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Valsa perdida de Chopin é descoberta após quase 200 anos

Por O Globo

O pianista Lang Lang toca a valsa de Chopin descoberta recentemente no Steinway Hall em Nova York, em 7 de outubro de 2024 — Foto: Mohamed Sadek/The New York Times

No cofre da Morgan Library & Museum, em Manhattan, um dia o curador Robinson McClellan estava classificando uma coleção de itens de valor cultural. Havia cartões postais assinados por Picasso, uma fotografia vintage de uma atriz francesa e cartas de Brahms e Tchaikovsky. Mas quando McClellan pôs os olhos no Item nº 147, ele congelou: era um rascunho de música com uma pequena anotação. A peça estava marcada como “Valse”, ou valsa em francês, e um nome escrito em letra cursiva no topo: Chopin.

O pianista Lang Lang toca a valsa de Chopin descoberta recentemente no Steinway Hall em Nova York, em 7 de outubro de 2024

O pianista Lang Lang toca a valsa de Chopin descoberta recentemente no Steinway Hall em Nova York, em 7 de outubro de 2024 — Foto: Mohamed Sadek/The New York Times

— Eu pensei: ‘O que está acontecendo aqui? O que pode ser isso?'” — disse McClellan. — Não reconheci a música.

Ele tirou uma foto do manuscrito e tocou a partitura em casa, num piano digital. Poderia realmente ser de Chopin? Ele tinha suas dúvidas: a obra era excepcionalmente vulcânica, abrindo com notas calmas e dissonantes que irrompem em acordes estrondosos. Ele enviou uma fotografia para Jeffrey Kallberg, um importante estudioso de Chopin na Universidade da Pensilvânia.

— Meu queixo caiu — disse Kallberg. — Eu sabia que nunca tinha visto isso antes.

Descoberta rara

Em uma imagem sem data fornecida pela The Morgan Library & Museum, uma valsa de Chopin descoberta recentemente — Foto: The Morgan Library & Museum via New York Times

Após testar o papel e a tinta do manuscrito, analisar sua caligrafia e estilo musical e consultar especialistas externos, o Morgan chegou a uma conclusão importante: a obra é provavelmente uma valsa desconhecida de Frédéric Chopin, a primeira descoberta desse tipo em mais de meio século.

A descoberta pode gerar debate no campo da música clássica, onde relatos de obras-primas desenterradas são às vezes recebidos com ceticismo por conta do histórico de falsificações. Mas também houve descobertas significativas nos últimos anos: uma biblioteca em Leipzig, Alemanha, anunciou em setembro que havia encontrado uma cópia de um trio de cordas de Mozart de 12 minutos.

Obras recém-descobertas de Chopin, que morreu em 1849, aos 39 anos, provavelmente de tuberculose, são raras. Embora seja uma das figuras mais queridas da música — seu coração, conservado em um pote de álcool, está guardado em uma igreja em Varsóvia — ele foi menos prolífico do que outros compositores, escrevendo cerca de 250 peças, quase inteiramente para piano solo.

Rabisco de Chopin

Em uma imagem sem data fornecida pela The Morgan Library & Museum, uma valsa de Chopin descoberta recentemente — Foto: The Morgan Library & Museum via The New York Times

O manuscrito encontrado no Morgan, que teria sido escrito entre 1830 e 1835, quando Chopin tinha pouco mais de 20 anos, tem várias peculiaridades. Embora se acredite que esteja completo, o trabalho é mais curto do que as outras valsas de Chopin — apenas 48 compassos de comprimento com uma repetição, ou cerca de 80 segundos. A peça, na tonalidade de lá menor, tem marcações dinâmicas incomuns, incluindo um forte triplo, significando volume máximo, perto do início.

Mas o Morgan diz estar confiante de que a valsa é autêntica, apontando para várias marcas registradas de Chopin. O papel e a tinta são consistentes com o que compositor usava na época, diz o museu. A caligrafia corresponde à de Chopin, até a representação incomum do símbolo da clave de fá. Outro manuscrito dele nos acervos do Morgan mostra um símbolo de clave de fá semelhante. O manuscrito também é embelezado com um rabisco de Chopin, que gostava de desenhar.

— Temos total confiança em nossa conclusão — disse McClellan. — Agora é hora de expor isso para o mundo dar uma olhada e formar suas próprias opiniões.

