No primeiro dia do julgamento contra a BHP em Londres sobre a tragédia de Mariana (MG), a acusação argumentou que a empresa tinha conhecimento dos altos níveis de rejeitos que vinham sendo despejados acima dos limites estabelecidos, e que aprovou planos para aumentar a altura da barragem, a fim de acomodar a lama tóxica. Essa ação é movida por 620 mil atingidos pelo desastre que vitimou 19 pessoas e contaminou o Rio Doce, representados pelo escritório Pogust Goodhead. O pedido é de indenização recorde que pode chegar a R$230 bilhões. A BHB nega as alegações e diz que a ação “prejudica os esforços” pela repactuação de um acordo financeiro no Brasil.
A expectativa é que o julgamento dure ao menos três meses, e que a sentença seja proferida em meados do ano que vem. As sessões desta segunda (21) e terça (22) serão para alegações da acusação. Já nos dois dias seguintes serão a vez da defesa. A principal tese dos advogados de acusação é de que a Samarco, operadora da barragem que se rompeu, era, na prática, controlada pela BHP e pela Vale, as duas acionistas da empresa, que é uma joint venture.
No tribunal, Alain Choo Choy, representante da Pogust Goodhead, afirmou que as decisões na Samarco só podiam ser tomadas com o acordo conjunto dos representantes da BHP e da Vale.
— A participação direta e o envolvimento da BHP em orientar, controlar e influenciar a Samarco, ou seja, na diretoria executiva e em todos os aspectos significativos das operações da Samarco, são igualmente relevantes e impactantes— disse na sessão desta segunda, conforme apurou O GLOBO com exclusividade.
Procurada, a BHP refutou “as alegações acerca do nível de controle em relação à Samarco, que sempre foi uma empresa com operação e gestão independentes”.
Mais de um milhão de toneladas de rejeitos a mais que o permitido
A acusação nesta segunda seguiu com o argumento de que a BHP tinha conhecimento dos despejos de rejeitos acima do limite permitido. Desde 2009, eram despejadas, anualmente, 1,3 milhão de toneladas de rejeitos de mineração na barragem, de acordo com os documentos apresentados ao tribunal. Mas, um contrato entre a Vale e a Samarco estipulava limite de 109.324 toneladas de rejeitos por ano. A maior parte dos rejeitos acumulados atrás da barragem seria da mina Alegria, da Vale.
Foi apresentado um documento sobre uma reunião de abril de 2012, entre os representantes da BHP, para preparação antes do encontro com o conselho da Samarco. Naquela reunião, foram mencionados os altos níveis de despejo de rejeitos, mas ainda assim a BHP teria orientado seus representantes a não “forçar” a suspensão do contrato com a Vale por causa de sua “alta dependência”.
— A decisão da BHP, que foi executada, era que a Vale continuasse despejando seus resíduos até o colapso da barragem. Milhões de toneladas de rejeitos da mina Alegria foram despejados atrás da barragem. A BHP aprovou esse arranjo, mesmo sabendo que era inseguro e antieconômico para a Samarco — afirmou Choo Choy à juíza. — Até onde sabemos, foi assim que a BHP lidou com o uso da barragem. Eles permitiram que isso acontecesse, pois era conveniente para os objetivos maiores de crescimento da Samarco de que a BHP desejava se beneficiar.
Os advogados afirmaram que a BHP aprovou planos para aumentar a altura da barragem, primeiro para 920 metros e depois para 940 metros, para acomodar o crescente volume de rejeitos despejados. Em seguida, a acusação disse que os níveis na barragem continuaram subindo porque não havia drenagem suficiente para o volume de resíduos armazenados, o que levou ao seu colapso.
— O simples fato é que não era seguro continuar aumentando a barragem, porque ela estava em estado muito frágil e apresentava sinais de estresse severo — concluiu Choo Choy.
BHP e Vale se manifestam
Procurada, a BHP respondeu que a Fundação Renova, criada em 2016 pelo primeiro acordo judicial de reparação, “já destinou mais de R$ 37 bilhões em auxílio financeiro emergencial, indenizações, reparação do meio ambiente e infraestruturas para aproximadamente 430.000 pessoas, empresas locais e comunidades indígenas e quilombolas”. Além de negar as acusações, a empresa disse que trabalha “em estreita colaboração com a Samarco e a Vale para apoiar o processo contínuo de reparação e compensação em andamento no Brasil”. Por fim, disse que a ação em Londres “duplica e prejudica os esforços em andamento no Brasil” para um novo acordo de compensação “justo e abrangente”.
