. Eu tenho 44 anos, quantos hormônios eu ingeri no meu corpo… Com o ambulatório, nós teremos um acompanhamento médico, com assistência social, psicólogo. Teremos um acolhimento. Isso é cidadania. E nós somos cidadãs”, completou.

Como é o processo e o atendimento?

O processo transexualizador geralmente começa com a busca por um suporte psicológico. O paciente tem acompanhamento com profissionais de saúde mental para ajudar na exploração da identidade de gênero e no planejamento da transição.

Após isso, a pessoa pode optar por iniciar tratamentos hormonais, etapa crucial que permite o desenvolvimento de características físicas que correspondem à identidade de gênero. Esse tratamento é frequentemente acompanhado por médicos especializados, que monitoram os efeitos e ajustam as dosagens conforme necessário.

Ambulatório de especialidades na Policlínica do Tucumã/Foto: Luan Martins

Outra etapa importante é a possibilidade de realizar cirurgias de afirmação de gênero, que podem incluir procedimentos como a mastectomia, a vaginoplastia ou a faloplastia. A realização dessas cirurgias, já permitidas em alguns estados, depende de uma série de requisitos, incluindo a recomendação de profissionais de saúde e, em muitos casos, a realização de um período de vivência no gênero desejado.

A Sesacre informou que a Policlínica do Tucumã é a unidade referência para esses atendimentos, principalmente em razão do ambulatório especializado. Contudo, os primeiros atendimentos continuam na Urap Ary Rodrigues.

Atendimento em casa

Caê precisou deixar o Acre para buscar esse tipo de atendimento especializado. Homem trans, ele morou um tempo em São Paulo para ter acesso à terapia hormonal. Agora, com o ambulatório em Rio Branco, ele pode ter acesso ao atendimento na sua cidade natal, sem precisar se deslocar.

Caê foi embora para São Paulo em busca de atendimento especializado/Foto: Juan Diaz/ContilNet

“É uma abertura para que as pessoas se sintam existentes. Ter um espaço para ser acolhido. Isso facilita para que a gente entenda que o nosso processo não é errado. A gente existe. E ter pessoas capacitadas que entendam isso é um passo importante”, disse ao ContilNet.

“Agora sei que posso colocar meu nome social no SUS e ser atendido por ele. As pessoas não têm essa capacidade em lugar nenhum”, finalizou.

A jornada de uma pessoa trans é complexa e multifacetada. É uma luta constante por aceitação, dignidade e respeito, mas também é um testemunho de resiliência e coragem. O primeiro centro especializado em saúde de pessoas trans é mais do que um novo serviço, é um passo firme rumo à igualdade.

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