“Eu, o palhaço”: jornalista Tião Maia escreve artigo emocionante em homenagem a Marcos Vicentti

Texto do jornalista Tião Maia em homenagem ao reporter fotográfico Marcos Vicentti, que morreu na madrugada desta sexta-feira

Quando decidi que na vida eu seria jornalista, no início dos anos 80 – portanto, faz mais de 40 anos – ainda era um menino. E, como tal, nos meus sonhos de todo menino, queria ser, entre outras coisas, médico, delegado, detetive, astronauta, artista, enfim, qualquer coisa que fosse útil à sociedade, me engrandecesse e me tirasse da mediocridade daquela vida de pobre, de pelo menos quatro gerações antes da mais absoluta pobreza.

Não podendo ser tudo ao mesmo tempo e o que queria, achei que, como jornalista, eu seria um resumo de todas as coisas que quis ser e, por óbvio, não fui. Afinal, o jornalista é um ser que sabe de tudo, embora não conheça nada. Ou vice-versa, descobri muito tempo depois.

Eu não queria ser apenas mais um jornalista no meio de tantos. Queria ser bom, o melhor, coisas desse tipo e, portanto, me dediquei com afinco e cuidado. Não sei se consegui, mas expus-me, corri riscos da própria vida, fui preso, apanhei na rua, tive que mudar de casa na calada da noite porque a própria polícia chegou a me informar que poderiam incendiar minha casa. Enfim, sofri quatro atentados, facadas e tiros, mas, graças a Deus, cheguei até aqui.

Prestes a completar 60 anos de vida, ainda trago os mesmos sonhos de ser útil à sociedade e me dedico à profissão com a mesma tenacidade de antes.

Sei que minha vida nem é lá tão importante para vir aqui falar da minha própria pessoa. Mas atrevo-me a fazê-lo para dizer que, na vida de jornalista, apesar dos ganhos nem sempre justos, vale a pena insistir na atividade, não só pela satisfação, mas também pelo que de bom um jornalista dedicado e com alguma sensibilidade pode fazer. Mas há coisas doloridas na atividade também.

Uma delas, a mais cruel, é esta: ter que escrever sobre a morte de amigos, de pessoas queridas. Ter que suportar ver os praticantes de tantas maldades gozando de boa saúde e vida longa, enquanto as pessoas boas, essas, sim, indo-se jovens, na flor da idade, para usar uma expressão do senso comum. Nos meus tempos de ateísmo, cheguei a inclusive questionar a Deus sobre isso.

E hoje, mais uma vez, tive o desprazer de sentar para escrever sobre a partida do amigo Marcos Vicenti, um amigo querido. Escrevi com muita dificuldade, sobretudo porque, com as lágrimas, as lentes dos óculos embaçam e é preciso parar e enxugá-las com o papel higiênico cujo rolo teve que ficar ao lado da garrafa de café.

Marcos Vicentti morreu nesta sexta-feira/Foto: Reprodução

Entre um gole e outro, lembrei que um amigo, uma vez, a pretexto de me elogiar, disse que eu era um artista da palavra. Achei um exagero, confesso. Se sou um artista da palavra, o que meu amigo não diria de um Shakespeare, de um Drummond, do Jorge Amado, de um Saramago, para ficar só nesses? Mas devo confessar também: o jornalista tem que ser, sim, um artista. É o olhar meio de artista que nos impulsiona a enxergar o que outros não querem ou não suportam ver. É isso que credencia e dá credibilidade ao jornalista e ao jornalismo.

E hoje, ao escrever sobre o Marcão, como ocorre toda vez que tenho que escrever sobre a morte de um amigo – uma das desgraças de ser um repórter longevo é essa: ter que registrar a partida de pessoas do seu entorno e queridas – senti que, em momentos assim, o jornalista despe-se para assumir a roupagem do artista principal de qualquer circo: o palhaço. O palhaço é aquele profissional que precisa alegrar sua plateia, mesmo que, por dentro, se derrame em lágrimas embaixo da fantasia e da maquiagem.

É isso que sou hoje: o palhaço, aquele que chora e tem que fazer com que os outros riam ou esqueçam suas dores, ainda que momentaneamente. Algo como o soldado ferido que, ainda assim, precisa dizer ao resto da tropa que, apesar de estar à beira da morte, tudo vai bem – afinal, é preciso encorajar o restante dos soldados.

Sou isso hoje. Sangrando, mas sendo obrigado a declarar que a vida segue. Até um dia, Marcão!

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