Fiocruz começa a testar vacina contra a hanseníase, uma das doenças mais antigas do mundo

O Brasil ocupa o 2º lugar no mundo em número de casos. A vacinação ainda não chegou ao Acre, onde, em 2022, surgiram 124 novos casos

“Uma nova esperança, uma nova luz no fim desse túnel”, disse o presidente do Morhan (Movimento de Reintegração do Hanseniano) ao se referir aos primeiros testes de uma vacina inédita contra a doença, que vem sendo testada no Brasil. Os testes são feitos pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). O fundador do Morhan e maior símbolo de combate à doença é o acreano Francisco Augusto Nunes, conhecido como “Bacurau”, que foi acometido pela doença e viveu com suas sequelas até o ano de 1997, quando faleceu de outras doenças em sua casa, no Conjunto Bel Vista, em Rio Branco (AC).

 

A LepVax é a primeira vacina específica para hanseníase a ser testada em território brasileiro, e o Instituto foi escolhido como centro clínico devido à sua atuação científica nos estudos sobre a doença. Financiados por entidades internacionais e pelo Ministério da Saúde, os testes serão conduzidos pelo Laboratório de Hanseníase do IOC, que, além da pesquisa, presta atendimento a pacientes no Serviço de Referência Nacional em Hanseníase. Com alta capacidade para a realização de estudos clínicos, o laboratório dispõe de uma equipe multiprofissional e de infraestrutura para análises imunológicas e moleculares, informa o Ministério da Saúde.

A LepVax é a primeira vacina específica para hanseníase a ser testada em território brasileiro/Foto: Reprodução

No Acre, a doença continua fazendo novos casos

Classificado como um ensaio clínico de fase 1b, o estudo tem o objetivo de confirmar a segurança e a imunogenicidade da vacina. Segundo Verônica Schmitz, chefe substituta do Laboratório de Hanseníase do IOC/Fiocruz e líder do ensaio clínico, essa avaliação é importante porque, considerando o cenário epidemiológico do país, é possível que o sistema imunológico de grande parte dos brasileiros tenha tido contato anterior com micobactérias, o que pode influenciar a resposta à vacina. O cenário é o mesmo nos demais países endêmicos para hanseníase, onde o imunizante poderá ser adotado. A vacina será inicialmente aplicada a pacientes em tratamento e não previne a doença, mas, nesse caso, o medicamento inibe o avanço da infecção.

A autorização para o início dos testes foi concedida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na semana passada. A vacina ainda não chegou ao Acre, onde foram registrados, em 2022, pelo menos 124 novos casos gerais de hanseníase e três casos da doença em adolescentes menores de 15 anos. Os números de 2022 são os últimos disponíveis sobre a doença, informou o Morhan.

O registro de 2022 é preocupante porque mostra que a doença, ao invés de regredir, está apresentando novos casos, e ainda há aqueles não notificados, uma vez que muitas das vítimas atingidas têm vergonha e procuram esconder a doença. A hanseníase tem registros no Brasil há pelo menos 150 anos.

E eis que Jesus Cristo curou dez leprosos, diz o Novo Testamento da Bíblia

A hanseníase, sob o nome de lepra, é uma das doenças mais antigas do mundo. A hanseníase é descrita em tratados de medicina da Índia do século 6 a.C. e também aparece em diversas passagens do Novo Testamento da Bíblia, ainda com o nome pelo qual era conhecida no passado: lepra.

No Evangelho de Marcos, por exemplo, há uma passagem em que um “leproso” se aproxima de Jesus Cristo e pede para ser curado. “E Jesus, movido de compaixão, estendeu a mão, tocou-o […] Logo a lepra desapareceu e [ele] ficou limpo”, diz o texto.

Há ainda outro registro no Novo Testamento, quando Jesus Cristo, em seus milagres, realiza a cura de dez leprosos. “E ocorreu que os dez leprosos, de longe, levantaram a voz, dizendo: ‘Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós’” (Lc 17:13), diz um trecho da Bíblia. E Jesus, segundo o versículo, vendo-os, “teve compaixão e disse para eles irem e mostrarem aos sacerdotes que estavam curados. E aconteceu que, de fato, indo eles, ficaram limpos”.