Já a Vale, que não figura mais no processo judicial da Inglaterra, disse que a ação lida “com questões já abarcadas no Brasil, seja por processos judiciais, seja pelo trabalho de reparação realizado pela Fundação Renova”. A empresa também citou os pagamentos pela Fundação Renova, alegando um total de R$38 bilhões gastos.
Nesta sexta-feira (17), a Vale divulgou um comunicado ao mercado que detalhava a proposta por um novo acordo de R$170 bilhões em decorrência da tragédia de Mariana. O montante inclui os R$38 bilhões já pagos pela Fundação Renova, R$32 milhões de obrigações que já existem e precisam ser pagos, e mais R$100 bilhões em dinheiro novo.
No sábado, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, afirmou que, se o novo acordo for assinado, 300 mil famílias receberão indenizações individuais de até R$30 mil. A proposta foi criticada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) pela discordância sobre os valores de indenização individual e pela “falta de clareza” em relação a diversos pontos dos programas.
Já o escritório Pogust Googhead disse que seus clientes não foram consultados durante as negociações de repactuação e que a divulgação da proposta foi uma “tentativa desesperada da BHP de não responder em tribunal pelos atos que levaram ao rompimento da barragem”.
O julgamento em Londres
A ação em Londres teve início em 2018, para atender a moradores da região afetada direta ou indiretamente pela tragédia. O total de vítimas inclui lideranças indígenas, quilombolas, 46 municípios da bacia do Rio Doce, instituições religiosas, empresas, associações comerciais e autarquias.
Inicialmente, a BHP era a única réu, mas ela pediu e conseguiu incluir, em 2023, a Vale no processo, como responsabilidade solidária. Em junho passado, porém, as duas empresas entraram em um acordo, e a Vale foi retirada da ação inglesa, com mas com o compromisso de pagar 50% das indenizações em caso de responsabilização.
Depois das alegações iniciais nessa semana, da acusação e da defesa, testemunhas serão interrogadas. O tribunal ainda vai ouvir especialistas em Direito Civil, Direito Societário e Direito Ambiental, e será debatida legitimidade de Municípios, que reclamam de danos ambientais e perdas de receitas, em mover ações fora do país.
Na sequência, serão ouvidos especialistas em questões geotécnicas. As alegações finais orais serão apresentadas entre 24 de fevereiro e 5 de março de 2025.
Entre as vítimas, há trabalhadores que perderam renda e empregos com a contaminação do Rio Doce e mães que perderam seus filhos no dia do rompimento.
— Perdi entes queridos, minha casa, minha identidade, minha vida. O que é pior, tudo isso por causa da ganância de grandes empresas. Não tem sido fácil, mas vou continuar lutando por justiça por mim e pelos meus — afirmou, em nota, Mônica dos Santos, moradora de Bento Rodrigues, um dos municípios que precisou ser reconstruído após a tragédia.
A quantificação dos danos é feita pelo escritório Pogust Goodhead, com base na legislação brasileiras, normas internacionais e em estudos e análises independentes, de ONGs e universidades. O escritório diz que as vítimas foram consultadas por quatro anos, por meio de questionários, análises de evidências documentais e reuniões presenciais. A ação pede adicionais específicos de indenização para grupos vulneráveis.
O rompimento da barragem de Fundão liberou 44,5 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, o equivalente a 13 mil piscinas olímpicas, e outros 13 milhões de metros cúbicos escoaram nos dias seguintes. A lama de rejeitos percorreu 675 quilômetros, atingiu o Rio Doce e chegou até o Oceano Atlântico, afetando os litorais do Espírito Santo e da Bahia.
No dia da tragédia, 19 pessoas, morreram. Além de ações judiciais no Brasil, há outros processos civis em curso na Holanda e na Austrália.
Dino proíbe que municípios paguem advogados em ações judiciais fora do país
Na semana passada, o ministro do STF, Flavio Dino, proibiu municípios de pagarem advogados por ações judiciais fora do país, e determinou que apresentem cópias dos contratos existentes à Corte. A decisão é liminar e o mérito da ação ainda não foi julgada.
O pedido da proibição é do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), que alega que as ações judiciais no exterior implicam em “violações aos princípios que devem reger toda a atividade administrativa, como a publicidade, a moralidade e a legalidade”.
Do outro lado, organizações como o Consórcio Público para Defesa e Revitalização do Rio Doce (Coridoce), Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Central Única dos Trabalhadores (CUT) e Associação Nacional dos Atingidos por Barragens (Anab) defendem que as ações no exterior servem para ampliar o acesso à justiça, já que são empresas transnacionais que causaram os danos.