Preocupação com a Polônia

O pianista Lang Lang toca uma valsa de Chopin descoberta recentemente no Steinway Hall em Nova York, em 7 de outubro de 2024 — Foto: Mohamed Sadek/The New York Times

O famoso pianista Lang Lang, que recentemente gravou a valsa no Steinway Hall, em Manhattan, diz que para ele a obra parece ser de Chopin. A abertura chocante, disse, evoca os invernos rigorosos do interior da Polônia.

— Esta não é a música mais complicada de Chopin — acrescentou — Mas é um dos estilos Chopin mais autênticos que você pode imaginar.

Nascido de pai francês e mãe polonesa em uma vila fora de Varsóvia em 1810, Chopin deixou a Polônia em 1830, quando tinha 20 anos. Ele se estabeleceu em Paris, rapidamente se tornando um poeta do piano, cuja música evocava novos reinos de emoção.

A separação de Chopin de sua família e suas preocupações com o futuro da Polônia podem ter contribuído para a qualidade dolorosa de sua música dessa época. No início da década de 1830, a Polônia estava em rebelião armada contra o Império Russo, que havia ocupado partes do país. Chopin nunca retornou à sua terra natal.

Obras perdidas

“O pai se desespera — ele não sabe o que fazer e não tem ninguém para ajudar a cuidar da mãe”, ele escreveu em um diário enquanto viajava pela Alemanha em 1831. “E aqui estou eu, ocioso — e aqui estou eu com as mãos vazias. Eu apenas me lamento, expressando minha dor de vez em quando ao piano.”

Certa vez, quando um aristocrata em Paris pediu para Chopin explicar a melancolia de sua música, ele invocou a palavra polonesa “zal”, que significa nostalgia ou arrependimento. Alan Walker, um famoso biógrafo do compositor, disse que “zal” era palpável em peças mais curtas como as valsas, que Chopin infundiu com uma profundidade de emoção que antes era reservada para obras muito maiores. As valsas eram um elemento alegre dos salões de baile. Mas as de Chopin nunca foram feitas para dançar.

Chopin, que não escreveu sinfonias ou óperas, nem sempre foi visto como um compositor sério.

— Nunca ocorreu aos nossos antepassados ​​que poderia haver mais substância musical em uma valsa curta ou mazurca de Chopin do que em uma sinfonia inteira de Boccherini — disse Walker.

Embora os especialistas acreditem que Chopin escreveu até 28 valsas, apenas oito foram lançadas em sua vida, e nove após sua morte. O resto foi perdido ou destruído.

Algumas de suas obras, como a “Grande Valse Brillante”, brilham com energia e sofisticação. Outras são brincadeiras divertidas, como a “Minute Waltz”, que perdurou na cultura popular, interpretada por Bugs Bunny e Barbra Streisand. Outras ainda são meditações melancólicas, como a “Waltz in B Minor”.

Muitos pianistas da época se deliciavam com exibições deslumbrantes de virtuosismo diante de grandes públicos. Mas Chopin detestava o que ele chamava de “escola de trapézio voador” do pianismo.

Ele preferia a intimidade dos salões, apresentando suas obras diante de públicos de realeza, banqueiros, artistas e músicos — a “igreja de Chopin”, como o compositor Franz Liszt chamava as reuniões. Nesses cenários, os fãs às vezes pediam pequenas composições, como valsas, como presentes.

Chopin atendeu, ocasionalmente apresentando a mesma valsa para várias pessoas. Ele doou manuscritos da “Valsa em F Menor” em pelo menos cinco ocasiões, todas elas para mulheres. “Por favor, guarde para você”, escreveu a uma. “Eu não gostaria que se tornasse pública.”

A valsa encontrada por Morgan pode ter sido escrita neste contexto. Ela foi escrita em uma pequena folha de papel, de cerca de 10cm por 12cm, de um tipo comumente usado para presentes. A partitura contém dedilhados e marcações dinâmicas, sugerindo que Chopin pensou que a peça poderia ser executada algum dia.

Mas Chopin, um compositor meticuloso — não era incomum que ele passasse semanas em uma única página — parecia ter dúvidas sobre essa valsa. Ele não assinou a partitura, como normalmente faria. O “Chopin” no topo do manuscrito foi adicionado por outra pessoa, de acordo com a análise da caligrafia. E há alguns erros não corrigidos no ritmo e na notação.