Na Europa, durante a Idade Média, indivíduos com a doença eram expulsos das cidades e obrigados a andar com um sino para anunciar a própria passagem, a fim de afastar as demais pessoas e evitar contaminação e proliferação da doença. Muitos eram internados nos “leprosários” ou “lazaretos”, instituições que continuaram (e continuam) a existir em muitos lugares — inclusive no Brasil.

O Brasil representa mais de 90% dos diagnósticos da doença no continente americano e é o segundo país do mundo com maior quantidade de registros da doença. Em todo o território, durante 2022, mais de 17,2 mil pessoas foram identificadas com a infecção.

As regiões de maior incidência no país são o interior de Minas Gerais, na região de Betim e Vale do Jequitinhonha, o sul do Amazonas e o Estado do Acre. O micro-organismo causador da doença tem preferência pelos lugares mais frios do corpo humano, como cotovelos, joelhos, pés e lóbulos da orelha, onde há menor circulação de sangue. O micro-organismo costuma se esconder nos nervos periféricos, que ficam logo abaixo da pele, e podem permanecer ali por anos ou décadas antes de manifestar qualquer sintoma.

A hanseníase, se não tratada, pode causar lesões neurais e danos irreversíveis, e, por isso, é importante identificar a doença ainda em seus estágios iniciais. Para possibilitar esse diagnóstico precoce, o Ministério da Saúde, a partir de fevereiro deste ano, distribuirá 150 mil testes rápidos em diversas unidades de atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS). A iniciativa coloca o Brasil como o primeiro no mundo a ofertar insumos para a detecção da doença na rede pública.

Micro-organismo causador tem preferência pelos nervos periféricos do corpo humano

O anúncio da medida foi feito pela ministra da Saúde, Nísia Trindade, durante o seminário “Hanseníase no Brasil: da evidência à prática”, que ocorreu na penúltima semana de janeiro deste ano. Os testes serão destinados às pessoas que tiveram contato próximo e prolongado com casos confirmados da infecção.

A rede pública tem disponível dois tipos de testes: o rápido (sorológico) e o de biologia molecular (qPCR). Uma terceira modalidade também é ofertada pelo SUS, o teste PCR, que auxiliará na detecção da resistência a antimicrobianos. As três tecnologias foram incluídas no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da doença em julho do ano passado e desenvolvidas por pesquisas brasileiras.

A hanseníase é causada pela bactéria Mycobacterium leprae, uma doença infecciosa, contagiosa e de evolução crônica que atinge principalmente a pele, os nervos periféricos e as mucosas.

Os sintomas se manifestam com manchas (brancas, avermelhadas, acastanhadas ou amarronzadas) e/ou áreas da pele com alteração da sensibilidade térmica (de frio e calor), dolorosa e/ou tátil. Outro sintoma é o comprometimento dos nervos periféricos, geralmente com engrossamento da pele, associado a alterações sensitivas, motoras e/ou autonômicas.

Há também registro de sensação de formigamento e/ou fisgadas, principalmente em mãos e pés, e diminuição ou perda da sensibilidade e/ou da força muscular na face, nas mãos e nos pés, além de caroços (nódulos) no corpo, em alguns casos avermelhados e dolorosos.

O SUS disponibiliza o tratamento e acompanhamento dos pacientes em unidades básicas de saúde e de referência, não sendo necessária a internação. O tratamento é realizado com a associação de três antimicrobianos — rifampicina, dapsona e clofazimina — chamada de Poliquimioterapia Única (PQT-U). A associação diminui a resistência medicamentosa do bacilo, que ocorre com frequência quando se utiliza apenas um medicamento.

A duração do tratamento varia de acordo com a forma clínica da doença e, ainda no começo da administração medicamentosa, a bactéria deixa de ser transmitida. O paciente é acompanhado por um profissional de saúde em consultas, geralmente mensais, quando também recebe uma nova cartela de PQT-U.

Quando necessário, e a critério médico, o paciente pode ser encaminhado para centros de referência em hanseníase para avaliação clínica aprofundada, para se verificar a necessidade de prescrição de outros medicamentos de auxílio.

Os primeiros testes com a vacina, segundo o coordenador do Morhan, representam um avanço histórico na busca por novas soluções para o controle da doença, que ainda afeta milhares de pessoas no país. O país que ocupa o primeiro lugar no mundo em número de casos é a Índia.

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