Quaisquer que sejam as intenções de Chopin, a valsa nunca foi publicada e permaneceu fora de vista, possivelmente nas mãos de colecionadores. O manuscrito foi adquirido em algum momento por A. Sherrill Whiton Jr., um diretor da Escola de Design de Interiores de Nova York. Whiton, que morreu em 1972, era um fervoroso colecionador de autógrafos. Ele obteve grande parte de sua coleção na famosa loja Walter R. Benjamin Autographs na Madison Avenue, disseram seus filhos.

Um pianista e compositor amador que estudou com os renomados professores Roger Sessions e Nadia Boulanger, Whiton tinha paixão por música clássica. Como tenente da Marinha no Pacífico Sul durante a Segunda Guerra Mundial, ele trouxe consigo um livro: uma partitura em miniatura dos últimos quartetos de cordas de Beethoven. Ele escreveu três óperas, terminando a última no dia em que morreu.

— Ele tocava Chopin o tempo todo — disse seu filho Paul Whiton. — Era sua fuga.

Whiton se lembrou de ver a valsa em exposição na casa da família em Wilton, Connecticut, acrescentando que não sabiam de sua importância. Os materiais de Whiton chegaram ao Morgan em 2019 como um legado de Arthur Satz, um amigo próximo que os comprou da viúva de Whiton, Jean. Por cinco anos, a coleção ficou sem catalogação, em parte por causa da pandemia do coronavírus.

Uma descrição que acompanhava os itens não oferecia muitas pistas sobre a valsa, dizendo apenas: “CHOPIN, FRÉDÉRIC. Manuscrito musical. Quatro sistemas de duas pautas de uma peça para piano não identificada, aparentemente na mão de Chopin, mas sem assinatura.”

A equipe de especialistas de Morgan examinou o manuscrito sob luz infravermelha e ultravioleta para verificar danos e alterações. Eles determinaram que a peça foi escrita em papel trançado feito à máquina com tinta que datava do século XIX. O estilo musical era consistente com os escritos de Chopin no início da década de 1830. E a notação combinava com sua caligrafia distintamente pequena, assim como a escrita da palavra “Valse” no topo da partitura.

Os pesquisadores consideraram outras possibilidades. Chopin havia copiado a valsa de outra pessoa? Poderia ser o trabalho de um aluno? Ambas pareciam improváveis.

A abertura volátil continua sendo um enigma. Kallberg, que ajudou a autenticar a partitura, disse que a tonalidade da valsa — Lá menor — pode oferecer uma pista. Algumas das músicas mais turbulentas de Chopin estão nessa tonalidade, incluindo o chamado estudo “Winter Wind”; o Prelúdio nº 2; e segmentos da Balada nº 2. Chopin escreveu outra valsa tempestuosa e dissonante em 1831: a Valsa em Mi menor. Essa peça também abre com uma explosão. A peculiaridade da valsa de Morgan provavelmente inspirará debates sobre suas origens.

— Há elementos incomuns o suficiente para que se possa questionar: esta é realmente a música de Chopin? — disse John Rink, um professor de música da Universidade de Cambridge que revisou uma fotografia do manuscrito, mas não estava envolvido na pesquisa de Morgan.

Ainda assim, Rink disse que era difícil contestar a análise da caligrafia, papel e tinta, chamando-a de “fator crítico e decisivo”. Ele disse que o manuscrito pode refletir “a imaginação de Chopin em pleno voo, uma espécie de explosão criativa antes que quaisquer ideias tenham sido trabalhadas”.

O que Chopin poderia pensar sobre o lançamento da valsa? Ele frequentemente encobria erros com rabiscos furiosos e manchas de tinta preta, e disse a amigos que queria que suas obras não publicadas fossem destruídas após sua morte.

Ainda assim, ele pode estar encantado que sua música ainda seja adorada, disse Stephen Hough, um pianista e compositor proeminente. Ele disse que a valsa “pode ​​ser insignificante, mas tem um charme e preciosidade”.

— Se Chopin soubesse que seu legado era forte e suas peças eram colecionadas, bem pesquisadas e bem gravadas, não consigo imaginar que ele ficaria bravo.

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